"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/12/2019

Jurisprudência 2019 (136)


Pedido; causa de pedir;
alteração


1. O sumário de STJ 6/6/2019 (639/13.4TBOAZ.P1.S1) é o seguinte:

I. O pedido e a causa de pedir apenas podem ser modificados no condicionalismo previsto nos arts. 264º e 265º do CPC, não sendo admissível a modificação do objeto do processo em sede de recurso.

II. Numa ação de simples apreciação negativa na qual os RR. formularam o pedido de condenação dos Autores no pagamento de uma quantia em resultado de um acordo de revogação estabelecido entre dois interessados numa parceria relacionada com projetos imobiliários, não é admissível, na fase de recurso, sustentar a mesma pretensão pecuniária, ainda que subsidiariamente, i) no facto de tal parceria corresponder a uma sociedade irregular cuja constituição estava afetada de nulidade; ii) no facto de o referido acordo corresponder a uma cessão da participação social nessa sociedade irregular que seria nula; ou iii) no facto de a verificação da existência de uma sociedade irregular implicar a sua dissolução, seguida de liquidação.

III. Em face do objeto inicial da ação, a verificação dos efeitos decorrentes da nulidade da constituição de uma sociedade irregular não corresponde a uma mera operação de requalificação jurídica da pretensão inicial que esteja ao alcance oficioso do tribunal de recurso, antes implica a apreciação de uma realidade diferenciada nos seus contornos fácticos ou jurídicos.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] os RR. sustentaram a sua pretensão basicamente num acordo revogatório de uma parceria que traduziria uma sociedade irregular, sendo o pedido correspondente ao alegado valor da participação de II nessa parceria. Em termos muito mais simples, os RR. pretenderam extrair a condenação dos AA. da outorga de um acordo que implicaria para os AA. o pagamento da quantia de PTE 105.000.000$00.

Perante tão singela pretensão, não encontra qualquer sustentação a verdadeira modificação do objeto do processo que emerge de todos e de cada um dos pedidos subsidiários, tratando-se de questões novas que de modo algum podem inscrever-se no recurso de revista, tal como já não podiam inscrever-se no recurso de apelação, como acabou por concluir também a Relação (fls. 681).

Na realidade, partir do pressuposto de que o A. e II formaram ente si uma sociedade irregular e que, por via da declaração de nulidade, se imporia a condenação do A. na restituição de alguma quantia correspondente à participação de II nessa entidade, são ultrapassadas largamente as margens da requalificação jurídica do pedido e da causa de pedir, tal como as ultrapassam a outra pretensão subsidiária decorrente da sustentação dessa condenação na liquidação dessa entidade e na decorrente liquidação.

Limites que igualmente se mostram excedidos de forma manifesta, numa ação como esta, quando se pretende obter a condenação a partir da consideração de que o acordo constitutivo da sociedade irregular estava afetado de nulidade e que, na decorrência dessa nulidade, caberia ao tribunal considerar a dissolução dessa sociedade irregular e condenar os AA. em alguma quantia correspondente à sua liquidação.

O processo civil, em qualquer das suas fases, implica limites à dedução de pretensões ou de meios de defesa, não apenas por razões de disciplina processual, como ainda perante a necessidade de cada questão ser debatida na fase processualmente adequada. É por isso que os arts. 264º e 265º do CPC prescrevem uma forte limitação à alteração do pedido ou da causa de pedir. Salvo quando se verificar acordo das partes – que no caso inexiste – a causa de pedir apenas pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor. E, quanto ao pedido, podendo ser reduzido em qualquer altura, na falta desse acordo, apenas pode ser ampliado, mas não alterado, até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Em qualquer dos casos com uma limitação: a de que tal não implique a convolação para relação jurídica diversa da controvertida.

Os obstáculos à livre atuação das partes no âmbito do processo civil ocorrem também em sede de recurso de apelação ou de recurso de revista. Em qualquer dos casos, é vedado ao recorrente confrontar o tribunal ad quem com questões novas, a não ser que se trate de matéria que seja de conhecimento oficioso, incluindo os casos em que esteja em causa a mera aplicação de normas jurídicas, ou seja, questões de direito.

Embora não exista uma norma tão precisa quanto as dos arts. 264º e 265º do CPC, o entendimento jurisprudencial e doutrinal alinha nesse sentido, considerando, essencialmente a partir do art. 635º, que os recursos constituem mecanismos processuais que visam a impugnação de decisões proferidas por tribunais hierarquicamente inferiores, tendo como objeto a reapreciação dessas decisões e das questões nele abordadas ou que sejam de conhecimento oficioso, e não a apreciação de questões novas.

Ora, numa ação sustentada num alegado acordo revogatório de uma parceria, abarcando uma singela obrigação de pagamento de uma determinada quantia por parte de um dos interessados correspondente ao valor da participação nessa parceria, a sustentação da mesma pretensão pecuniária, no valor indicado ou mesmo em quantia a liquidar posteriormente, na nulidade do contrato inerente ao estabelecimento de uma sociedade irregular, na nulidade de uma alegada cessão de quota nessa sociedade irregular ou na dissolução e correspondente dissolução dessa mesma entidade não corresponde de modo algum a uma mera requalificação jurídica dos factos ou da pretensão, antes se inscreve na modificação total e absoluta do objeto do processo que, sendo inadmissível no recurso de apelação, também não pode ser considerada neste recurso de revista.

Contra a corrente do processo e contra o que as partes haviam discutido nos articulados, até à audiência final, as pretensões subsidiárias que os RR. deduziram, além de corresponderem a questões novas que são processualmente inadmissíveis, determinariam uma alteração do objeto do processo que está condicionada pelas regras previstas nos arts. 264º e 265º do CPC.

Assumimos aqui a justificação que, relativamente a uma situação semelhante, foi adotada no Ac. do STJ, 7-4-16, 842/10, onde se deixou exposto que “… como parece evidente e inquestionável, nada disto se passa no caso dos autos, dada a perfeita heterogeneidade – quer jurídica, quer prático-económica – entre o pedido efetivamente formulado pelo A., situado claramente no plano real da compropriedade sobre determinado património imobiliário, e o resultado da convolação operada pelo juiz, reconhecendo-lhe, não qualquer direito de natureza real sobre tais imóveis, mas antes determinada quota ou participação na sociedade que se teve por existente, face à qualificação jurídica da relação material litigiosa. Na verdade, para além de direitos reais e associativos serem realidades juridicamente bem diferenciadas, é manifesto que – mesmo no plano prático-jurídico - representam posições totalmente diversificadas quanto ao seu conteúdo e efeito prático as de comproprietário num conjunto de imóveis identificados e de sócio numa sociedade irregular que, porventura, detenha – ou haja detido – tais imóveis no património social”.
 
[MTS]