"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/11/2019

Jurisprudência 2019 (125)


Impugnação de deliberações sociais;
competência material

1. O sumário de STJ 23/5/2019 (4624/17.9T8FNC.L1.S1) é o seguinte:

[...] Não cabe na competência material dos Juízos de Comércio conhecer de uma providência cautelar destinada a impugnar deliberações de uma associação patronal sem fins lucrativos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. O direito aplicável:

4.1. Como supra referido, a decisão a proferir respeita, centralmente, à questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando considerou incompetente para conhecer da presente ação o Juízo de Comércio do Funchal.

A Lei n. 62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário - LOSJ) estabelece, no seu art.128º, a competência dos juízos de comércio:

1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
 

4.2. Entende a recorrente que o facto de a alínea d) do n.1 do art.128º não dizer expressamente que respeita apenas a deliberações de sociedades comerciais (referindo-se antes a “deliberações sociais”), permitirá concluir que o juízo de comércio também será competente para conhecer de ações respeitantes a deliberações de associações sem fins lucrativos.

Por outro lado, acrescenta, ainda que assim não se entendesse, sempre o facto de a associação requerida (apesar de lhe estar vedada a profissão de comerciante) praticar atos objetivos de comércio justificaria que pudesse recorrer ao juízo de comércio.

4.3. O acórdão em revista, subscrevendo e reproduzindo, em grande parte, a fundamentação da decisão da primeira instância, concluiu que os argumentos explanados pela recorrente na apelação (que coincidem, na essência, com os argumentos apresentados na revista) não permitem reconhecer-lhe razão.

Entendeu-se, em síntese, que da evolução legislativa em matéria de competência dos tribunais de comércio (desde o anterior art.89º da Lei n.3/1999 até ao presente art.128º da Lei n.62/2013) não se pode concluir, nem pelo elemento literal (que se manteve inalterado), nem pelos propósitos legislativos (onde se inclui o aumento do número de juízos de comércio em todo o país) que tivesse existido uma intenção de estender a competência material dos juízos de comércio a matérias de natureza não comercial, o que vale tanto para ações destinadas à suspensão ou anulação de deliberações sociais como para providências cautelares de suspensão de deliberações sociais (como é o caso dos presentes autos).

Por outro lado, no que respeita ao argumento de que podendo a requerida praticar atos objetivos de comércio, tal lhe abriria a porta dos juízos de comércio, conclui a decisão em revista que a deliberação, cuja suspensão foi pedida nos presentes autos, não é qualificável como ato de comércio.

4.4. O decidido no acórdão em revista não merece censura, pois fez a correta aplicação do direito pertinente.

O supra referido art.128º estabelece um elenco taxativo de hipóteses que cabem na competência material dos juízos de comércio, as quais apresentam como nota distintiva a natureza objetivamente comercial das matérias de onde emergem os conflitos a solucionar ou uma específica indicação temática assumida pelo legislador (independentemente de nem todos os conflitos aí comportáveis poderem ter natureza objetiva comercial, como por exemplo, em alguns casos de insolvência ou de registo comercial)[1]. Por outro lado, mesmo no âmbito dos conflitos entre sócios e sociedades comerciais, nem sempre a competência para conhecer do litígio cabe aos tribunais de comércio. Assim será quando o conflito não respeite a uma matéria de natureza comercial, como se entendeu no acórdão do STJ, de 05.07.2018 (relator Abrantes Geraldes)[2].

Constituindo um elenco taxativo, as hipóteses de convocação da competência dos juízos de comércio não podem ser aplicadas analogicamente a situações que o legislador aí não incluiu.

A competência especializada de um tribunal, na medida em que conduz a uma maior harmonização de soluções e, consequentemente, a maior celeridade decisória, mercê da repetição das tipologias de conflitos, pressupõe, necessariamente, uma delimitação objetiva da correspondente área de incidência. Se esta área pudesse ser ampliada por via de aplicação analógica, passando a englobar o conhecimento de matérias de natureza não comercial, facilmente se compreende que as vantagens da especialização tenderiam a ser esbatidas, aproximando-se estes tribunais dos tribunais de competência genérica.

4.5. O facto de, na alínea d), se falar apenas de “deliberações sociais” sem dizer literalmente que se trata de deliberações de sociedades comerciais não pode ser alvo de uma interpretação descontextualizada que conduza à conclusão de que aí podem ser incluídas deliberações de associações sem fins lucrativos (como pretende a recorrente).

Qual a identidade valorativa existente entre as deliberações sociais de uma sociedade comercial e as deliberações sociais de uma associação sem fins lucrativos que pudesse justificar um tratamento processualmente idêntico dos dois tipos de atos? Se a natureza comercial da deliberação impugnada deixasse de constituir o critério delimitador da competência do tribunal, passando tal critério a ser apenas a configuração estrutural do ato impugnado, então parece que a analogia poderia levar a admitir que as deliberações de uma assembleia de condóminos (sobretudo se se pensar na assembleia de condóminos de um edifício de escritórios) poderiam passar a ser impugnadas no juízo de comércio.

Estas considerações permitem reafirmar a ideia de que no âmbito da alínea d) não devem ser incluídas hipóteses de impugnação de deliberações que não tenham natureza comercial, ou seja, não provenham de órgãos de sociedades comerciais.

No caso concreto, aquela alínea não fornece, assim, suporte jurídico para que o juízo de comércio do Funchal pudesse conhecer da providência cautelar de suspensão de deliberação de uma associação patronal sem fins lucrativos.

4.6. A recorrente alegou ainda que a competência do juízo de comércio sempre se justificaria porque a requerida, enquanto associação de entidades patronais (apesar de lhe estar vedado o exercício do comércio como atividade), pratica atos objetivos de comércio. Ora, trata-se de uma alegação destituída de qualquer consistência argumentativa. No que ao presente caso interessa, está em causa apenas a prática de um ato: a deliberação impugnada (sendo irrelevante a prática de outros atos que, eventualmente, tenham natureza comercial). E, sem prejuízo da discussão da natureza de ato de comércio da deliberação social de órgão, mesmo quando este pertença a pessoa coletiva que tenha a qualidade de comerciante, a competência especializada não deve atender ao critério da comercialidade do ato identificado no tipo de ação (suspensão ou anulação de deliberações sociais). O que deve relevar para esse efeito é o tipo de pessoa coletiva cujas deliberações orgânicas são impugnadas: apenas se for qualificada como comerciante, de acordo com os critérios do art.13º do Código Comercial [...]. Neste sentido, como afirma Paula Costa e Silva: «A suspensão e a anulação de deliberações sociais de quaisquer outras pessoas coletivas que não sejam comerciantes não deve correr pelos tribunais de comércio, mas sim pelos tribunais cíveis» [Vd. https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2002/ano-62-vol-i-jan-2002/notas-e-observacoes-a-sentencas/paula-costa-e-silva-sobre-a-competencia-dos-tribunais-de-comercio/].

4.7. Num caso próximo do que se analisa nos presentes autos, no qual também se tratava de apreciar deliberações de uma associação (embora na vigência da LOFTJ), entendeu-se no acórdão do STJ, de 08.03.2001, no Proc. n.3275/00 (relator Silva Salazar), o seguinte: «Uma providência cautelar tem de ser proposta no tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquela é dependência. - Não sendo a acção principal uma acção de declaração de inexistência, nulidade ou anulação dum contrato de sociedade, mas de anulação ou declaração de nulidade de deliberação social (…) está-se fora da previsão do art.º 89 da LOFTJ, mormente das suas als. b) e d), o que afasta a competência do tribunal de comércio e determina a competência dos juízos cíveis».

4.8. Dado que o art.101º, n.1 do CPC atribui ao Supremo Tribunal de Justiça o poder para decidir sobre a fixação definitiva do tribunal competente, e tendo-se já concluído que esse tribunal não é o juízo de Comércio do Funchal, o tribunal competente será o tribunal cível.

Cabe ainda apurar se esse deverá ser o juízo central cível do Funchal ou o juízo local cível do Funchal. Face à repartição de competências estabelecida pelos artigos 117º [...] e 130º [...] LOSJ, e tendo em conta que o valor da causa é de €30.000,01, a competência pertencerá ao juízo local cível do Funchal."

[MTS]