-- José Joaquim Fernandes Oliveira Martins, (De novo a) Lei n.º 1-A/2020 – uma terceira leitura (talvez final?), Julgar Online Maio de 2020
"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))
29/05/2020
Legislação (194)
Covid-19
Altera as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, procedendo à quarta alteração à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, à primeira alteração à Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e à décima segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março
Altera o regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19, procedendo à primeira alteração à Lei n.º 4-C/2020, de 6 de abril
Nota: o art. 2.º L 16/2020, de 29/5, institui, através do novo art. 6.º-A, L 1-A/2020, de 19/3, um RPTE do seguinte teor:
Artigo 6.º -A
Regime processual transitório e excecional
1 — No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem -se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 — As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam -se:
a) Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção -Geral da Saúde (DGS); ou
b) Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, embora a prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas ou de parte deva sempre ser feita num tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se uma das situações referidas no n.º 4.
3 — Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza -se:
a) Através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Presencialmente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior, e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 — Em qualquer das diligências previstas nos n.º 2 e 3, as partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar -se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
5 — Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
6 — Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
7 — Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.
8 — O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 6 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo correspondente à vigência da suspensão.
9 — Os serviços dos estabelecimentos prisionais devem assegurar, seguindo as orientações da DGS e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em matéria de normas de segurança, de higiene e sanitárias, as condições necessárias para que os respetivos defensores possam conferenciar presencialmente com os arguidos para preparação da defesa.
2 — As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam -se:
a) Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção -Geral da Saúde (DGS); ou
b) Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e se for possível e adequado, designadamente se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, embora a prestação de declarações do arguido ou de depoimento das testemunhas ou de parte deva sempre ser feita num tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se uma das situações referidas no n.º 4.
3 — Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza -se:
a) Através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Presencialmente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior, e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 — Em qualquer das diligências previstas nos n.º 2 e 3, as partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar -se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
5 — Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, é garantida ao arguido a presença no debate instrutório e na sessão de julgamento quando tiver lugar a prestação de declarações do arguido ou coarguido e o depoimento de testemunhas.
6 — Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março;
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) As ações de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa;
d) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores;
e) Os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser feitas nos termos da alínea b) do n.º 2, da alínea b) do n.º 3 ou do n.º 7.
7 — Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.
8 — O disposto nas alíneas d) e e) do n.º 6 prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo correspondente à vigência da suspensão.
9 — Os serviços dos estabelecimentos prisionais devem assegurar, seguindo as orientações da DGS e da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em matéria de normas de segurança, de higiene e sanitárias, as condições necessárias para que os respetivos defensores possam conferenciar presencialmente com os arguidos para preparação da defesa.
10 — Os tribunais e demais entidades referidas no n.º 1 devem estar dotados dos meios de proteção e de higienização desinfetantes determinados pelas recomendações da DGS.
Jurisprudência estrangeira (35)
Dieselgate
BGH v. 25.5.2020 - VI ZR 252/19 decidiu o seguinte:
O comprador de um veículo equipado com um dispositivo de desactivação proibido [quando em situação de teste] tem o direito de exigir o reembolso do preço de compra pago pelo veículo; no entanto, é obrigado a descontar a vantagem da sua utilização e a colocar o veículo à disposição da VW. O comprador foi levado a assumir uma obrigação contratual que não queria através de um comportamento enganoso e doloso, que também è equivalente a uma violação dos bons costumes, do fabricante do automóvel. É nisto que consiste o seu dano.
Bibliografia (913)
-- Retzbach, Philip-René, Mittelbare Drittwirkungen und subjektive Reichweite der Schiedsvereinbarung (Duncker & Humblot: Berlin 2020)
-- Spangenberg, Kathrin, Die Klage unter gesamtschuldnerisch haftenden Streitgenossen / Prozessuale Neuregelung des Gesamtschuldnerausgleichs im Baurecht (Duncker & Humblot: Berlin 2020)
Jurisprudência 2019 (248)
Prova pericial; perito;
idoneidade e competência
1. O sumário de RG 17/12/2019 (21/16.1T8VPC-B. G1) é o seguinte:
I. Sendo o objecto legal da prova pericial a percepção ou apreciação de factos que exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui, só podem ser peritos as pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa.
II. A aferição da idoneidade e da competência de perito, quando a lei não a pré-defina de forma imperativa (v.g. reservando a realização da perícia a certas entidades ou estabelecimentos, ou aos detentores de determinados títulos ou habilitações), fica na disponibilidade do juiz.
III. Não sendo a segunda perícia uma nova e distinta perícia, mas apenas uma repetição da primeira, o seu objecto coincidirá com o daquela, isto é, com as questões de facto - indicadas pelas partes ou de iniciativa oficiosa -, a que tenha sido antes circunscrito.
IV. A obrigação legal do juiz denunciar crime de que tome conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas só existe quando o mesmo tem por verificado o dito crime, e não quando esteja perante condutas susceptíveis de preenchem apenas alguns (mas não todos) dos seus elementos constitutivos, objectivo e subjectivo.
V. Uma diligência de prova só será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.1.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo o Requerido (D. C.) alegado nos autos a indivisibilidade (por múltiplas e distintas causas) dos oito prédios rústicos dele objecto, e requerido a realização de uma perícia que a comprovasse - a que os Requerentes (A. C. e mulher, A. P.) anuíram -, veio a mesma a ser ordenada, sob a forma colegial.
Mais se verifica que, indicando cada uma das partes o seu perito - o dos Requerentes uma engenheira topógrafa, e o dos Requerido um engenheiro agrícola -, o Tribunal a quo viria a escolher como perito próprio pessoa simultaneamente licenciada em engenharia florestal e em engenharia agronómica, e que ainda frequentou a acção de formação «Avaliação de Propriedades Rústicas», ministrada pela Ordem dos Engenheiros, região Norte (tudo conforme alegado nos autos, e não impugnado por qualquer das partes).
Por fim, verifica-se que, não obstante ter sido inicialmente indicado pela secretaria como sendo «engenheiro agrónomo» (no «TERMO DE NOTIFICAÇÃO» de fls. 23 dos autos), e tendo assinado o requerimento de junção do relatório pericial na qualidade de «Engº Agrónomo»), o perito indicado pelo Tribunal a quo esclareceu depois que nunca se inscreveu em qualquer das ordem profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não obstante dispor de habilitações académicas idóneas para o efeito; e ter essa omissão radicado exclusivamente no seu entendimento de que a dita inscrição não seria «condição necessária para executar qualquer função ou para me candidatar a qualquer concurso ou proposta de emprego», não se onerando com o pagamento de «uma jóia e cota anual».
Será esta falta de inscrição na Ordem dos Engenheiros, ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos, do perito nomeado pelo Tribunal a quo, suficiente para que se possa afirmar que não possui idoneidade e competência para a matéria dos autos ?
Dir-se-á, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que para se poder concluir desse modo seria necessário que, no caso dos autos, a lei imperativamente reservasse a realização da perícia em causa a quem detivesse o título de engenheiro; ou que a lei expressamente afirmasse que a apreciação da divisibilidade ou indivisibilidade de prédios rústicos constituísse um acto próprio e exclusivo de uma qualquer engenharia, que identificasse.
Ora, e compulsada nomeadamente a legislação citada pelo Requerido (D. C.) para o efeito, faz-se da mesma outra interpretação, isto é, se bem que afirme que a prática de actos de engenharia está reservada a engenheiros (isto é, a quem, dispondo de uma prévia habitação académica para o efeito, se haja inscrito numa das respectivas ordens profissionais), e que aqueles «são os constantes da Lei n.º 31/2009, de 3 de Julho, e de outras leis que especialmente os consagram» (conforme art. 7.º, n.º 2 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não define em qualquer preceito como acto próprio e exclusivo da actividade de engenharia os implicados na perícia em causa nos autos.
Por outras palavras, se bem que se contenha na actividade própria de um engenheiro «a aplicação das ciências e técnicas respeitante às diferentes especialidades de engenharia nas atividades de investigação, conceção, estudo, projeto, fabrico, construção, produção, avaliação, fiscalização e controlo de qualidade e segurança, peritagem e auditoria de engenharia, incluindo a coordenação e gestão dessas atividades e outras com elas relacionadas» (conforme art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 123/2015, de 2 de Setembro), não está dito que a determinação da indivisibilidade de prédios rústicos integre necessariamente aquela actividade; e, mais importante, que lhe fique reservada de forma exclusiva (por mais nenhum outro saber ou especialidade - que não uma qualquer engenharia - ser idóneo ou competente para o efeito).
Dir-se-á ainda que o facto da Ordem dos Engenheiros, região Norte, ter ministrado uma acção de formação em avaliação de propriedades rústicas (aberta à frequência de engenheiros, e não engenheiros) inculca precisamente o contrário, pois não faria sentido que, cobrando por essa formação, e de forma acrescida a não engenheiros, defendesse que o formando que integrasse este último grupo não poderia depois rentabilizar os conhecimentos ministrados e adquiridos, em eventual prestação por ele próprio de um tal serviço a terceiros.
Dir-se-á, igualmente, que as respostas da Ordem dos Engenheiros (fls. 108), e da Ordem dos Engenheiros Técnicos (fls. 111, verso) juntas ao autos se limitam, respectivamente, a concluir que se está «igualmente perante a prática de um ato de engenharia sem a devida competência para tal», e que o perito nomeado pelo tribunal não preenche as condições para «efeitos de candidatura como perito judicial», precisamente por falta de inscrição em qualquer uma destas ordens profissionais; mas fizeram-no de forma absolutamente conforme com a concreta e precisa questão que, prévia e exclusivamente no que ora nos interessa) lhes foi colocada pelo Requerido (D. C.), isto é, se «esse mesmo cidadão, não obstante não se encontrar inscrito na Ordem dos Engenheiros [ou na Ordem dos Engenheiros Técnicos], está habilitado à realização de perícias no âmbito de um processo judicial».
Ora, reitera-se, o que está em causa nos autos não é a qualidade de perito judicial (isto é, dos que integram lista oficial da Relação a que pertence o Tribunal a quo, e limitada a perícias de engenharia civil e arquitectura), mas sim o carácter necessariamente reservado a uma qualquer engenharia (isto é, dela imperativamente exclusiva) da concreta perícia realizada; e, quanto a isso, nada foi esclarecido pelas informações prestadas pelas duas ordens profissionais em causa.
Concorda-se, assim, com o ajuizado no despacho recorrido, quando no mesmo se afirma que «não é legalmente exigido – ao contrário do que ocorre nos casos previstos no artigo 467.º, n.º 3 do CPC - em lado algum que o perito tenha o grau de engenheiro, mas apenas que tenha “idoneidade e competência na matéria em causa”».
Concorda-se, assim, com o ajuizado no despacho recorrido, quando no mesmo se afirma que «não é legalmente exigido – ao contrário do que ocorre nos casos previstos no artigo 467.º, n.º 3 do CPC - em lado algum que o perito tenha o grau de engenheiro, mas apenas que tenha “idoneidade e competência na matéria em causa”».
Ora, considerando que o perito indicado possui, não uma, mas uma dupla licenciatura em engenharia - florestal e agronómica -, que qualquer delas está relacionada com a exploração de prédios rústicos, e que beneficiou ainda de uma formação em avaliação de propriedades rústicas, ministrada pela delegação do Norte da Ordem dos Engenheiros, não se tem por demonstrada a alegada falta de idoneidade e competência para intervir na perícia colegial realizada nos autos.
Dir-se-á ainda que, importando «aferir (…) se o referido perito se encontra habilitado, face às suas reais qualificações, para proceder à realização da perícia efectuada no âmbito dos presentes autos» (Ac. da RC, de 08.11.2016, Moreira do Carmo, Processo n.º 918/12.8TBCBR.C1), independentemente da sua não inscrição em qualquer uma das ordens profissionais que representam os engenheiros no nosso país, não se crê aqui aplicável o único acórdão citado pelo Requerido (D. C.) em abono da sua posição (precisamente, o acabado de reproduzir).
Com efeito, o que nele estava em causa era a intervenção, como perito, de um «mero agente técnico de engenharia e arquitectura», em confronto com dois engenheiros civis, e não alguém duplamente licenciado em engenharia, sendo que qualquer delas com óbvio reporte à matéria objecto da perícia.
Não se vê, assim, razão para revogar a decisão do Tribunal a quo, quando o mesmo concluiu pela idoneidade e competência para a matéria da causa do perito que antes nomeara para intervir em seu nome a perícia colegial realizada nos autos."
[MTS]
Com efeito, o que nele estava em causa era a intervenção, como perito, de um «mero agente técnico de engenharia e arquitectura», em confronto com dois engenheiros civis, e não alguém duplamente licenciado em engenharia, sendo que qualquer delas com óbvio reporte à matéria objecto da perícia.
Não se vê, assim, razão para revogar a decisão do Tribunal a quo, quando o mesmo concluiu pela idoneidade e competência para a matéria da causa do perito que antes nomeara para intervir em seu nome a perícia colegial realizada nos autos."
[MTS]
28/05/2020
Jurisprudência 2019 (247)
Acção popular;
legitimidade activa
I. O sumário de RG 17/12/2019 (6324/17.0T8GMR-A.G1) é o seguinte:
1- Apenas as pessoas colectivas referidas nos artºs 52º da CRP e 2º, nº 1 da Lei 83/95 têm legitimidade para proporem a acção popular civil.
2- O artº 2º, nº 1 (parte final) não amplia as categorias das pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Banco (…) Sa, intentou acção com processo comum, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 5, da comarca de Braga, contra (…) e esposa, (..) que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca DE (…)
Pediu:
“a) Ser reconhecida à A., como parte interessada e legítima neste pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 1281.º do Código Civil, o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º deste articulado, condenando-se os RR. no reconhecimento desse direito;
b) Serem os RR. condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A., a demolir o muro construído no mesmo caminho e a abster-se de praticar quaisquer outros factos que impeçam ou condicionem o acesso ao prédio do A., assim cessando a violação do direito de propriedade e posse do A.; [...]
Em 27.11.2018 foi proferido despacho:
“Nos presentes autos propostos como acção comum, a Autora pede, entre outras coisas, sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).
Na sequência de convite dirigido pelo tribunal por despacho de 11.09.2018, veio a Autora aperfeiçoar a sua petição inicial (fls. 73 e ss.) alegando os pressupostos de facto de que depende a qualificação do caminho em apreço como público.
Uma vez que a pretensão a Autora compreende o reconhecimento da natureza pública de um caminho, questão que se encontra protegida pela previsão legal do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto que regula o direito de participação procedimental e de acção popular, o processo deve seguir as especificidades previstas neste diploma legal.
Termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 6º, n.º 2 do C.P.C., determino:
- a alteração da espécie dos presentes autos para acção popular; [...]”.
Cumpre decidir. [...]
A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.
Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.
Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular” são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
Este é o objecto da tutela da acção popular.
Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC.
Segundo ele, sob a epígrafe “Acções para a tutela de interesses difusos”:
“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”.
Desta previsão especial resulta que apenas secundariamente viria ao caso aludir ao disposto no artº 30º do CPC que define o conceito de legitimidade em termos genéricos, assim, para qualquer procedimento judicial.
No despacho em que se decidiu pela improcedência da nulidade arguida pelo recorrente, reconhece-se a legitimidade da A para propor a acção popular através da causa de pedir que alegou, embora a considere uma sociedade comercial e não um cidadão, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.
Para o efeito, socorre-se do artº 2º, nº 1 (parte final) que legitima a titularidade do direito procedimental de participação popular e do direito à acção popular independentemente de se ter ou não interesse directo na demanda:
“Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.
Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).
Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” [...], sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” [...].”
Não podemos concordar com estas asserções.
É que nesta parte do normativo o legislador não amplia as categorias de pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
Unicamente confere legitimidade a quem directamente refere e que não tendo qualquer benefício pessoal com a tutela do interesse difuso não deixa de prosseguir um interesse pluri-subjectivo como fim primeiro e principal.
Nos termos do decidido no acórdão do STA de 12.07.2016, (procº 0838/16;www.dgsi.pt):
“Expõe-se, lapidarmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.04.2003, processo n.º 047545:
“I - A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa.
II - O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos. A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
II - Sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjectivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas colectivas, um interesse difuso, que é a refracção em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse colectivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.”
O mesmo se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, no processo n° 05B2578:
“Não é, portanto, qualquer interesse meramente individual e egoístico que pode estar na base de uma acção popular.
Muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular para intentar tal acção popular, os direitos que se pretende ver tutelados deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses subjacentes devem assumir um cunho meta-individual.”
Ou seja, a expressão “independentemente de terem ou não interesse directo na demanda” significa que o autor pode não ter interesse directo na demanda. Não significa que só o autor tenha um interesse directo da demanda.
Pressuposto essencial para poder ser usado o meio “acção popular” é que haja um interesse difuso ou colectivo a defender que pode coincidir ou não com o interesse individual.
O simples interesse individual legitima o uso de outros meios processuais que não a acção popular.
Em concreto em relação às pessoas colectivas — e em consonância com a ideia mestra de que a acção popular serve para defender em juízo interesses difusos ou colectivos - a lei refere que só têm legitimidade activa as pessoas colectivas que, tendo personalidade jurídico, “incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate” – alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que não é o caso da autora Construções A..., Lda., uma sociedade industrial, com fins lucrativos e que, por isso, não tem por objecto social a defesa de interesses difusos ou colectivos.
A lei exclui, de resto, do leque de pessoas colectivas com legitimidade para intentarem a acção popular as que exerçam “qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” — alínea c) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que bem se compreende, para evitar que sob o capa da defesa de interesses colectivos se vise, em exclusivo, a defesa de interesses particulares, concorrentes com outros igualmente particulares, beneficiando das vantagens que a acção popular traz, em particular no que diz respeito a custas – artigo 20º da Lei 83/95.”. [...]
Ora, a A é uma sociedade comercial cujo objecto social principal é a actividade bancária, obviamente com intuito lucrativo.
Por seu turno, na acção está em causa a alegada existência de caminho público de acesso ao seu prédio e a construção pelos RR de um muro e a colocação pelos mesmos de um portão nesse domínio público que condiciona o trânsito de pessoas e viaturas a esse prédio.
Ainda que assim seja, o reconhecimento da existência desse caminho é meramente instrumental do interesse e fim prosseguido pelo A que se esgota na sua esfera privada: manter incólumes as faculdades que o direito de propriedade lhe pode proporcionar, como, de resto, o confirma a ultima pretensão no sentido da compensação económica em virtude da violação estrita desse direito. Por um lado constata-se o intuito e o objectivo de se exercer e efectivar um direito individual, subjectivo. Por outro lado, sem qualquer cunho comunitário, colectivo ou supra individual, como exige o objecto de tutela da acção popular.
Por tudo isto a A nunca teria legitimidade para intentar qualquer acção popular civil (artº 12º, nº 2 da Lei 83/95) com os fundamentos que arrolou.
Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso na parte em que pretende a revogação do primeiro despacho recorrido, sendo certo que o conhecimento da segunda parte do recurso encontra-se prejudicado já que a respectiva pretensão é formulada subsidiariamente (artºs 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, in fine, do CPC)."
[MTS]
1- Apenas as pessoas colectivas referidas nos artºs 52º da CRP e 2º, nº 1 da Lei 83/95 têm legitimidade para proporem a acção popular civil.
2- O artº 2º, nº 1 (parte final) não amplia as categorias das pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Banco (…) Sa, intentou acção com processo comum, do Juízo Central Cível de Guimarães, Juiz 5, da comarca de Braga, contra (…) e esposa, (..) que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca DE (…)
Pediu:
“a) Ser reconhecida à A., como parte interessada e legítima neste pedido, nos termos do n.º 2 do artigo 1281.º do Código Civil, o direito de propriedade sobre o prédio identificado no artigo 1.º deste articulado, condenando-se os RR. no reconhecimento desse direito;
b) Serem os RR. condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A., a demolir o muro construído no mesmo caminho e a abster-se de praticar quaisquer outros factos que impeçam ou condicionem o acesso ao prédio do A., assim cessando a violação do direito de propriedade e posse do A.; [...]
Em 27.11.2018 foi proferido despacho:
“Nos presentes autos propostos como acção comum, a Autora pede, entre outras coisas, sejam os Réus …condenados a remover o portão colocado no caminho público de acesso ao imóvel do A. (…).
Na sequência de convite dirigido pelo tribunal por despacho de 11.09.2018, veio a Autora aperfeiçoar a sua petição inicial (fls. 73 e ss.) alegando os pressupostos de facto de que depende a qualificação do caminho em apreço como público.
Uma vez que a pretensão a Autora compreende o reconhecimento da natureza pública de um caminho, questão que se encontra protegida pela previsão legal do n.º 2 do artigo 1º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto que regula o direito de participação procedimental e de acção popular, o processo deve seguir as especificidades previstas neste diploma legal.
Termos em que, ao abrigo do disposto no art.º 6º, n.º 2 do C.P.C., determino:
- a alteração da espécie dos presentes autos para acção popular; [...]”.
Cumpre decidir. [...]
A acção popular tem como fim a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções de interesses previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição (artº 1º, nº 1 da Lei 83/95, de 31.08) ou, ainda, nas palavras daquele normativo, a promoção, o asseguramento e a defesa dos mesmos.
Quem está legitimado para promover a acção popular, a par da participação procedimental em procedimentos administrativos, segundo o disposto no artº 2º da Lei 83/95, de 31.08, sob a epígrafe “Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito de acção popular”, são os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras de interesses previstos quer no artº 52º, nº 3 da CRP quer no artº 1ª da mesma lei.
Os interesses prosseguidos pelo artº 52º, nº 3 da CRP, sob a epígrafe “Direito de petição e direito de acção popular” são: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural, a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
Na Lei 83/95, directamente, identificam-se grosso modo os mesmos interesses, ainda que de forma não taxativa e inteiramente coincidente em termos nominais: a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.
Este é o objecto da tutela da acção popular.
Mas o que da conjugação destas normas resulta seguramente, depois do nº 1 do citado artº 52 referir-se a “todos os cidadãos” e no seu nº 3 a “a todos, pessoalmente” é que para além dos cidadãos, pessoas singulares no gozo dos direitos civis e políticos apenas as pessoas colectivas que representem aqueles, as referidas no nº 3 do preceito constitucional e do nº 1 do artº 2º estão autorizadas a instaurar e mover esta espécie processual, ou seja, “associações de defesa dos interesses em causa” ou “as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior”, consoante o preceito, e, atento à natureza de alguns desses interesses naturalmente, segundo o nº 2 do artº 2º, “as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição”.
Acresce, no domínio da tutela dos interesses difusos, a legitimidade para a as acções e procedimentos cautelares é configurada em termos idênticos no artº 31º do CPC.
Segundo ele, sob a epígrafe “Acções para a tutela de interesses difusos”:
“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”.
Desta previsão especial resulta que apenas secundariamente viria ao caso aludir ao disposto no artº 30º do CPC que define o conceito de legitimidade em termos genéricos, assim, para qualquer procedimento judicial.
No despacho em que se decidiu pela improcedência da nulidade arguida pelo recorrente, reconhece-se a legitimidade da A para propor a acção popular através da causa de pedir que alegou, embora a considere uma sociedade comercial e não um cidadão, nem uma associação ou fundação defensora do interesse na manutenção da utilização do caminho.
Para o efeito, socorre-se do artº 2º, nº 1 (parte final) que legitima a titularidade do direito procedimental de participação popular e do direito à acção popular independentemente de se ter ou não interesse directo na demanda:
“Efectivamente, a leitura atenta da parte final do n.º 1 do artigo 2º da Lei 83/95, onde consta …independentemente de terem ou não interesse direto na demanda… dá-nos um vislumbre da intenção do legislador que, por força do especial interesse público na tutela dos valores protegidos pela acção popular, entendeu atribuir legitimidade a entidades que não poderiam propor a acção se nos ativéssemos ao regime mais estrito previsto pelo artigo 30º do CPC, onde se exige um interesse próprio e directo do autor na demanda judicial.
Por isso, as regras sobre legitimidade previstas pela Lei 83/95 devem ser tidas como complementares do regime previsto no artigo 30º do Código de Processo Civil, conferindo a possibilidade de zelar pela tutela jurídica de interesses supra individuais, não apenas aos interessados directos que, como o Autor, têm simultaneamente um interesse no reconhecimento da condição pública do caminho, também a outros cidadãos e entidades públicas (associações, fundações, órgãos da administração local e também ao M.ºP.º, entre outros).
Este é, salvo mais avisado entendimento, o sentido que melhor se adequa à letra e ao espírito do artigo do n.º 3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa – que alude “…a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa…” [...], sem distinguir entre pessoa singular ou colectiva - e da Lei n.º 83/95 que, como bem lembra o M.º P.º no artigo 13º da douta contestação, abriu “… portas larguíssimas ao exercício de acção popular para protecção dos interesses previstos no n.º 2 do artigo 1º da LAP” [...].”
Não podemos concordar com estas asserções.
É que nesta parte do normativo o legislador não amplia as categorias de pessoas colectivas com legitimidade para a acção popular.
Unicamente confere legitimidade a quem directamente refere e que não tendo qualquer benefício pessoal com a tutela do interesse difuso não deixa de prosseguir um interesse pluri-subjectivo como fim primeiro e principal.
Nos termos do decidido no acórdão do STA de 12.07.2016, (procº 0838/16;www.dgsi.pt):
“Expõe-se, lapidarmente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.04.2003, processo n.º 047545:
“I - A acção popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual activa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa.
II - O objecto da acção popular é, antes de mais, a defesa de interesses difusos. A acção popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses.
II - Sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjectivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjectivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas colectivas, um interesse difuso, que é a refracção em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse colectivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.”
O mesmo se defende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2005, no processo n° 05B2578:
“Não é, portanto, qualquer interesse meramente individual e egoístico que pode estar na base de uma acção popular.
Muito embora a lei atribua legitimidade processual a qualquer pessoa singular para intentar tal acção popular, os direitos que se pretende ver tutelados deverão ter um carácter comunitário, ou seja, um valor pluri-subjectivo e os interesses subjacentes devem assumir um cunho meta-individual.”
Ou seja, a expressão “independentemente de terem ou não interesse directo na demanda” significa que o autor pode não ter interesse directo na demanda. Não significa que só o autor tenha um interesse directo da demanda.
Pressuposto essencial para poder ser usado o meio “acção popular” é que haja um interesse difuso ou colectivo a defender que pode coincidir ou não com o interesse individual.
O simples interesse individual legitima o uso de outros meios processuais que não a acção popular.
Em concreto em relação às pessoas colectivas — e em consonância com a ideia mestra de que a acção popular serve para defender em juízo interesses difusos ou colectivos - a lei refere que só têm legitimidade activa as pessoas colectivas que, tendo personalidade jurídico, “incluírem nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate” – alíneas a) e b) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que não é o caso da autora Construções A..., Lda., uma sociedade industrial, com fins lucrativos e que, por isso, não tem por objecto social a defesa de interesses difusos ou colectivos.
A lei exclui, de resto, do leque de pessoas colectivas com legitimidade para intentarem a acção popular as que exerçam “qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais” — alínea c) do artigo 3º da Lei 83/95, de 31.08.
O que bem se compreende, para evitar que sob o capa da defesa de interesses colectivos se vise, em exclusivo, a defesa de interesses particulares, concorrentes com outros igualmente particulares, beneficiando das vantagens que a acção popular traz, em particular no que diz respeito a custas – artigo 20º da Lei 83/95.”. [...]
Ora, a A é uma sociedade comercial cujo objecto social principal é a actividade bancária, obviamente com intuito lucrativo.
Por seu turno, na acção está em causa a alegada existência de caminho público de acesso ao seu prédio e a construção pelos RR de um muro e a colocação pelos mesmos de um portão nesse domínio público que condiciona o trânsito de pessoas e viaturas a esse prédio.
Ainda que assim seja, o reconhecimento da existência desse caminho é meramente instrumental do interesse e fim prosseguido pelo A que se esgota na sua esfera privada: manter incólumes as faculdades que o direito de propriedade lhe pode proporcionar, como, de resto, o confirma a ultima pretensão no sentido da compensação económica em virtude da violação estrita desse direito. Por um lado constata-se o intuito e o objectivo de se exercer e efectivar um direito individual, subjectivo. Por outro lado, sem qualquer cunho comunitário, colectivo ou supra individual, como exige o objecto de tutela da acção popular.
Por tudo isto a A nunca teria legitimidade para intentar qualquer acção popular civil (artº 12º, nº 2 da Lei 83/95) com os fundamentos que arrolou.
Pelo exposto deve ser julgado procedente o recurso na parte em que pretende a revogação do primeiro despacho recorrido, sendo certo que o conhecimento da segunda parte do recurso encontra-se prejudicado já que a respectiva pretensão é formulada subsidiariamente (artºs 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, in fine, do CPC)."
[MTS]
27/05/2020
Jurisprudência 2019 (246)
Acidente de trabalho;
competência material*
1. O sumário de RE 19/12/2019 (435/19.5T8STR-A.E1) é o seguinte:
I – Visando a autora com a ação a condenação da ré no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil, o facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.
II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89]. [...]
II - A aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89]. [...]
No caso em apreço, a questão suscitada tem a ver com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.
Dispõe o artigo 64° do CPC [...] que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», acrescentando o artigo 65°, do mesmo Código, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer do Tribunal de Conflitos, quer do STJ, quer do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, sendo que em sede da indagação a proceder em termos de se determinar a competência material do tribunal é irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da ação, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão [Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, proc. 07/12 e os acórdãos do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391, e 12.02.2009, proc. 09A0078].
Nestas condições, importa recortar, com precisão, o efeito jurídico que a recorrente pretende obter com a ação e o ato ou facto – a causa petendi – de que, no seu entender, o direito indemnizatório alegado procede.
A autora/recorrida visa com a ação a condenação da ré/recorrente, no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais causados pela privação de atos sexuais com o marido que, por ter sido vítima de acidente de trabalho, sofreu lesões que se agravaram e lhe causaram disfunção eréctil.
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Da análise do pedido e da causa de pedir, não resulta que a A. configure a acção como emergente de acidente de trabalho, mas como de responsabilidade civil, em que o acidente de trabalho sofrido pelo marido fundamenta o pedido que deduz contra a seguradora responsável pelos danos decorrentes do acidente. Neste caso, afigura-se irrelevante os termos em que ocorreu o acidente de trabalho (já decidido no âmbito do processo próprio), mas apenas as sequelas que dele derivaram e que terão reflexo na esfera jurídica da A., e que serão geradoras de danos.»
Salvo o devido respeito, não é assim.
O facto que constitui a causa de pedir da qual a autora faz derivar o seu direito à indemnização é efetivamente o acidente de trabalho sofrido pelo seu marido.
Na verdade, percorrendo a petição inicial, verificamos que até ao artigo 20º a autora se limita a descrever o evento ocorrido com o seu marido e as circunstâncias que caracterizam o mesmo como acidente de trabalho, nos artigos 21º a 41º refere as repercussões que a incapacidade atribuída ao marido (disfunção eréctil) teve na relação do casal, e nos restantes artigos quantifica os danos alegadamente sofridos.
Ou seja, a autora peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais que fundamenta nas lesões e sequelas sofridas pelo marido em consequência de acidente de trabalho, da responsabilidade da recorrente, sem que alegue um único facto ilícito gerador de responsabilidade civil nos termos do artigo 483º do Código Civil.
Não se trata aqui da análise de uma situação autonomizada – o direito de indemnização reclamado pela autora - em relação a toda a factualidade consubstanciadora que conduziu a esse direito, isto é, o acidente de trabalho.
E que assim é, foi reconhecido pelo próprio Tribunal a quo, quando na audiência preliminar, a respeito da identificação do objeto do litígio, fez consignar que «[a] presente acção destina-se a responsabilizar a CC – Companhia de Seguros, S.A., pelos danos não patrimoniais causados em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima o marido (da autora), …, e que lhe causou disfunção eréctil» [...].
Só assim se compreende, outrossim, que a autora tenha demandado a ré seguradora, por via da transferência das responsabilidades através da celebração obrigatória do contrato de seguro havido com a entidade patronal em sede de acidentes de trabalho.
Ora, a aptidão para o tratamento das questões específicas relativas a acidentes de trabalho, e doenças profissionais encontra-se deferida aos Tribunais de Trabalho por força do disposto no artigo 126º, nº 1, alínea c) da LOSJ.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 30.04.2019 [...], «[c]onsagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados».
O recurso merece, pois, provimento."
*3. [Comentário] O art. 126.º, n.º 1, al. c), LOSJ estabelece que "compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível [...] das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais". Os danos indirectos provocados num terceiro não são necessariamente "questões emergentes de acidentes de trabalho". No entanto, o mais importante é uma constância jurisprudencial sobre a questão, evitando discussões infindáveis sobre soluções que não são inequívocas nem num sentido, nem no outro.
MTS
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