Decisão-surpresa;
nulidade da decisão*
I - A falta de observância da formalidade prevista no n.º 3 do art. 665.º do CPC, podendo influir na decisão da causa, importa a nulidade processual prevista no art. 195.º do CPC. Esta nulidade deve ser arguida no prazo de 10 dias (arts. 149.º e 199.º do CPC) e no tribunal em que foi cometida.
II - Os detentores ou possuidores precários, como os arrendatários, não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título de posse, mas não ocorre a inversão do título de posse quando o arrendatário continua a proceder ao pagamento da renda como vinha efetuando anteriormente.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
3. Da violação do disposto no artigo 665.º do Código de Processo Civil
Os Recorrentes vieram arguir a violação do disposto no artigo 665.º do Código de Processo Civil, designadamente por ter sido omitida a “possibilidade de pronúncia da parte, ao abrigo do disposto no n.º3 do artigo 665.º do C.P.C.” constituindo “nulidade arguível e a reconhecer pelo Tribunal Superior, nos termos das disposições conjugadas dos n.º1 e 3 do artigo 195.º, 615.º, n.º1, alínea d) e n.º4, todos do C.P.C.”.
Os Recorrentes, inconformados com a decisão proferida pelo tribunal de 1ª. instância, interpuseram recurso de apelação, invocando, entre outras questões, a nulidade da sentença por falta de fundamentação no que concerne ao pedido reconvencional.
O Tribunal da Relação de Lisboa veio a considerar que a sentença era nula por falta de fundamentação, nos termos pretendidos pelos Recorrentes, e invocando o disposto no n.º1 do artigo 665.º do Código de Processo Civil, proferiu Acórdão sobre o mérito.
Prescreve o artigo 665.º do Código de Processo Civil que:
1. Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.2. Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.3. O relator, antes de ser proferida decisão, ouve cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias.
Assim, e em primeiro lugar importa referir que o Tribunal da Relação deu rigoroso cumprimento ao que dispõe o n.º1 do artigo 665.º do Código de Processo Civil, porquanto depois de declarar que se verificava a nulidade da sentença, tinha de proceder ao conhecimento, em substituição, de todas as questões que a 1ª. instância teria de conhecer.
Por outro lado, verifica-se que da alegação dos Recorrentes resulta uma manifesta confusão entre o que são nulidades secundárias (artigo 195.º do Código de Processo Civil) e nulidades do Acórdão (artigo 615.º do Código de Processo Civil).
Assim, no caso referido de falta de observância da formalidade prevista no n.º3 do artigo 665.º do Código de Processo Civil, podendo influir na decisão da causa, importaria a nulidade processual prevista no artigo 195.º do Código de Processo Civil, como referem os Recorrentes, e não tendo estes reclamado oportunamente, ou seja, no prazo imposto pelos artigos 149.º e 199.º do Código de Processo Civil, isto é, no prazo de 10 dias, e no Tribunal em que teria sido cometida a irregularidade, para nela ser julgada, a nulidade advinda do desvio ao ritualismo processual imposto ficou sanada.
Como vem sendo entendimento do STJ, quando tal vício ocorrer, a parte interessada na observância da formalidade, deve arguir o referido vício perante o tribunal junto do qual foi cometida e que seria competente para o suprir, sendo extemporânea a sua arguição apenas em alegações de recurso.
Os vícios atinentes aos desvios do formalismo processual, de índole formal, estão sujeitos ao regime previsto nos artigos 186.º a 202.º do Código de Processo Civil. Por isso, a arguição de alguma dessas nulidades, deve ser efetuada através de reclamação – ou de recurso interposto sobre a decisão dessa reclamação -, não podendo, pois, servir de fundamento ao recurso (de sentença ou acórdão) previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, os recursos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso. E não ocorrendo em relação a essa particular questão, qualquer destas condições de exceção, tal vício, a ter existido, não poderia ser conhecido nem conduziria, nesta fase, ao resultado sugerido, porque o mesmo teria de considerar-se sanado, conforme o exposto.
A nulidade arguida apenas nas alegações do recurso de revista deve considerar-se sanada, pois não respeitaria a vício do acórdão recorrido ou de qualquer ato processual sobre o qual os ora recorrentes tivessem reclamado e tivessem visto indeferida a sua reclamação.
- cfr. Acórdão do STJ, de 30/05/2017, consultável em www.dgsi.pt –
Assim, a pretensão dos Recorrentes não pode proceder."
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a orientação do STJ.
Quando é proferida uma decisão sem que, como devia ter acontecido, as partes tenham sido previamente ouvidas, a decisão proferida constitui uma decisão-surpresa. É o que sucede no âmbito da disposição geral constante do art. 3.º, n.º 3, CPC, bem como o que acontece sempre que a lei imponha a audição das partes antes de qualquer decisão e essa audição não ocorra.
A decisão-surpresa não é uma decisão que é proferida num momento em que a lei não permite, ou seja, não padece de um vício inerente à tramitação da causa. O seu vício é próprio e respeitante ao respectivo conteúdo: a decisão-surpresa é a decisão que decide o que não pode decidir sem a audição prévia das partes. Por isso, como se tem repetido neste Blog, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC).
b) A seguir-se a orientação defendida no acórdão do STJ, a parte, notificada da decisão-surpresa, devia ter arguido a nulidade processual da omissão da sua audição prévia (art. 195.º, n.º 1, CPC). Salva a devida consideração, não se pode acompanhar este raciocínio, que, além do mais, conduz a uma multiplicação de actos em processo (arguição da nulidade decorrente da omissão do audição da parte, eventual impugnação da decisão tomada pelo tribunal sobre a nulidade, tudo isto ainda eventualmente seguido da impugnação da decisão proferida).
O art. 665.º, n.º 3, CPC impõe que o relator ouça cada uma das partes antes de proferir a sua decisão. A seguir-se a orientação do STJ, ter-se-ia de atacar o acto omitido em vez de atacar a decisão que impõe a realização do acto e que é viciada em consequência da omissão do acto. No fundo, o que o STJ propõe é que se ataque a consequência (omissão de acto devido) sem atacar a causa do dever da prática do acto (decisão proferida).
MTS