"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/11/2019

Jurisprudência 2019 (114)


Providência cautelar; arrolamento;
testamento; negócio usurário

 
I. O sumário de RC 30/4/2019 (3409/18.0T8LRA-A.C1) é o seguinte:

1. É de rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto quando o recorrente não especifica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, também insuficientemente concretizadas (art.º 640º, n.º 1, alíneas a) e c), do CPC).

2. O regime do art.º 282º do CC (negócios usurários) é aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, face à sua especificidade - anulabilidade advinda do facto de se ter “explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador”, obtendo, assim, “benefícios excessivos ou injustificados”.

3. Justifica-se a providência cautelar de arrolamento quando o requerente tenha interesse na conservação dos bens que integram determinado acervo hereditário e exista justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie, oculte ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens (cf. os art.ºs 403º, 404º, n.º 1 e 405º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"8. O arrolamento é uma medida cautelar de carácter conservatório. Apresenta-se, em geral, como medida destinada a assegurar a manutenção de bens litigiosos no período em que persistir a discussão da titularidade do direito no âmbito da acção principal de que o arrolamento é instrumental. Se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso (...) do arrolamento. [Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1981, págs. 104 e seguinte]

Tendo em conta a latitude dos bens que podem constituir o seu objecto e o modo de execução da medida, o arrolamento assemelha-se ao arresto, do qual difere quanto à situação de periculum in mora que visa prevenir, pois que, em lugar do risco de perda da garantia patrimonial que o arresto visa esconjurar (art.º 391º, n.º 1 do CPC), tende a eliminar ou a atenuar o perigo de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos.

Tal como ocorre com a generalidade das providências não especificadas, também o arrolamento dispensa a formulação de um juízo seguro quanto à titularidade do direito, bastando que o tribunal, com base em factos que considere provados, se convença da sua existência, de acordo com um critério de verosimilhança ("probabilidade séria", segundo o art.º 368º, n.º 1 do CPC), sendo que tratando-se de direitos de natureza potestativa, se exige adicionalmente a verificação da probabilidade de procedência da acção principal, nos termos do art.º 405º, n.º 1 do CPC, solução justificada para evitar que o arrolamento seja posto ao serviço de pretensões manifestamente inviáveis, de pretensões claramente infundadas ou de pretensões que não apresentam probabilidade alguma de êxito. [...]

9. A recorrente afirmou manter o interesse na apreciação do recurso em matéria de direito, independentemente da decisão a proferir quanto à impugnação da matéria de facto, considerando, além do mais, que não se verificam os requisitos do negócio usurário na definição do art.º 282º do Código Civil (CC) [...] e que o caso versado no acórdão do STJ de 23.6.2016, citado pelo requerente e acolhido na sentença sob censura, não é similar à situação destes autos; reitera que a má fé do requerente ficou demonstrada tanto face à falta de prova do que alega, quer porque descreve apenas o que lhe contaram.

10. A situação dos autos não é isenta de dificuldades mas a manutenção da indiciada factualidade e o entendimento na doutrina e jurisprudência de que o art.º 282º do CC é aplicável a todos os negócios [Vide, designadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 259], que se perfilha, leva-nos a sufragar o decidido na sentença recorrida.

Assim, nada será de objectar ao expendido naquela decisão, mormente quando se refere:

- No caso dos autos, está devidamente demonstrada a legitimidade do requerente para a acção de impugnação do testamento de sua tia M (…) na qualidade de sobrinho desta e sendo que a mesma faleceu no estado de viúva e sem deixar descendentes ou ascendentes.

- Refere-se no Acórdão do STJ proferido, em 23.6.2016, no âmbito do processo 1579/14.5TBVNG.P1.S1 (disponível no site da dgsi) [...]:

«O problema da ´aplicabilidade do regime dos negócios usurários ao testamento` não se encontra tratado de forma aprofundada no direito português.

Em tese geral, defende-se em alguma doutrina nacional (Pires de Lima/Antunes Varela, CC Anotado`, I, 1987, pág. 260; Pedro Eiró, ´Negócio usurário`, 1990, págs. 68 e segs.; H. E. Hörster, ´A parte geral do Código Civil Português`, 2014, reimp., pág. 556) a possibilidade de tal aplicação à generalidade dos negócios jurídicos, tanto bilaterais como unilaterais, sem, contudo, se referir directamente o testamento.

Entre os cultores do direito sucessório, há autores que defendem a sujeição do testamento ao regime da usura (Capelo de Sousa, ´Lições de Direito das Sucessões`, I, 2000, pág. 185; Duarte Pinheiro, ´O Direito das Sucessões Contemporâneo`, 2013, pág. 135).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem admitindo a aplicação da usura aos negócios jurídicos unilaterais (…)

- Relativamente aos negócios testamentários, são de referir as seguintes decisões deste Supremo Tribunal:

No acórdão de 22/5/2003-proc. n.º 03B1300, dgsi), num caso em que o testamento foi anulado por coacção, admitiu-se, em tese geral, que o regime da usura possa aplicar-se ao testamento: art.º 282º do CC (…)

”É um normativo aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais, como é o caso das disposições testamentárias, nesta hipótese com as necessárias adaptações, face à sua especificidade.”

No acórdão de 13/5/2004-proc. n.º 1452/04, dgsi), num caso em que se concluiu não ter sido feita prova que permitisse anular o testamento, considerou-se, em tese geral, o seguinte: “(…) atenta a natureza genérica do art.º 282º (negócios usurários) aplicável a qualquer tipo de negócio jurídico, designadamente aos negócios jurídicos unilaterais como é o caso das disposições testamentárias, ficarão sujeitos à anulabilidade advinda do facto de terem explorado a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter do testador para deste obterem a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”»

- (…) Deve ter-se presente que se regulam, nos art.ºs 2199º a 2203º do CC, as ´especificidades da falta e vícios da vontade do testador`.

- Identificam-se os três requisitos previstos neste preceito [art.º 282º do CC]: a) ´Existência de uma situação de inferioridade do declarante`; b) ´Exploração da situação de inferioridade pelo usurário`; c) Lesão, isto é, ´promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro`.

- Em face dos ensinamentos extraídos daquele Acórdão[12], julga-se que a conjugação de todos os factos indiciários referentes à idade avançada, ao estado de debilidade física e de dependência permanente da ajuda de terceira pessoa em que se encontrava, são bastantes para (…) considerar verificada a situação de inferioridade (no sentido de dependência e, nessa medida, de subordinação à vontade alheia) de M (…) em relação à requerida.

- Mais emerge (…) que, indiciariamente, foi a actuação, deliberada e consciente, da requerida que promoveu a mudança de atitude de M (…), nomeadamente, em relação às pessoas que lhe vinham prestando apoio e em relação às quais havia laços de sangue e a levou a dispor de todos os seus bens em seu benefício - sendo ela uma estanha, que aquela conhecera menos de um ano antes, quando lavrou o testamento posto em crise.

Fê-lo, a requerida, bem sabendo do valor do património de M (…) assim como do testamento, a cujo impulso, certamente, não será alheia (…).

- E, em face do mesmo conjunto de factos, aliado ao conhecimento do valor aproximado do acervo hereditário de M (…) - certamente, próximo dos quinhentos mil euros -, à idade avançada da testadora e aos seus problemas de saúde (que tornavam curta a sua esperança de vida), não se pode deixar de considerar que receber aquele património, de uma pessoa que conhecera pouco tempo antes e a quem, quando muito, prestava assistência há cerca de um ano e por poucos anos o continuaria, previsivelmente, a fazer (tanto mais que a sua actuação conhecida é no sentido de não respeitar os cuidados de alimentação a que aquela estava, por prescrição médica e motivos ponderosos, condicionada), se traduz num manifesto - e injusto - excesso de proveito, por esta via estando, também, preenchido o terceiro dos mencionados requisitos.

- Na decorrência de todo o exposto e aqui se remetendo, mais uma vez, para a jurisprudência citada, julga-se estar devidamente indiciada a probabilidade séria da existência de vício do testamento conducente à sua anulabilidade e, por essa via, urgindo concluir que o requerente logrou convencer da provável procedência do seu pedido a formular no processo principal.

- (…) perante o comportamento conhecido à requerida, é de configurar como altamente possível e provável que ela, temendo o desfecho do litígio e com receio de ver frustrado o êxito da sua actuação perante a falecida, trate de ocultar e/ou gastar o dinheiro que herdou, bem como o produto da venda que está a promover do imóvel que também integra o acervo hereditário./ Conclui-se, por conseguinte e sendo necessidade, ao que se julga, de melhores e mais desenvolvidas considerações, pela verificação de todos os pressupostos do arrolamento e pela procedência do vertente procedimento cautelar.

11. Concorda-se com a dita fundamentação.

Se, por um lado, podemos afirmar a elevada probabilidade da existência do direito em que se funda o arrolamento [cf., v. g., os art.ºs 2131º, 2132º, 2133º, n.º 1, alínea c) e 2145º, do CC; a precedente exposição e, nomeadamente, II. 1. 23), 24), 28), 29), 30), 47), 53), 54), 55), 58), 62) e 65), supra], por outro lado, o requerente tem interesse directo na conservação dos bens que integram o acervo hereditário em apreço, a arrolar, e que pretende pôr a coberto do risco de extravio ou dissipação, sendo que decorre também suficientemente indiciada a situação de perigo de extravio ou de dissipação dos bens, o justo receio de extravio ou dissipação dos bens cujo arrolamento se pretende obter [cf., sobretudo, II. 1., 27), 31), 34), 35), 38) e 66), supra].

Concluindo: visto, por um lado, a provável procedência do pedido da acção principal (ao qual subjaz ou está normalmente associada a discussão em torno do direito a determinados bens materiais, tal como sucede no caso em apreço), por outro lado, que, sem a providência requerida, o interesse do requerente corre sério risco, e, por último, que o seu decretamento não deixará de conciliar todos os interesses em presença[13], não se vê razão para não confirmar o decidido (inclusive, quanto à manifesta improcedência do pedido de condenação do requerente por litigância de má fé)."

[MTS]