"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/11/2019

Jurisprudência 2019 (120)


Advogado; segredo profissional;
dispensa

 
1. O sumário de RP 6/5/2019 (42896/18.8YIPRT-A.P1) é o seguinte:

A quebra do segredo profissional do advogado, incidente a processar de acordo com o disposto no art. 135.º CPP (ex vi arts. 497.º, n.º 3 e 417.º, n.º 4 CPC), é necessariamente precedida da audição da Ordem dos Advogados como expressamente impõe o n.º 4 daquele normativo. Não obstante, a posição que a Ordem dos Advogados veicular a esse respeito não é vinculativa para o tribunal.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Ao incidente sobre levantamento de segredo profissional, em processo civil, aplica-se o regime previsto no art. 135.º CPP, por força das normas remessivas do CPC que acima ficaram referidas.

De acordo com o n.º 4 do art. 135.º CPP, a decisão sobre o levantamento do sigilo é precedida da audição do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa.

Tratando-se da profissão de advogado, o regime do segredo profissional encontra-se disciplinado no Estatuto da Ordem dos Advogados, regulado pela Lei 145/2015, de 9.9.

Sobre o sigilo profissional dispõe o art. 92.º daquele Estatuto, delimitando de forma rígida quer o seu âmbito, quer as condições de dispensa. Nestas últimas, a par de um apertado critério substancial (desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes), não deixa de se fazer alusão à competência da Ordem dos Advogados para conceder, ela mesma, aquela dispensa.

Não faz qualquer fé em juízo o depoimento prestado sem salvaguarda dos requisitos materiais e formais da dispensa do segredo (n.º 5).

Do iter proposto pelo legislador – quer no CPP quer no mencionado Estatuto – resulta que o incidente de quebra de sigilo, no caso de advogado, não dispensa a audição prévia da respectiva Ordem.

Com efeito, por um lado, a Ordem dos Advogados poderá dispensar do sigilo profissional o advogado que lho solicite, se entender reunidas condições para tanto, mas, por outro, deverá também ser ouvida pelo Tribunal antes de se decidir pelo levantamento, em incidente processual, daquele sigilo.

A obrigatoriedade de prévia audição da Ordem dos Advogado resulta da natureza pública do interesse prosseguido pelo sigilo do advogado o qual se relaciona com a conservação e desenvolvimento da sociedade política e da satisfação das suas necessidades [Paulo Otero, Direito Administrativo - relatório de uma disciplina apresentado no concurso para professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1998, p. 381 [...]] e não está condicionada à existência de dúvidas sobre a legitimidade da recusa. É isso que resulta da remessa do n.º 4 para as situações do n.º 3 do art. 135.º.

A recolha da posição prévia da agremiação profissional da pessoa cujo depoimento se pretende é de primacial importância, não para aquilatar se é legítima ou ilegítima a recusa em depôr – já se disse nos autos que o é – mas para saber, da perspetiva de tal ordem profissional, qual a interpretação que ao caso faz do disposto no art. 92.º, n.º4, daquele Estatuto.

Cabendo ao tribunal decidir se a violação do segredo profissional é, in casu, absolutamente necessári[a] para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, justifica-se a consulta prévia da instituição que, em primeira linha, não só tem por missão decidir estes temas, como se encontra em situação privilegiada para verificar os interesses daqueles que tem por função representar, concorrendo na definição concreta do princípio da prevalência do interesse preponderante [...], embora a sua posição não seja vinculativa [...].

Afastamos, assim, o entendimento plasmado no ac. RG, de 18.2.2016, Proc. 2068/10.2TJVNF-A.G1, segundo o qual se não impõe a audição prévia desta Ordem.

Com efeito, são eloquentes e justificadas as razões apontadas pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados quando crítica este aresto: »a pronúncia da Ordem dos Advogados ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 135.º do C.P. Penal não pode ser reduzida à condição de um mero parecer, destinado a auxiliar o julgador na percepção e apreciação da realidade fáctica difícil de captar mediante os conhecimentos de que normalmente o juiz está apetrechado, como expressamente é declarado no acórdão em apreço. O segredo profissional é um dever imposto ao advogado por uma lei da república (Lei n.º 145/2015 de 9 de Setembro de 2015), sendo que o n.º 5 do art. 92.º dessa lei comina claramente que “os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Desse dever decorre o direito do advogado se remeter ao silêncio sempre que interpelado no sentido da revelação de factos advindos ao conhecimento por via do exercício da sua profissão. Subjacente à imposição legal desse dever está a garantia de um valor fundamental, transversal ao complexo das relações que o advogado estabelece no exercício da sua profissão: o valor da confiança! Confiança daquele que depositando no conhecimento do advogado determinado facto, o faz na legítima expectativa de o mesmo ser mantido sob sigilo, ressalvadas as hipóteses legais em que a sua quebra pode ocorrer. À Ordem dos Advogados, no âmbito das suas atribuições, compete (i) defender os direitos e as garantias dos cidadãos, (ii) promover o respeito pelos valores e princípios deontológicos, (iii) defender os interesses, direitos e prerrogativas dos seus membros - vd artº 3º do EOA. O incidente de quebra do segredo profissional, ao abrigo do disposto no art. 135.º do C.P. Penal, visa a obtenção de um meio de prova que contende, ou pode contender, com valores, deveres, direitos e garantias que, no âmbito das suas atribuições, compete à Ordem dos Advogados zelar e defender. Tem assim a Ordem dos Advogados uma legitimidade própria para se pronunciar quando em causa possam estar os deveres cujo cumprimento deve zelar, direitos e garantias cujo respeito deve defender. O legislador consignou-a obrigatoriamente no nº 4 do art. 135.º do C.P. Penal. Nesta pronúncia, marcará a Ordem dos Advogados a sua posição, não com considerações de ordem técnica, mas com considerações de ordem valorativa, com as quais dirá (i) se os valores, direitos e interesses que se pretendem defender com a quebra do sigilo justificam o sacrifício daqueles que se pretendem salvaguardar com a imposição legal do dever de o guardar; (ii) se o facto sigiloso é essencial para a descoberta da verdade material na defesa de interesses preponderantes, (iii) se o depoimento do advogado ou o documento em seu poder, é imprescindível para a comprovação do facto. Não sendo a Ordem dos Advogados chamada a pronunciar-se, é preterida uma formalidade legal que forçosamente inquina a validade do meio de prova que por via do incidente do levantamento de sigilo foi obtido. A Ordem dos Advogados tem interesse na preservação do segredo profissional do advogado, como interesse tem qualquer cidadão. Mas por ter esse interesse e um dever especial na sua preservação, não significa (nem é verdad
e) que, nas pronúncias que tem proferido ao abrigo da citada norma de direito processual, manifeste sempre a sua oposição no sentido da manutenção do sigilo. Mas, quando a manifesta, fá-lo com fundamento» [Ipso Iure, n.º 88, 2016, disponível em https://www.oa.pt/upl/%7Bd3d3bd19-c7e5-433e-84f1-3f04476bfcd5%7D.pdf.].

Na situação que nos ocupa, em primeira instância não foi observado o itinerário processualmente previsto para o incidente aqui em apreço.

Designadamente, não foi ouvida a Ordem dos Advogados sobre a pretensão de quebra de segredo profissional do advogado dos autos cujo depoimento como testemunha se pretende seja recolhido."


[MTS]