"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/11/2019

Jurisprudência 2019 (118)

Excepção de caso julgado;
causa de pedir; diferença

 
1. O sumário de STJ 14/5/2019 (32106/15.8T8LSB.L1.S2) é o seguinte:

I - Tendo o recorrente invocado a ofensa do caso julgado, a revista é admissível, nos termos do art. 629.º, n.º l, al. a), do CPC, apesar de as decisões das instâncias formarem dupla conforme.

II - Tendo o réu sido absolvido (juntamente com o Estado Português) pelo tribunal administrativo, por se ter concluído que o facto danoso (disparo involuntário de uma pistola que matou outro militar) não foi praticado no exercício das suas funções militares, mas apenas por ocasião delas, e não tendo o tribunal administrativo conhecido da sua responsabilidade pessoal, não se formou caso julgado que obste à apreciação da responsabilidade civil do réu na instância cível.

III - Enquanto que, na ação administrativa a causa de pedir assentou na configuração de um facto como sendo praticado no exercício das funções militares do réu, na ação cível a causa de pedir pressupôs a prática daquele facto fora do exercício dessas funções (na sequência da conclusão do tribunal administrativo).

IV - As diferentes circunstâncias funcionais em que é configurada a ocorrência do facto danoso – no exercício de funções militares do réu; ou fora desse exercício – permite concluir que as duas ações não têm a mesma causa de pedir, não se verificando a exceção do caso julgado. Não se trata de uma simples alteração da qualificação jurídica do mesmo facto, mas sim de uma intrínseca configuração circunstancial que altera o seu relevo normativo.

V - Tendo o tribunal administrativo concluído, por decisão definitiva, que o Estado Português não era responsável pela morte do filho dos autores, porque tal tinha ocorrido fora das funções militares do réu, não pode o réu invocar a sua ilegitimidade para a ação cível, alegando que esta ação devia ser proposta contra o Estado Português, porque nesta matéria vale a autoridade do caso julgado administrativo.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.4. Os autores dos presentes autos tinham proposto ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada [...] (à qual correspondeu o proc. n. 2481/04.BELSB), contra o Estado Português e contra o réu (Pedro Ricardo), na qual peticionaram o pagamento de uma indemnização de €103.000,00 (cento e três mil Euros), tendo como causa de pedir o acidente ocorrido em 08.11.2001, na Base ... n… do ..., do qual resultou a morte do AA, configurando esse acidente como ocorrido no exercício das funções do réu (encontrando-se cópia da respetiva p.i. a fls. 51 e seguintes dos autos).

O TAF de Almada, por sentença de 31.01.2008, julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido, por ter entendido que aquele acidente não ocorreu no exercício das funções do réu. O Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 26.03.2015, confirmou aquela sentença a qual se tornou definitiva.

3.5. Em 2015, os autores propuseram a presente ação contra o réu[5], na qual formularam pedido idêntico ao que tinham formulado na ação administrativa supra referida (no valor de 103.000,00 Euros).

A idêntica pretensão deduzida nas duas ações também procede do mesmo facto naturalístico, ou seja, o acidente ocorrido no dia 08.11.2001, na Base ... n…. do ..., que causou a morte ao filho dos autores (no dia seguinte), ou seja, do disparo de uma pistola manejada pelo réu[6].

O que os autores invocam nos presentes autos para sustentar a sua pretensão é, numa perspetiva naturalística, a mesma factualidade que invocaram na ação administrativa, mas com a atribuição de uma diferente contextualização funcional.

3.6. Vejamos se existe apenas a atribuição de uma diferente qualificação aos mesmos factos (o que não afasta a identidade da causa de pedir) ou se esses factos passam a revestir diferente natureza jurídica.

Como tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência, uma diferente qualificação jurídica dos mesmos factos não constitui uma diferente causa de pedir. [...]

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem sido também no sentido de que a apresentação de uma nova qualificação jurídica dos mesmos factos não pode ser considerada como uma nova causa de pedir, para efeitos de afastamento da exceção dilatória do caso julgado. Neste sentido, cita-se a título exemplificativo, o acórdão do STJ, de 11.09.2014 (relatora Fernanda Isabel Pereira) [
Proferido no processo n. 1106/08.3TJVNF.P1.S1 [...]].

Na primeira ação, os autores caraterizaram o comportamento do réu como um facto praticado no exercício das suas funções militares. Por isso a ação foi proposta também contra o Estado Português.

A decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.03.2015, confirmou que o comportamento do réu não foi praticado no exercício das suas funções, mas sim por ocasião dessas funções, e invocou como base legal os artigos 22º da CRP e 2º, n.1 do DL 48051 (de 21.11.1967), vigente à data dos factos (entretanto revogado pelo art.5º do DL 67/2007), nos quais se prevê a responsabilidade civil do Estado pelos atos ilícitos e culposos praticados pelos seus agentes “no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

Afirmou-se, naquela decisão, que se excluem do âmbito da responsabilidade administrativa os atos lesivos que tenham sido praticados, por titulares de órgãos e agentes, fora do exercício de funções ou no exercício de funções, mas não por causa desse exercício, que, por isso, se devem qualificar como atos pessoais dos seus autores materiais, envolvendo apenas a responsabilidade pessoal do agente, sujeita ao regime de direito privado, a exercer nos tribunais comuns.

Assim, tendo concluído que o disparo efetuado pela arma manejada pelo réu ocorreu apenas por ocasião das suas funções e não por causa do exercício dessas funções, concluiu pela absolvição do réu, enquanto militar, bem como pela absolvição do Estado Português.

A decisão final dos tribunais administrativos, ao absolver o réu do pedido, confinou-se, assim, à questão de saber se o comportamento do réu ocorreu no exercício das suas funções ou fora desse exercício. Não conheceu, portanto, da eventual responsabilidade pessoal do réu.

Deste modo, diferentemente do que aconteceria se a primeira ação tivesse corrido nos tribunais cíveis, não se pode concluir que o juiz do tribunal administrativo tivesse tido a possibilidade legal de ponderar a aplicação de figuras jurídicas alternativas, ou seja, de considerar a aplicação do regime da responsabilidade civil (previsto no art. 483º e seguintes do CC), porque a responsabilização do réu, neste quadro jurídico, é da competência dos tribunais cíveis (como se afirmou no acórdão do tribunal administrativo).

Conclui-se, assim, que o modo como os autores configuram a sua causa de pedir nos presentes autos não teria sido potencialmente idêntica na ação anterior, atenta a diferente competência material dos tribunais e, consequentemente, a diferente natureza jurídica dos atos de que podem conhecer.

Embora o facto causador do dano seja naturalisticamente o mesmo, as circunstâncias funcionais da sua ocorrência, invocadas pelos autores, não são idênticas nas duas ações.

Não se trata de uma simples alteração da qualificação jurídica do mesmo facto, mas sim de uma intrínseca configuração circunstancial que altera o seu relevo normativo, devendo, por isso, entender-se que não existiu identidade de causa de pedir nas duas ações.

3.7. Tendo o réu sido absolvido pelo tribunal administrativo porque não praticou o ato no exercício das suas funções, e não podendo o tribunal administrativo conhecer da responsabilidade “pessoal” do réu (dada a respetiva competência material), caso se entendesse que existia caso julgado que obstava ao conhecimento da responsabilidade do réu pelos tribunais cíveis, então este tipo de casos nunca seria julgado pelos tribunais, ficando os lesados privados da tutela efetiva do direito.

3.8. Nas conclusões das suas alegações, o réu invoca ainda a sua ilegitimidade para a presente ação, pugnando pela responsabilização do Estado Português. Ora, tendo o tribunal administrativo concluído, por decisão definitiva, que o Estado Português não era responsável pela morte do filho dos autores, porque tal tinha ocorrido fora das funções militares do réu, não pode o réu invocar a sua ilegitimidade para a ação cível, alegando que esta ação devia ser proposta contra o Estado Português, porque nesta matéria vale a autoridade do caso julgado administrativo.

O réu invoca a existência de um despacho do Chefe de Estado Maior da ..., de 03.12.2002 (que consta da informação do Ministério da Defesa Nacional, a fls.65-67 dos autos), que considerou que a morte do filho dos autores ocorreu “em serviço”. Todavia, como consta daquela informação, essa qualificação do acidente relevou apenas para efeitos do disposto no art.2º, n.1, al. a) do DL n.466/99, ou seja, para a atribuição aos autores da “pensão de preço de sangue” pelo falecimento do seu filho.

De tal informação não se pode, nos presentes autos, extrair qualquer outra relevância jurídica, dado que o tribunal administrativo concluiu, em termos definitivos, que o acidente não ocorreu no exercício das funções do réu, havendo, portanto, que respeitar o efeito do caso julgado quanto a essa matéria.

3.9. Conclui-se, assim, que o acórdão em revista, ao confirmar a decisão da primeira instância, não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito ao caso concreto, porquanto não se verificava a exceção do caso julgado, invocada pelo recorrente, que obstasse ao conhecimento do mérito da causa, ou seja, à apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil e consequente condenação do réu/recorrente."

[MTS]