"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/03/2021

Jurisprudência 2020 (160)


Processo de insolvência; venda de bens;
audição de credor


1. O sumário de RC 7/9/2020 (1958/15.0T8LRA-K.C1) é o seguinte:

1. O incumprimento da audição do credor garantido, nos termos previstos no nº 2 do artigo 164º CIRE, não afeta, por regra, a eficácia da venda de bens onerados com direitos reais de garantia.

2. Podendo tal omissão, em abstrato, influir no resultado do processo para o credor garantido, suscetível de gerar uma nulidade processual nos termos do artigo 195º CPC e de acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos respetivos pressupostos carece de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto.

3. Servindo a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade de requerer a anulação da venda só faz sentido se se mostrar assegurada nos autos a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não colocando o Apelante em causa o juízo efetuado pela decisão recorrida ao considerar verificado que o credor Banco I..., S.A., com garantia real sobre o bem a vender, não foi regulamente ouvido para efeitos do artigo 164º, nºs. 2 e 3, do CIRE, discute-se, tão só, no presente recurso, se a ausência de tal notificação regular poderá acarretar, ou não, a declaração de nulidade da referida venda, questão a que a jurisprudência não vem dando resposta unânime.

No âmbito do processo executivo dispõe o nº 1 do artigo 839º CPC que a venda “fica sem efeito” (…) al. c) Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195º”, sendo que, segundo esta norma, “a prática de ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame da causa”.

Regendo-se o processo de insolvência pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do Código de Insolvência (artigo 17º do CIRE), discute-se na jurisprudência se a omissão da audição do credor hipotecário prevista no nº 2 do artigo 146º se encontrará sujeita ao regime previsto nas disposições conjugadas dos artigos 839º, nº 1, al. c), e 195º, ambos do CPC, ou se se mostrará afastada pelo que especialmente se mostra regulado no artigo 163º do CIRE relativamente à violação das formalidades previstas nos artigos 161º e 162 do CIRE. [...]

Fazendo o artigo 161º do CIRE depender do consentimento da comissão de credores (ou se esta não existir, da assembleia de credores) a prática de atos jurídicos que assumam “especial relevo” para o processo de insolvência, entre os quais se encontram os atos de alienação de bens da massa por preço igual ou superior a 10.000 € e que representem, pelo menos, 10% da massa insolvente, o legislador entendeu que a falta de tal consentimento (ou a violação do demais disposto nos artigos 161º e 162º) “não prejudica a eficácia dos atos do administrador de insolvência, exceto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

A regra geral é, a este propósito, “a de que a violação da lei, traduzida na falta de consentimento necessário para a prática do acto, nos termos em que ocorreu, e de que o administrador devia munir-se, não afeta a eficácia do acto, o que significa a inoponibilidade do vício à contraparte. Só assim não será quando as obrigações se projetam na massa e a vinculam por excederem manifestamente as assumidas pela outra parte [Luís A. Carvalho Martins e João Labareda, [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª ed., Quid Juris, Lisboa 2013], p.646.]”.

Contudo, se o legislador assumiu expressamente a manutenção da eficácia do acto e quanto às irregularidades praticadas com violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE, nada afirma relativamente às consequências da omissão da audição do credor hipotecário imposta no nº 2 do artigo 164º.

Vejamos, assim, se se justifica a extensão da aplicabilidade, por analogia, das consequências previstas no artigo 163º do CIRE à omissão da formalidade prevista no nº 2 do artigo 164º.

Atribuindo a escolha da modalidade da alienação dos bens ao administrador de insolvência – podendo optar por qualquer uma das admitidas em processo executivo ou por qualquer outra que tenha por mais conveniente – (artigo 164º, nº 1), dispõe o legislador no nº 2 de tal norma que o credor com garantia real sobre o bem a alienar é “sempre ouvido” sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.

No nº 3 encontramos a razão de ser, o objetivo de tal audição: facultar ao credor a possibilidade de, no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado.

Tal como sucede no âmbito do processo executivo, o CIRE impõe a audição prévia dos credores com garantia real sobre o bem a vender, acerca da modalidade de alienação, audição esta que não é vinculativa. Assim como, tal como resulta da última parte do nº 3 do artigo 164º, se informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada, o credor vier a apresentar uma proposta (necessariamente de valor superior), o administrador de insolvência nem sequer é obrigado a aceitar tal proposta, ficando, tão só, obrigado a “colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior”.

No seguimento da posição adotada por Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda [Obra citada, pp.650-653], e face ao modo como o legislador encara a não aceitação da proposta efetuada pelo credor garantido – a venda feita pelo administrador é válida e eficaz –, a jurisprudência maioritária vem entendendo que, também no caso de o administrador proceder à venda sem prévia notificação do valor fixado ou projetado ao credor garante, a omissão de tal formalidade não afetará a venda realizada que permanecerá válida e eficaz, acarretando, tão só, a responsabilidade do administrador perante o credor pelo diferencial entre o valor obtido e o total do crédito garantido, tal como se acha previsto no artigo 163º CIRE.

Contudo, como salientam David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, não só o artigo 163º do CIRE consagra uma regra excecional, oposto ao regime regra das invalidades dos atos processuais, contido nos arts. 195º e ss. do CPC, como se encontram em jogo interesses distintos: “Enquanto o artigo 161º CIRE tutela interesses difusos, o artigo 164º, nº 2, do mesmo diploma tutela posições jurídicas individuais associadas à posição de credor garantido, isto é, específicas garantias processuais construídas e destinadas a assegurar a eficácia dos direitos reais de garantia em causa [David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, [“A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º, nº2, do CIRE”, in Revista de Direito da Insolvência, nº2, 2018, Almedina]pp.22-24, em especial, nota 14]. [...]

Contudo, a verificação dos pressupostos da nulidade processual não se basta com uma apreciação em abstrato, carecendo de ser aferida em função das circunstâncias do caso concreto, de modo a poder concluir-se que a irregularidade verificada era suscetível de influir na decisão da causa [...].

Ora, relativamente a tal questão temos por relevantes os seguintes factos, que se podem ter por assentes face aos elementos constantes do presente apenso e da consulta do processo principal:

1. A 8 de outubro de 2017 o credor hipotecário Banco I... teve conhecimento, por email que lhe foi enviado pelo AI, que este havia celebrado “um contrato promessa de compra e venda pelo preço de 35.000,00 €, admitindo-se para breve a celebração da correspondente escritura” (facto admitido pelo Banco Invest no seu requerimento junto aos autos).

2. A 02 de novembro de 2017 o AI procedeu à venda por negociação particular do imóvel em causa, pelo preço de 35.000 €, ao aqui apelante.

3. O Banco I... veio invocar a nulidade decorrente da sua falta de notificação para efeitos do artigo 164º, nº 2 do CIRE, por requerimento enviado a 27 de dezembro de 2017.

De tal factualidade desde logo ressalta que, apesar de a comunicação efetuada pelo AI não ter respeitado as formalidades legais (questão que cai fora do âmbito do presente recurso por o Apelante se ter conformado com a decisão que relativamente à mesma foi proferida pela 1ª instância), o certo é que pelo email que lhe foi enviado pelo AI a 08 de outubro de 2017 – mais de um mês antes da formalização da venda –, o credor garantido teve conhecimento do preço e da modalidade pela qual a venda se iria realizar, sem que tenha demonstrado qualquer interesse na respetiva aquisição, remetendo-se ao silêncio. Atentar-se-á, ainda, que não bastaria qualquer manifestação de interesse, uma vez que a lei só lhe dá relevância quando aquela se concretize numa proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada, proposta esta que “só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta (…)”.

Ou seja, se a notificação em falta não visa a obtenção do consentimento do credor garantido, do qual a lei prescinde, mas unicamente possibilitar que o credor contribua para a sua venda pelo melhor valor, facultando-lhe a sua aquisição (por si ou por terceiro) por um preço superior, então, só no caso de o credor pretender apresentar efetivamente uma proposta concreta, acompanhada de uma caução, a omissão da notificação poderia ganhar alguma relevância – e atenção que, mesmo nesta situação o AI não se encontraria vinculado à aceitação de tal proposta.

Ora, o credor garantido não só não se manifestou quando teve conhecimento de que o AI havia já celebrado um contrato promessa de compra e venda pelo valor de 35.000 € e que a escritura se realizaria em breve, como, mesmo quando, cerca de um mês após a celebração da respetiva escritura, veio invocar a nulidade da venda por ausência de prévio cumprimento das formalidades legais da sua notificação para os efeitos do artigo 164º, se limita a afirmar que “o banco teria, se notificado como devia, adjudicado o bem pelo menos pelo valor patrimonial referido, €57.597,20 €”, sem que manifeste algum interesse atual na sua aquisição e, muito menos, que faça uma concreta proposta negocial, proposta esta que, de qualquer modo, para ser válida, como já atrás referimos, sempre teria de vir acompanhada de uma caução no valor de 20% da proposta.

Concluindo, e ainda que se admita que a preterição de tal formalidade é suscetível, em abstrato, de constituir uma nulidade, a qual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 195º e 839º, nº1, al. c), do CPC, poderá acarretar a anulação da própria venda, a verificação dos pressupostos da nulidade tem de ser aferida em função do caso concreto: “não basta constatar que o administrador de insolvência incumpriu o nº 2 do artigo 164º do CIRE. É preciso demonstrar, em termos plausíveis, que essa irregularidade era suscetível de ter impacto na venda [David Sequeira Dinis e Luís Bértolo Rosa, “A proteção dos credores garantidos e o regime do artigo 164º, nº2, do CIRE”, in Revista de Direito da Insolvência, nº2, 2018, Almedina, pp.14-15]”.

Servindo, a exigência de comunicação do valor base ou do preço da alienação projetada, o propósito de permitir ao credor garantido atuar de forma a defender o valor do bem, promovendo a satisfação do seu crédito, a atribuição da faculdade ao credor garantido de requerer a anulação da venda só faz sentido se se encontrar assegurada a sua venda a preço superior, ou seja, se a invocação da nulidade e o pedido de anulação da venda forem acompanhados da apresentação de uma proposta de aquisição e da respetiva caução legal, nos termos em que se encontram previstos nos ns. 3 e 4 do artigo 164º. A assim se não entender, correr-se-ia o risco de, reconhecida a nulidade decorrente da preterição de tal formalidade e declarada a venda anulada, o credor acabar por não apresentar qualquer concreta proposta de aquisição, o anterior comprador perder o interesse na mesma e o bem vir a ser transmitido por um preço inferior ao da venda anulada [...].

Concluindo, não se tem por verificada a invocada nulidade processual, com a consequente manutenção da validade e eficácia da alienação efetuada ao interveniente/Apelante."

[MTS]