"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/12/2019

Jurisprudência 2019 (139)


Revisão de sentença estrangeira;
sentença de divórcio


1. O sumário de RL 2/7/2019 (2330/18.6YRLSB-1) é o seguinte:

I. São requisitos essenciais para a procedência da acção de revisão de sentença estrangeira, que o tribunal deve verificar oficiosamente, a existência e conteúdo da decisão revidenda e que o seu reconhecimento não conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português;

II. Normalmente, e segundo os padrões do nosso direito probatório, a demonstração da existência e conteúdo da decisão revidenda faz-se pela exibição do documento que a contém (ou de sua cópia com força probatória bastante);

III. Haverá, no entanto, de admitir outras formas de demonstração de tal requisito em função das especificidades dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, como é o caso do direito australiano em que o certificado de divórcio é o único documento apto a demonstrar a existência de uma sentença de divórcio.

IV. Nesse caso, em que da demonstração da decisão de divórcio não se evidenciam os fundamentos do divórcio, a indagação oficiosa da compatibilidade do reconhecimento com os princípios da ordem pública internacional haverá de ser feita segundo os critérios da razoabilidade e probabilidade do
standard probatório civil.

V. Em matéria de fundamentos do divórcio apenas se vislumbra a eventualidade dessa incompatibilidade nos casos de divórcio contratual ou repúdio da lei islâmica, o que seguramente não será o caso da decisão revidenda em face da tradição jurídica do Estado Australiano e de se tratar de um casamento católico.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Destinando-se o processo de revisão de sentença estrangeira a conferir eficácia em Portugal a uma ‘decisão’ proferida por entidade estrangeira sobre direitos privados (art.º 978º do CPC) é manifesto que o principal requisito da procedência de tal acção seja a invocação e prova da decisão revidenda. Não faria sentido, por constituir gritante inutilidade, atribuir eficácia a uma decisão cuja existência e conteúdo não está demonstrado.

Normalmente, e segundo os padrões do nosso direito probatório, tal demonstração faz-se pela exibição do documento que contém a decisão ou de uma sua cópia certificada, com valor probatório pleno (certidão). Isso mesmo resulta espelhado nos artigos 980º, al. a), e 984º do CPC que determinam que o tribunal verifique oficiosamente a autenticidade do “documento de que conste” a decisão.

No entanto não podemos olvidar a existência de ordenamentos jurídicos outros que não o nacional e que estes podem comportar soluções díspares e que determina o art.º 365º do nosso CCiv que “os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal”, pelo que importa considerar a possibilidade de outras formas de preencher aquele apontado requisito.

Com efeito, “ainda que no nosso ordenamento jurídico e noutros congéneres a documentação que pode ser reunida para sustentar um pedido de revisão de sentença estrangeira seja bem mais completa do que a que no caso concreto está sob análise, não é às autoridades portuguesas que cabe definir as regras que devem ser respeitadas noutros países no que concerne à certificação de actos, nem cabe aos tribunais portugueses sindicar a tramitação de processos de divórcio que correm nos tribunais de outros países” [cf. acórdão da Relação de Lisboa de 03JUL2007 (Proc. 3908/2006-7). No mesmo sentido, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, cf., ainda, acórdão do STJ de 29MAR2011 (Proc. 214/09.8YRERVR.S1).].

É esse precisamente o caso dos autos.

Resulta da informação prestada pelas autoridades australianas (que consta de fls. 49 a 51 dos autos de Revisão de Sentença Estrangeira 3908/06 arquivados neste Tribunal e de que se juntou cópia aos presentes autos) que segundo a sua lei interna e relativamente aos processos de divórcio o certificado de divórcio é o único documento passado pelo tribunal que tem valor probatório de que o casamento terminou por divórcio. Ou seja, que o certificado de divórcio é, segundo a lei australiana, o documento apto a demonstrar a existência de uma sentença de divórcio.

Em face do exposto impõe-se concluir ter o Requerente feito a demonstração da existência (‘divorce order’ de 11DEZ2008) e conteúdo (dissolução do casamento por divórcio) da decisão revidenda.

Dessa prova não resulta, porém, o conhecimento do fundamento do divórcio o que, não obstante o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras ser meramente formal (não implicando uma revisão de mérito), pode levantar obstáculos relativamente ao preenchimento do segundo dos requisitos fundamentais estabelecidos na primeira parte do art.º 984º do CPC – que o reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português (art.º 980º, al. f) do CPC).

Não obstante nada se conhecer quanto aos fundamentos do divórcio, a indagação oficiosa a levar a cabo haverá de se adaptar, segundo critérios de razoabilidade e de probabilidade próprios do standard probatório civil, aos contornos do caso, atendendo à necessidade de respeitar o direito probatório do Estado de origem da decisão, as tradições jurídicas e culturais desse mesmo Estado, os ensinamentos do Direito Comparado, e as ilações que se podem retirar quer do evidenciado nos autos quer das posições assumidas pelas partes.

Em matéria de dissolução do casamento por divórcio apenas se vislumbra a possibilidade de incompatibilidade dos seus fundamentos com a ordem pública internacional do Estado português nos casos de divórcio contratual (‘Khul’) ou repúdio (‘Talaq’) da lei islâmica situação essa cuja possibilidade de verificação no caso concreto se mostra fundadamente afastada em função quer da tradição jurídica do Estado Australiano quer em função do tipo de casamento das partes (casamento católico celebrado perante o reverendo Joseph Ruys em St. Olivier Plunket Church, segundo a certidão de casamento). Pelo que poderemos com segurança concluir pela inexistência de qualquer incompatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português no caso de procedência da acção.

Por outro lado, não foi invocado nem resulta dos autos ou do conhecimento oficial do Tribunal, que a decisão revidenda não tenha transitado em julgado, provenha de tribunal cuja competência tenha sido determinada em fraude à lei, verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, lhe possa ser oposta excepção de litispendência ou caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, tenha sido proferida em processo em que o réu não tenha sido regularmente citado ou onde não tenham sido respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes."

[MTS]