"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/12/2019

Jurisprudência 2019 (134)


Oposição de julgados;
decisão singular*
 

1. O sumário de STJ 23/5/2019 (920/16.0T8OLH-G.E1.S2) é a seguinte:

I - A admissibilidade do recurso tem de ser aferida à luz do estatuído no CIRE, que, relativamente às impugnações judiciais em sede insolvencial, estabelece no n.º 1 do artigo 14.º um regime especial de recurso restritivo, excluindo, por regra, o recurso para o STJ.

II - O CIRE, desviando-se da regra geral estabelecida no CPC, condiciona a admissibilidade do recurso para o STJ a um pressuposto específico, quer se verifique ou não dupla conformidade decisória: ocorrer uma situação de oposição de acórdãos, a qual, numa interpretação ampla do preceito, não se cumpre com a invocação como “acórdão-fundamento” de uma decisão singular proferida.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Consideramos que o Recorrente carece de razão uma vez que a posição que defende descura, a nosso ver, duas realidades incontornáveis que caracterizam o nosso sistema de recurso enquanto garantia de justiça e meio de correcção de erros de decisão:

- a colegialidade da estrutura decisória (permitir que as partes possam recorrer à composição de um órgão – colectivo de juízes - que com as mesmas características de independência e imparcialidade acrescentem superioridade na correcção do erro da decisão impugnada);

- assentar a admissibilidade do recurso em termos precisos e perfeitamente determinados.

1. Mostra-se pacífico que, no caso, a admissibilidade do recurso tem de ser aferida à luz do estatuído no CIRE, que relativamente às impugnações judiciais em sede insolvencial estabelece no n.º1 do seu artigo 14.º, um regime especial de recurso e restritivo, excluindo, por regra, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Dispõe o citado preceito que no processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme. 

Verifica-se pois que o CIRE, desviando-se da regra geral estabelecida no Código de Processo Civil, condiciona a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a um pressuposto específico, quer se verifique ou não dupla conformidade decisória: ocorrer uma situação de oposição de acórdãos.

Assim, em caso de dupla conformidade decisória, que segundo o regime geral apenas poderia ser fundamento de impugnação para o STJ através da revista excepcional, nos termos consignados no n.º1 do artigo 672.º do CPC, o CIRE contempla somente a viabilidade do recurso normal de revista cingindo-a à oposição de acórdãos, manifestando, por isso, um claro propósito em limitar as impugnações judiciais nesta sede insolvencial [...].

Nesta perspectiva, encontrando-se afastada a via da revista excepcional, a limitação do recurso para o Supremo visada pelo legislador do CIRE não quis deixar de consagrar um dos objectivos que, pacificamente, se considera ser de incrementar com o acesso ao terceiro grau de jurisdição e que constitui uma das funções cometidas a este Supremo Tribunal: orientação e uniformização de jurisprudência por forma a incrementar uma maior certeza na aplicação do direito.

Assim sendo, tendo presente as limitações que a lei impõe à possibilidade de o recurso ser decidido individualmente pelo relator [...] (decisão que se revista de simplicidade [...]), dada a natureza da decisão singular [...] (constituindo um desvio à normal colegialidade da decisão, que caracteriza o nosso sistema de recursos e com base na qual se encontra-se estruturado), cremos que não pode deixar de se concluir que a razão de ser da exigência de oposição entre acórdãos como requisito de recorribilidade expressamente consagrado no artigo 14.º, n.º1, do CIRE, não se cumpre com uma interpretação ampla do preceito, permitindo invocar como “acórdão-fundamento” uma decisão singular proferida pelo Relator no Tribunal da Relação.

2. No que toca às invocadas inconstitucionalidades [...] do entendimento que temos por adequado apenas nos cabe salientar que a nossa Lei Fundamental pressupõe que a lei ordinária estabeleça um sistema de recursos de acordo com a própria organização da máquina judiciária, não garantindo um direito irrestrito ao recurso e, bem assim, ao acesso a um terceiro grau de jurisdição.

Por outro lado, de entre os poderes que cabem à lei ordinária, o legislador é livre de definir as circunstâncias ou termos em que os recursos são ou não são admissíveis. Nessa medida, no citado artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, mostra-se legítima a forma como se encontra circunstanciada a restrição à excepção da regra da inadmissibilidade do recurso para o STJ em sede insolvencial (quando existir oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito).

Consequentemente, o artigo 14.º n.º 1, do CIRE, interpretado nos termos expostos não viola, a nosso ver, qualquer preceito da Constituição, designadamente os indicados pelo Requerente, antes representa obediência a uma opção legítima do legislador, pelo que não se vislumbra que ocorra a apontada inconstitucionalidade."

*3. [Comentário] No actual regime de recursos em processo civil, os recursos são normalmente decididos por acórdão, mas, em alguns casos, podem ser decididos pelo relator (art. 652.º, n.º 1, al. c), 656.º e 679.º CPC). 

Perante isto, poder-se-ia dizer que a decisão singular do relator vale como acórdão, uma vez que o substitui. No entanto, talvez seja melhor entender que aquela decisão decide o recurso, mas não vale como acórdão. Em suma: há decisão, mas não há acórdão.

O decidido no acórdão do STJ tem um alcance geral, dado que é aplicável sempre que o recurso tenha por fundamento a oposição de acórdãos. Oposição de acórdãos não é nunca oposição entre um acórdão e uma decisão singular e, menos ainda, entre duas decisões singulares. Daí o principal interesse do acórdão.

MTS