"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/12/2019

Jurisprudência constitucional (162)


Título executivo


1. TC 13/11/2019 (670/2019) decidiu

[...] Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela B., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"8. Como bem assinala o Ministério Público, a solução legal contestada nos presentes autos tem a sua origem no artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 5 de abril de 1969, que aprovou um novo regime orgânico da então denominada B.1, definida no artigo 2.º como «uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º [Caixa Geral de Aposentações e Montepio de Servidores do Estado] e 5.º [Caixa Nacional de Crédito].» O artigo 3.º dispunha que, «[c]omo instituto de crédito do Estado, incumbe à B. colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito.» E a respeito dos funcionários da B., preceituava o n.º 2 do artigo 31.º que, «[o] referido pessoal continua sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, com as modificações exigidas pela natureza específica da atividade da B. como instituição de crédito, de harmonia com o disposto no presente diploma e nos restantes preceitos especialmente aplicáveis ao estabelecimento.»

Entretanto, o diploma em que se insere a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – o Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto – transformou a B. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com o propósito expresso de a colocar em igualdade de circunstâncias com as demais instituições de crédito que operam no sistema financeiro português.

O preâmbulo do diploma é esclarecedor a esse respeito:

«Diversas e significativas modificações verificadas no sistema financeiro português desde a data da publicação dos acuais diplomas orgânicos e a alteração dos condicionalismos interno e externo em que a instituição exerce a sua atividade recomendam agora a sua profunda revisão.

Atendo-nos, unicamente, aos eventos mais marcantes dos últimos anos, impõe-se, em primeiro lugar, uma referência à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, com a consequente aplicação das regras do direito comunitário.

No plano interno, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, veio equiparar a B. aos bancos no que respeita às atividades que está autorizada a exercer.

Todo o circunstancialismo referido aponta deste modo para a sujeição da B. a um regime de direito privado ou, mais rigorosamente, para a aplicação à instituição de regras idênticas às que regem as empresas privadas do sector.

O mesmo objetivo de aproximação da B. às restantes empresas do sector levou à adoção da forma de sociedade anónima.

Ao contrário do que se estabeleceu noutros casos, considerou-se no caso da B., dada a natureza da atividade exercida, a posição e o papel que a empresa ocupa no mesmo sector, que deveria ser apenas o Estado, e não qualquer outra pessoa coletiva de direito público, o detentor do capital.

No que respeita ao pessoal, o novo regime consagra a aplicação à B. do regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo, à semelhança de solução adotada em casos idênticos, da possibilidade concedida aos trabalhadores atualmente ao serviço da instituição de optarem pela manutenção do regime a que estavam sujeitos.»


Atenta a natureza que a lei então atribuiu à B., aproximando-a das demais instituições de crédito, submetendo-a a regras de direito privado e aplicando ao seu pessoal o regime do contrato individual de trabalho, nada justifica a conclusão de que os documentos abrangidos pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, possuem um grau diferenciado de idoneidade de acertamento dos créditos neles representados.

A B. alega que é ainda uma empresa pública destinada a servir o interesse público, ao contrário das instituições de crédito privadas, que «têm como prioridade de gestão criar valor para os acionistas». Porém, não se vê de que modo tal influi no juízo sobre a maior ou menor vocação de acertamento dos documentos que titulam os seus créditos, o tertium comparationis relevante para se determinar se a solução legal é arbitrária. Na verdade, decisiva não é a finalidade prosseguida pela B., mas a forma escolhida para o efeito; sob esse ponto de vista, nada distingue os documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, de documentos particulares homólogos detidos por outras instituições de crédito, e aos quais o legislador processual civil veio a negar, com a aprovação do «novo código», força executiva.

Sublinhe-se, por último, que os documentos aqui em causa carecem da força probatória que decorreria do reconhecimento de uma especial fé pública em que estivessem investidos os funcionários da B. que os outorgam – fé pública essa que poderia justificar uma analogia com os documentos autênticos ou autenticados referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, dado que a exequibilidade destes, por comparação com os equivalentes documentos particulares simples constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor, aos quais atualmente não é reconhecida exequibilidade, radica precisamente numa especial qualidade do sujeito que os outorga ou que os certifica.

Ora, para que se pudesse falar de fé pública – ou qualidade equivalente – seria indispensável que a mesma integrasse o estatuto dos funcionários da B.. Não é esse o caso: o estatuto dos trabalhadores da B. não os distingue, nos termos da lei, dos trabalhadores das instituições de crédito privadas. Do facto de a B., enquanto sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, estar adstrita à prossecução do interesse público, não se segue que os seus funcionários, designadamente aqueles que intervêm na outorga dos documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, gozem de uma qualquer fé pública, suscetível de comunicar aos contratos abrangidos pela norma sindicada um grau de acertamento do direito exequendo que justifique a sua exequibilidade imediata, em contraste com contratos da mesma natureza celebrados por outros credores, designadamente as demais instituições de crédito.

Por tudo quanto se disse, resta concluir que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição."

[MTS]