Litigância de má fé;
advogado*
1. O sumário de RC 28/5/2019 (3303/11.5TBLRA-A.C1) é o seguinte:
I - O instituto da condenação por litigância de má fé envolve um juízo de censura que radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes litigantes estão adstritas.
II - Enquanto que as alíneas a) e b) no nº 2 do art. 542º do CPC se reportam à chamada má fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas do normativo se reportam a situações que têm a ver com a designada má fé processual/instrumental das partes litigantes.
III - A litigância de má fé pressupõe uma atuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objetivamente, através da ocorrência de alguma das situações previstas numa daquelas alíneas do referido normativo legal.
IV - Em qualquer uma dessas situações não se torna necessário a prova da consciência da ilicitude do comportamento do litigante e da intenção de conseguir um objetivo ilegítimo, bastando tão só que, à luz dos concretos factos apurados, seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela sua atuação.
V - Atua com (intensa) má fé o advogado que instaura ação reclamando do réu o pagamento de quantia por serviços forenses que alega ter-lhe prestado no exercício da sua atividade profissional e vem-se, depois, a extrair da matéria factual apurada que esses (ou quaisquer outros) alegados serviços nunca foram contratados pelo último e nem sequer lhe foram a si prestados.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"5. Quanto à 3ª. questão.
Da litigância de má fé do autor.
Como acima se deixou exarado, a sentença decidiu julgar a ação improcedente e condenar ainda o autor como litigante de má fé.
O autor apelou da parte (e tão só dela) dessa sentença que o condenou como litigante de má fé, negando essa litigância.
Vejamos se justifica ou não tal condenação.
Preceitua o artº. 542º do atual CPC (que reproduziu sem alterações o artº. 456º do anterior CPC, na redação vigente aquando da sua revogação pelo nCPC):
“1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. (...).”
O juízo de censura que enforma o instituto da litigância de má fé radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas (artºs 7º e 8º do CPC), para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.
Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual/instrumental. (Vide, a propósito, o prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª Ed., Almedina, 2017, pág. 457”).
Resulta, assim, desde logo, de tal normativo legal, que a litigância de má fé pressupõe, uma atuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objetivamente, na ocorrência de alguma das situações, atrás transcritas, previstas nas diversas alíneas do seu nº. 2.
Como refere o cons. Abrantes Geraldes (in “Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª ed., pág. 341”) “o legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objectivos ilegítimos (actuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade.”
O âmbito da má fé abrange, assim, hoje, tanto atuação dolosa, como a “negligência grave”, não bastando, todavia, uma lide temerária ou meramente culposa. A negligência grave (que fora já introduzida com a alteração ao CPC61 pelo DL nº. 329-A/95, de 12/12) é concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível, como resulta do atrás referido, a prova da consciência da ilicitude da atuação do agente.
Por conseguinte, a lei tipifica as situações objetivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjetivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.
Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC), havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. (No sentido do que se deixou exposto, vide, entre, outros, Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/ 17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014, todos publicados in www.dgsi.pt).
Tendo presentes tais considerações, debrucemo-nos, agora, mais de perto, sobre o caso sub júdice.
O tribunal a quo justificou, em conclusão, tal condenação do autor por à luz dos factos apurados ter concluído, em síntese, que o mesmo de forma consciente e voluntária/intencional instaurou a presente ação alterando a verdade dos factos, servindo-se de meios processuais (a ação), com o propósito evidente de obter do R. um pagamento que sabia não ser devido, violando, assim, e de forma grosseira, aqueles os deveres de cooperação e boa fé processual a que estava obrigado.
Vejamos.
Com a presente ação o autor veio a pedir a condenação do R. no pagamento da quantia acima referida.
Para sustentar esse pedido alegou o autor que no exercício da sua atividade de advocacia prestou serviços ao réu no âmbito do processo nº. ... e este nada lhe pagou apesar de o ter instado nesse sentido.
A sentença proferida pelo tribunal a quo julgou a ação improcedente, e absolveu o réu de tal pedido, após concluir que o A. não prestou ao R. os serviços que referiu, os quais foram prestados a um terceiro, no âmbito de um esquema urdido entre este e o A., com vista a frustar a cobrança de créditos a esse terceiro pela Segurança Social.
Como vimos, o A. conformou-se como essa decisão, não interpondo recurso dessa parte decisória da sentença.
Compulsando a matéria factual dada como assente dela se extrai, da sua conjugação, que o autor não só não prestou ao R. os serviços que alega ter-lhe prestado no âmbito do processo nº. ..., como não lhe prestou, a solicitação do mesmo, qualquer outro serviço no âmbito daquela sua atividade de advocacia.
Serviços, isso sim, que foram prestados a uma terceira pessoa, um tal L..., sendo certo que a procuração forense que foi passada a favor do autor pelo réu, constitui apenas e tão-somente a um elemento constitutivo do esquema urdido entre pelo próprio A., e a sugestão deste, e aquele L... com o fito de frustrar a cobrança de créditos a este último por parte da Segurança Social.
De tudo isso o A. bem sabia quando instaurou a presente ação contra R., procurando através dela obter deste último o pagamento uma quantia a que sabia não ter direito, pois que que se trata de um facto pessoal no qual interveio diretamente e do qual não pode deixar de ter consciência.
É, pois, patente, que o A. alterou, intencionalmente, a verdade do factos para conseguir, através do recurso à presente ação, obter para si a condenação do R. numa quantia a que sabia não ter direito.
E daí a conclusão que o A. agiu, no caso da presente ação, ostensivamente de má fé, violando, nomeadamente, aqueles deveres de probidade, e de boa fé a que estava sujeito, e de forma mais intensa ainda porque, como advogado, tinha o especial dever de o não fazer (cfr. artº. 88º, nº. 2, do EOA).
Termos, pois, em que não nos merece qualquer censura a decisão proferida pelo tribunal a quo, e daí que o presente recurso tenha de naufragar."
Da litigância de má fé do autor.
Como acima se deixou exarado, a sentença decidiu julgar a ação improcedente e condenar ainda o autor como litigante de má fé.
O autor apelou da parte (e tão só dela) dessa sentença que o condenou como litigante de má fé, negando essa litigância.
Vejamos se justifica ou não tal condenação.
Preceitua o artº. 542º do atual CPC (que reproduziu sem alterações o artº. 456º do anterior CPC, na redação vigente aquando da sua revogação pelo nCPC):
“1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. (...).”
O juízo de censura que enforma o instituto da litigância de má fé radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas (artºs 7º e 8º do CPC), para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil.
Enquanto as als. a) e b) do citado normativo legal se reportam à chamada má fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas têm a ver com a má fé processual/instrumental. (Vide, a propósito, o prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3ª Ed., Almedina, 2017, pág. 457”).
Resulta, assim, desde logo, de tal normativo legal, que a litigância de má fé pressupõe, uma atuação dolosa ou com negligência grave - em termos da intervenção na lide -, consubstanciada, objetivamente, na ocorrência de alguma das situações, atrás transcritas, previstas nas diversas alíneas do seu nº. 2.
Como refere o cons. Abrantes Geraldes (in “Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª ed., pág. 341”) “o legislador deixou ainda clara a desnecessidade, quanto à prova, da consciência da ilicitude do comportamento e da intenção de conseguir objectivos ilegítimos (actuação dolosa), bastando que seja possível formular um juízo de censurabilidade.”
O âmbito da má fé abrange, assim, hoje, tanto atuação dolosa, como a “negligência grave”, não bastando, todavia, uma lide temerária ou meramente culposa. A negligência grave (que fora já introduzida com a alteração ao CPC61 pelo DL nº. 329-A/95, de 12/12) é concebida como erro grosseiro ou culpa grave, sem que seja exigível, como resulta do atrás referido, a prova da consciência da ilicitude da atuação do agente.
Por conseguinte, a lei tipifica as situações objetivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjetivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico.
Vem hoje constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do nCPC), havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto, e daí que se recomende uma certa prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé. Donde que, como constitui hoje entendimento claramente prevalecente na nossa jurisprudência, a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal. (No sentido do que se deixou exposto, vide, entre, outros, Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/ 17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014, todos publicados in www.dgsi.pt).
Tendo presentes tais considerações, debrucemo-nos, agora, mais de perto, sobre o caso sub júdice.
O tribunal a quo justificou, em conclusão, tal condenação do autor por à luz dos factos apurados ter concluído, em síntese, que o mesmo de forma consciente e voluntária/intencional instaurou a presente ação alterando a verdade dos factos, servindo-se de meios processuais (a ação), com o propósito evidente de obter do R. um pagamento que sabia não ser devido, violando, assim, e de forma grosseira, aqueles os deveres de cooperação e boa fé processual a que estava obrigado.
Vejamos.
Com a presente ação o autor veio a pedir a condenação do R. no pagamento da quantia acima referida.
Para sustentar esse pedido alegou o autor que no exercício da sua atividade de advocacia prestou serviços ao réu no âmbito do processo nº. ... e este nada lhe pagou apesar de o ter instado nesse sentido.
A sentença proferida pelo tribunal a quo julgou a ação improcedente, e absolveu o réu de tal pedido, após concluir que o A. não prestou ao R. os serviços que referiu, os quais foram prestados a um terceiro, no âmbito de um esquema urdido entre este e o A., com vista a frustar a cobrança de créditos a esse terceiro pela Segurança Social.
Como vimos, o A. conformou-se como essa decisão, não interpondo recurso dessa parte decisória da sentença.
Compulsando a matéria factual dada como assente dela se extrai, da sua conjugação, que o autor não só não prestou ao R. os serviços que alega ter-lhe prestado no âmbito do processo nº. ..., como não lhe prestou, a solicitação do mesmo, qualquer outro serviço no âmbito daquela sua atividade de advocacia.
Serviços, isso sim, que foram prestados a uma terceira pessoa, um tal L..., sendo certo que a procuração forense que foi passada a favor do autor pelo réu, constitui apenas e tão-somente a um elemento constitutivo do esquema urdido entre pelo próprio A., e a sugestão deste, e aquele L... com o fito de frustrar a cobrança de créditos a este último por parte da Segurança Social.
De tudo isso o A. bem sabia quando instaurou a presente ação contra R., procurando através dela obter deste último o pagamento uma quantia a que sabia não ter direito, pois que que se trata de um facto pessoal no qual interveio diretamente e do qual não pode deixar de ter consciência.
É, pois, patente, que o A. alterou, intencionalmente, a verdade do factos para conseguir, através do recurso à presente ação, obter para si a condenação do R. numa quantia a que sabia não ter direito.
E daí a conclusão que o A. agiu, no caso da presente ação, ostensivamente de má fé, violando, nomeadamente, aqueles deveres de probidade, e de boa fé a que estava sujeito, e de forma mais intensa ainda porque, como advogado, tinha o especial dever de o não fazer (cfr. artº. 88º, nº. 2, do EOA).
Termos, pois, em que não nos merece qualquer censura a decisão proferida pelo tribunal a quo, e daí que o presente recurso tenha de naufragar."
*3. [Comentário] Há, pelo menos, um aspecto positivo neste caso: o acórdão mostra que o sistema funcionou, sancionando como litigante de má fé o advogado que, actuando em causa própria, alegou factos que não podia ignorar que não eram verdadeiros.
MTS