Assédio moral;
providência cautelar; periculum in mora*
I. O sumário de RE 12/6/2019 (3772/18.2T8FAR.E1) é o seguinte:
1. O objectivo do procedimento cautelar não se confunde com o fim último da acção judicial comum. Naquele apenas se pretende a adopção de providências adequadas a assegurar a efectividade do direito ameaçado – não a declaração definitiva e a imposição do direito lesado.
1. O objectivo do procedimento cautelar não se confunde com o fim último da acção judicial comum. Naquele apenas se pretende a adopção de providências adequadas a assegurar a efectividade do direito ameaçado – não a declaração definitiva e a imposição do direito lesado.
2. O assédio moral caracteriza-se pela ocorrência de comportamentos hostis, humilhantes ou vexatórios, pela reiteração de tais comportamentos e pelas consequências na saúde física e psíquica da vítima e sobre o seu emprego.
3. A condenação não pode ser genérica e abstracta, sem qualquer concretização dos actos que o condenado deverá deixar de praticar e deixando na incerteza sobre qual o exacto alcance do caso julgado.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Quanto aos requisitos do procedimento cautelar comum, face ao disposto no art. 362.º n.º 1 do Código de Processo Civil, está em causa a adopção de uma providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Ou seja, o objectivo do procedimento cautelar não se confunde com o fim último da acção judicial comum. Naquele apenas se pretende a adopção de providências adequadas a assegurar a efectividade do direito ameaçado – não a declaração definitiva e a imposição do direito lesado. Nesta, o objectivo passa pelo conhecimento total do direito lesado, impondo a solução definitiva.
Como nota Abrantes Geraldes [In Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, Coimbra, 1998, pág. 77], «dada a natureza instrumental do procedimento cautelar e a sua dependência do resultado a alcançar através da acção principal, é óbvio que o efeito definitivo derivado do exercício do direito potestativo não pode ser obtido imediatamente através do procedimento cautelar.»
Como bem se observou na Relação de Guimarães, “o procedimento cautelar não se confunde, quanto à sua natureza, regras e objecto, com a acção adequada a reconhecer um direito, a prevenir/reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente. Naquele, não podem ser formulados, apreciados e decididos pedidos próprios de uma acção declarativa.” [Em Acórdão de 21.09.2017 (Proc. 1483/17.5T8BCL.G1), disponível em www.dgsi.pt.]
Outro dos requisitos gerais do procedimento cautelar comum consiste no fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável – periculum in mora. A propósito deste requisito, Abrantes Geraldes [Loc. cit., pág. 83.] também nota o seguinte: «Tal como ocorre com a generalidade das providências, o receio tanto pode manifestar-se antes de proposta a acção, como na sua pendência. Em qualquer das situações pode o autor solicitar a adopção da medida que julgue mais adequada a acautelar o efeito útil que através do processo principal pretenda ver reconhecido ou satisfeito. Mas não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contra-parte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.»
Por seu turno, o art. 368.º n.º 1 do Código de Processo Civil prescreve que a providência será decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
Considerou-se na decisão recorrida que, tendo a categoria profissional da Requerente sido alterada para a de Directora Técnica, conforme aditamento ao seu contrato de trabalho de 1 de Junho de 2004, não poderia o Requerido impor-lhe o exercício das funções de psicóloga, porquanto estas não seriam afins ou funcionalmente ligadas com aquela categoria.
Já se apontou que a investidura de trabalhadores em cargos de direcção e chefia constitui projecção do poder directivo pertencente ao empregador e envolve o exercício dum mandato implícito, pelo que a nomeação para um desses cargos não confere qualquer direito ou expectativa jurídica de manutenção do desempenho dos mesmos. [Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.04.1999 (Proc. 98S360), publicado em www.dgsi.pt.]
A decisão recorrida tem dificuldade em definir qual a categoria profissional da Requerente e quais as suas funções essenciais ou distintivas, porquanto nos autos não foi estabelecido o descritivo funcional das tarefas por ela desempenhadas e nos instrumentos de regulamentação colectiva aplicáveis – nomeadamente, no PRT referido no contrato de trabalho, publicado no BTE 15/1996, quer no CCT celebrado entre a CNIS e a FEPCES, publicado no BTE 39/2017 e objecto da Portaria de Extensão 289/2018, de 25 de Outubro – apesar de estar definida a categoria profissional de “Psicólogo”, não vem definida qualquer outra com a designação de “Director Técnico”.
Daí que a decisão recorrida procure definir esta eventual categoria profissional – e utilizamos o termo “eventual”, porquanto o que está em causa é o mero exercício de um mandato do poder directivo do empregador – com recurso aos arts. 3.º e 4.º do DL 2/86, de 2 de Janeiro, que aprovou “os princípios básicos a que devem obedecer os lares, com suporte em entidades públicas ou privadas, como forma de resposta social dirigida aos menores transitória ou definitivamente desinseridos do meio familiar.”
No entanto, para além de ali se consagrar a obrigação da direcção técnica realizar o “acompanhamento sistemático de cada criança”, haverá a notar que esse acompanhamento é também realizado na área da psicologia, pelo que não se pode concluir pela incompatibilidade entre as funções de direcção técnica e as tarefas funcionais do psicólogo.
Reforça esta conclusão a circunstância de a Requerente desempenhar tarefas relacionadas com a sua área de formação já há vários anos, nomeadamente nas escalas de domingo – cfr. o ponto 36 dos factos provados – realizando o acompanhamento psicológico dos utentes internados no lar de infância e juventude, justamente submetidos à sua direcção técnica.
Por outro lado, haverá a notar que o decretamento da providência constante da al. a) do dispositivo da sentença – não ser exigido à Requerente o exercício de funções de psicóloga – ultrapassa a natureza instrumental do procedimento cautelar e confunde-se com o fim último da acção judicial comum, local onde se procederá à declaração definitiva e imposição do direito lesado.
Não se vislumbrando, ainda, em que medida ocorre fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável no exercício pela Requerente daquelas funções de acompanhamento psicológico – periculum in mora – procede nesta parte o recurso.
Entendeu-se, ainda, decretar a atribuição da totalidade das funções de directora técnica do Lar de Infância e Juventude e da Creche de Faro/Jardim de Infância.
Quanto à creche/jardim-de-infância, a decisão entendeu que ocorria impedimento injustificado à prestação efectiva de trabalho, proibido pelo art. 129.º n.º 1 al. b) do Código do Trabalho.
Porém, desconhece-se qual o enquadramento contratual da acumulação de funções na direcção das duas valências – o lar e a creche/jardim-de-infância – sabendo-se apenas que esse facto ocorria há, pelo menos, oito anos. Mas sabe-se que a segurança social exigia a afectação na totalidade de uma pessoa à direcção técnica do lar, e que a Requerente estava afecta a 94,3% à direcção técnica do lar e 5,7% à creche.
Neste quadro, não se pode afirmar que o Requerido tenha obstado à prestação efectiva de trabalho por parte da Requerente, porquanto esta manteve a esmagadora maioria das suas funções, continuando com a direcção técnica do lar, onde as suas aptidões profissionais na área da psicologia são mais relevantes no acompanhamento das crianças e jovens internados.
Entendeu, ainda, a decisão recorrida condenar na atribuição à Requerente da totalidade das funções de directora técnica do Lar de Infância e Juventude, no pressuposto que a nomeação da Ma… para secretária geral da instituição, passando a “dirigir, exclusivamente na dependência da direcção, todos os seus serviços”, equivalia, na prática, à atribuição a esta trabalhadora das funções que anteriormente estavam atribuídas à Requerente, e ainda que deixou de dirigir e passou a dirigida, o que equivaleria a mudança para categoria inferior.
Mais uma vez se anota que os autos não demonstram quais as funções ou tarefas que assim foram retiradas à Requerente. Ignora-se em absoluto quais as tarefas que a Ma… passou a desempenhar e que anteriormente eram desempenhadas pela Requerente, anotando-se, de todo o modo, que a Requerente manteve a direcção técnica do lar de infância e juventude. E igualmente se ignora se a Requerente passou a estar hierarquicamente submetida à Marta Martins, sendo obrigada a cumprir as ordens e instruções por esta emitidas.
O que os autos revelam, tão só, é uma redistribuição dos poderes de direcção do empregador, que os trabalhadores exercem por mandato deste.
Apontando que, também aqui, ocorre a já apontada desadequação entre a natureza instrumental do procedimento cautelar e o fim último da acção judicial comum, e ainda que não se vislumbra o requisito de periculum in mora, igualmente nesta parte procede o recurso.
Finalmente, entendeu a decisão recorrida determinar que, sem prejuízo do poder disciplinar que lhe assiste, o Requerido tratasse a Requerente com respeito, abstendo-se de praticar actos que a humilhem, intimidem e desestabilizem o ambiente de trabalho.
A questão aqui é que a condenação é genérica e abstracta, utilizando praticamente a mesma formulação do art. 29.º n.º 2 do Código do Trabalho, não concretizando quais os actos que o Requerido deverá deixar de praticar e deixando na incerteza sobre qual o exacto alcance do caso julgado.
Se é certo que o art. 556.º n.º 1 do Código de Processo Civil admite a formulação de pedidos genéricos, nomeadamente “quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito”, também não é menos certo que se impõe a concretização do pedido através da liquidação – n.º 2. Por outro lado, o art. 609.º n.º 2 do mesmo diploma admite a condenação genérica “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade”, caso em que se condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
Nenhum destes requisitos ocorre no caso dos autos, sendo certo, de todo o modo, que os autos não são inequívocos quanto a uma atitude de desrespeito pela integridade psíquica e moral da Requerente, que continuou a manter a direcção técnica da principal valência do Requerido, o Lar de Infância e Juventude, demonstrando que, pelo menos até à instauração do procedimento disciplinar, se entendia que a trabalhadora reunia as competências técnicas para o exercício desse cargo de elevada responsabilidade.
Logo, sem prejuízo do melhor apuramento dos factos e realizar nos autos principais e à necessária concretização dos actos que eventualmente se enquadram no art. 29.º do Código do Trabalho, e que conferem direito a indemnização – n.º 4 da norma – também nesta parte procede o recurso, quer pela ilegalidade da condenação genérica e abstracta, quer pela desadequação da providência requerida à natureza do procedimento cautelar comum."
III.* [Comentário] Tanto quanto se pode perceber dos elementos constantes do acórdão, a RE decidiu bem.
Apenas duas observações:
-- Nada impede uma providência cautelar de carácter inibitório ou omissivo;
-- Nesta providência cautelar, o periculum in mora encontra-se preenchido se houver o perigo de repetição da conduta ofensiva.
MTS