União de facto; dissolução;
arrolamento; competência material
1. O sumário de RG 24/9/2020 (1016/20.6T8VCT.G1) é o seguinte:
I - O legislador tem vindo a adotar medidas no sentido da tendencial e progressiva equiparação entre o regime jurídico próprio do casamento e as situações decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora do vínculo matrimonial e a extensão aos mesmos de diversos direitos inicialmente vigentes apenas no âmbito do casamento.
II - Pese embora esta tendencial equiparação de efeitos entre o casamento e a união de facto, as duas figuras permanecem autónomas e distintas, e as uniões de facto só podem ter os direitos que a lei que as rege especialmente lhes confere, não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento.
III - Perante a ausência de estipulação legal sobre a matéria, a união de facto é insuscetível de originar um património comum entre os membros da união de facto que tenha de ser partilhado ou liquidado em caso de dissolução da mesma.
IV - A propriedade dos bens resultante da comunhão de vida e de contribuições patrimoniais ocorridas na vigência da união de facto tem de ser aferida no âmbito das estipulações sobre tal matéria feitas pelos membros da união de facto, no domínio da sua autonomia privada, designadamente para o caso de ocorrer a morte de um deles ou a rutura da união de facto – os denominados “contratos de coabitação – ou, na ausência destas, pelas regras gerais, designadamente pelo regime da compropriedade ou do enriquecimento sem causa.
V- A dissolução da união de facto decorre de forma direta e imediata da mera declaração de vontade de um dos seus membros e apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dela dependam, declaração que deve ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes dessa dissolução ou em ação que siga o regime processual das ações de estado (art. 8º, nºs 2 e 3, da LUF).
VI - O arrolamento de bens instaurado como preliminar de ação a instaurar contra a requerida para o reconhecimento da compropriedade dos bens após a cessação da união de facto que o requerente considera que integram o património comum pertencente a si e à requerida, e que estão em perigo de dissipação, ocultação ou extravio, não é dependente da existência da ação judicial de declaração da dissolução da união de facto instaurada no Juízo de Família e Menores nem a procedência dessa ação é condição para uma posterior ação de liquidação do património comum. Ao invés, tal arrolamento depende de ação que tem de ser instaurada ao abrigo do direito comum das relações obrigacionais e reais com vista ao reconhecimento da compropriedade dos bens.
VII - Sendo o procedimento cautelar de arrolamento dependente da ação de reconhecimento da compropriedade dos bens, a qual é uma ação declarativa de processo comum, e tendo valor superior a € 50 000, o mesmo enquadra-se na competência do Juízo Central Cível, nos termos do art. 117º, nº 1, al. c), da LOSJ.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Como é sabido, o procedimento cautelar em que não foi decretada a inversão do contencioso é sempre dependência de uma ação.
Como regra geral, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado quer como preliminar, quer como incidente de ação declarativa ou executiva. Sendo requerido antes de proposta a ação, é o mesmo apensado aos autos desta logo que a ação seja instaurada e, se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa (art. 364º, nºs 1 e 2, do CPC).
No que toca ao procedimento cautelar de arrolamento, o mesmo é dependência da ação à qual interesse a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (art. 403º, nº 2, do CPC).
No caso em apreço, o procedimento de arrolamento foi instaurado como preliminar de ação a instaurar contra a requerida para o reconhecimento da compropriedade dos bens, conforme o requerente alega no seu requerimento inicial.
Tem como fundamento a cessação da união de facto que existiu entre si e a requerida e a existência de bens que o requerente considera que integram o património comum pertencente a si e à requerida e que estão em perigo de dissipação, ocultação ou extravio.
Perante este pedido e causa de pedir importa saber qual é a ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (art. 403º, nº 2, do CPC).
A decisão recorrida considera que o arrolamento é dependência da ação de dissolução da união de facto entretanto proposta no Juízo de Família e Menores (ação nº 1590/20.7T8VCT). E, perante tal entendimento, concluiu, por decorrência lógica, que não se verifica o elemento de conexão previsto no art. 117º, nº 1, alínea c), da Lei 62/2013, de 26.8, (Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante designada por LOSJ), o que acarreta a incompetência material do Juízo Central Cível para a tramitação do arrolamento, em virtude de o mesmo só ter competência para procedimentos cautelares que sejam dependentes de ações para os quais esse Juízo tenha igualmente competência.
Para aferir qual é a ação da qual o arrolamento depende e se, como pressuposto na decisão recorrida, tal ação é a de dissolução da união de facto proposta no Juízo de Família e Menores, importa, ainda que brevemente, atentar no regime jurídico da união de facto.
Nesta matéria, ao longo do tempo, o legislador tem vindo a adotar medidas no sentido da tendencial e progressiva equiparação entre o regime jurídico próprio do casamento e as situações decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora do vínculo matrimonial e a extensão aos mesmos de diversos direitos inicialmente vigentes apenas no âmbito do casamento.
Assim, a Lei 7/2001, de 11.5 (doravante designada como LUF), que atualmente rege esta matéria, veio adotar medidas de proteção das uniões de facto, qualificando a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art. 1º, nº 2, da LUF).
No art 3°, a LUF atribui determinados direitos aos membros da união de facto idênticos aos que vigoram no casamento, designadamente ao nível da proteção da casa de morada de família, em matéria laboral no tocante a férias, feriados, faltas e licenças, em matéria fiscal no que concerne ao IRS, em matéria de proteção social na eventualidade de morte, em matéria de prestações devidas por acidente de trabalho ou doença profissional e de pensões por preço de sangue e por serviços excecionais e relevantes prestados ao país.
Pese embora esta tendencial equiparação de efeitos entre o casamento e a união de facto, as duas figuras permanecem autónomas e distintas, e as uniões de facto só podem ter os direitos que a lei que as rege especialmente lhes confere, não sendo legítimo estender-lhe as disposições referentes ao casamento.
Neste mesmo sentido, afirma-se no Acórdão do STJ, de 27.6.2019, Relator Pinto de Almeida (in www.dgsi.pt) que “casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respectivos efeitos”.
Na mesma linha de pensamento, escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 30.5.2018, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt) , que “com efeito, a união de facto não é casamento.
Quem recorre à união de facto faz a sua opção por não celebrar um casamento, constituindo uma intolerável violação da liberdade individual introduzir-se efeitos imperativos na área da união de facto destinados a equipará-la ou aproximá-la do casamento e que não foram queridos pelos cidadãos que recorreram a este meio informal de constituir família e que, de contrário, caso quisessem ser equiparados aos cônjuges, sem dúvida alguma teriam contraído matrimónio.
De resto, dentro do princípio da autonomia privada, onde se insere a liberdade contratual (arts. 405º do CC), esses cidadãos que recorrem à união de facto como modo de constituir família, podem, querendo, regular as suas relações jurídicas, designadamente em caso de morte de um dos elementos da união de facto ou de rutura desta, mediante a celebração de acordos a que a doutrina designa de “contratos de coabitação”.
Ora, no plano dos efeitos patrimoniais, o legislador, diversamente do que sucede no casamento, preferiu não estabelecer um regime patrimonial geral relativamente aos bens dos membros da união de facto, nem definir regras sobre a administração e disposição desses bens ou sobre as dívidas contraídas e a liquidação e partilha do património em virtude da dissolução da união de facto.
Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in Curso de Direito da Família págs. 71 e 72), “não há aqui um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens, o chamado regime primário (artigos 1678º - 1697º do C.C.): administração dos bens dos cônjuges, dívidas dos cônjuges e bens que respondem por elas, partilha dos bens do casal, etc. Os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”.
Finda a união de facto, e não tendo aplicação o disposto nos artigos 1688º e 1689º do CC, pois, ao contrário do que se passa no casamento, não há bens comuns sujeitos a partilha, então, as regras a aplicar serão as que eventualmente tenham sido acordadas e, na sua falta, o direito comum das relações obrigacionais e reais.
Por conseguinte, perante a ausência de estipulação legal sobre a matéria, conclui-se que a união de facto é insuscetível de originar um património comum entre os membros da união de facto.
Como tal, a propriedade dos bens resultante da comunhão de vida e de contribuições patrimoniais ocorridas na vigência da união de facto tem de ser aferida no âmbito das estipulações sobre tal matéria feitas pelos membros da união de facto, no domínio da sua autonomia privada, designadamente para o caso de ocorrer a morte de um deles ou a rutura da união de facto – os denominados “contratos de coabitação – ou, na ausência destas, pelas regras gerais, designadamente pelo regime da compropriedade ou do enriquecimento sem causa.
O que é ponto assente, reafirma-se, é que a união de facto não gera ela própria qualquer património comum que tenha de ser partilhado ou liquidado em caso de dissolução da mesma.
No que concerne à dissolução da união de facto, a mesma ocorre com o falecimento de um dos membros, com o casamento de um dos membros ou por vontade de um dos seus membros (art. 8º, nº 1 da LUF).
Não há, por isso, necessidade de declaração judicial da dissolução da união de facto para que a mesma produza os seus efeitos dissolutórios, os quais decorrem de forma direta e imediata da mera declaração de vontade de um dos membros da união.
A dissolução por vontade de um dos seus membros apenas tem de ser judicialmente declarada quando se pretendam fazer valer direitos que dependam dela e tal declaração deve ser proferida na ação mediante a qual o interessado pretende exercer direitos dependentes dessa dissolução ou em ação que siga o regime processual das ações de estado (art. 8º, nºs 2 e 3, da LUF).
Não havendo que aplicar à união de facto as normas relativas ao regime do casamento, também não lhe é de aplicar o art. 409º, nº 1, do CPC, referente aos arrolamentos especiais, que prevê a possibilidade do arrolamento de bens comuns como preliminar ou incidente de ação de divórcio. Nem tal faria sentido pois, como explanado, não há necessidade de declaração judicial da dissolução da união de facto.
Logo, e contrariamente ao entendimento sufragado na decisão recorrida, o arrolamento de bens peticionado nestes autos não é dependente da existência da ação judicial de declaração da dissolução da união de facto que corre termos no Juízo de Família e Menores, nem a procedência dessa ação é condição para uma posterior ação de liquidação do património comum.
Tal solução implicaria a aplicação analógica à união de facto do regime de dissolução do casamento, do regime matrimonial quanto aos bens e subsequente necessidade de partilha do património comum, o que não é legítimo pois as duas figuras são distintas sendo que, reafirma-se, só se aplicam à união de facto o direitos e deveres que a lei especialmente lhe atribui e já não os decorrentes do regime jurídico do casamento.
Por conseguinte, o requerente pode instaurar a ação de reconhecimento de compropriedade dos bens e na mesma pedir a declaração de cessação da união de facto. Não tem que propor ação prévia e autónoma a pedir a declaração de dissolução da união de facto e o arrolamento não depende da ação 1590/20.7T8VCT que corre termos no Juízo de Família e Menores.
Naturalmente que a existência dessa ação 1590/20.7T8VCT em que é pedida a declaração de dissolução da união de facto pode levantar a questão da existência de causa prejudicial e originar a suspensão da instância relativamente à ação de reconhecimento de compropriedade em que também seja pedida a declaração de cessação da união de facto; mas tal questão não interfere nem com a determinação da ação de que o arrolamento depende nem com a determinação da competência do Tribunal.
Como tal, e ao contrário do entendimento perfilhado na decisão recorrida, o arrolamento não depende da procedência da ação de declaração judicial da cessação da relação de união de facto que o requerente intentou no Juízo de Família e Menores (1590/20.7T8VCT).
Ao invés, depende de ação que tem de ser instaurada ao abrigo do direito comum das relações obrigacionais e reais com vista ao reconhecimento da compropriedade dos bens.
Dispõe o art. 117º da LOSJ que:
1 - Compete aos juízos centrais cíveis:a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00;b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50 000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
O presente arrolamento tem o valor de € 80 513,51.
Das disposições conjugadas do art. 117º, nº 1, als. a) e c), da LOSJ, resulta que os juízos centrais cíveis são competentes para os procedimentos cautelares se forem igualmente competentes para as ações de que tais procedimentos dependem.
Sendo o procedimento cautelar de arrolamento dependente da ação de reconhecimento da compropriedade dos bens, a qual é uma ação declarativa de processo comum, e tendo valor superior a € 50 000, o mesmo enquadra-se na competência do Juízo Central Cível, nos termos do art. 117º, nº 1, al. c), da LOSJ.
Assim sendo, conclui-se que o recurso procede e a decisão recorrida tem que ser revogada, devendo os autos prosseguir os seus termos normais, com a apreciação da oposição deduzida."
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