Processo executivo;
condição suspensiva; prova; despacho de aperfeiçoamento
I – O despacho de rejeição e de extinção da execução, previsto no art. 734 do CPC, pode ser dado mesmo que tenha havido um despacho liminar a dar seguimento à execução.
II – No caso dos autos, o incumprimento de pontos de um acordo oferecido como título executivo, funciona como condição suspensiva da eficácia de uma obrigação que o executado aí reconheceu como estando em dívida e se obrigou a pagar.
III – “Quando a obrigação esteja dependente de condição […], incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição […]. 2 - Quando a prova não possa ser feita por documentos, o credor, ao requerer a execução, oferece de imediato as respectivas provas (art. 715 do CPC depois da reforma de 2013, idêntico, no que importa, ao art. 804 do CPC antes dessa reforma).
IV – Caso o exequente não o faça, o juiz deve proferir despacho de aperfeiçoamento (a convidá-lo a oferecer a prova complementar do título) e não, logo, de indeferimento liminar ou de rejeição e extinção da execução.
2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:
"A fundamentação do despacho recorrido foi a seguinte, em síntese:
Por força do acórdão do Tribunal Constitucional 408/2015, um documento particular emitido em data anterior à data da entrada em vigor da reforma de 2013 do CPC, pode continuar a ser título executivo. “O título exibido pelo exequente tem que constituir ou certificar a existência da obrigação, não bastando que preveja a constituição desta […]. Assim é que o documento particular no qual se fixe a cláusula penal correspondente ao não-cumprimento de qualquer obrigação contratual não constitui título executivo em relação à quantia da indemnização ou da cláusula penal estabelecida, por não fornecer prova sobre a constituição da respectiva obrigação.” (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 79); ou seja, a acção executiva pressupõe o incumprimento definitivo da obrigação que emerja do próprio título dado à execução, isto é, que o direito inscrito no título dado à execução está definido e acertado. No caso vertente o exequente apresenta, como título executivo, um documento particular, cujo clausulado resultam obrigações recíprocas e verificação de determinadas condições para que as obrigações dos mesmos decorrentes se mostrem certas, líquidas e exigíveis. Não estamos perante um reconhecimento de obrigação. Do documento não resulta, sequer, que tenha havido qualquer incumprimento e muito menos certo, inequívoco, definitivo e objectiva e subjectivamente imputável ao executado. Apurar se houve, ou não, incumprimento do acordo gizado pelas partes e quais as vicissitudes decorrentes do mesmo - as quais podem ser várias e podem, depois de devidamente escalpelizadas, não levar à conclusão, retirada unicamente da alegação do exequente, que o executado incumpriu, nos termos e com a abrangência que ela menciona – obviamente que não se coaduna e compagina com o âmago e o âmbito da acção executiva, antes se reportando à acção declarativa. Em suma, não existe qualquer composição efectiva, definitiva e, consequentemente, vinculativa, relativamente à prestação e obrigação que a exequente invoca, não revestindo, assim, tal documento, título executivo.
O exequente diz o seguinte contra isto, em síntese:
Do acordo consta que a executada é devedora do exequente no montante de 100.000€ (cfr. pressuposto n.º 6 do Acordo) bem como que se obriga a pagar o aludido montante em 36 prestações mensais de 2777,77 cada [cfr. parte final do acordo, alínea a]; portanto, o acordo consubstancia a constituição de uma obrigação pecuniária e por isso constitui título executivo relativamente ao valor das prestações não pagas.
Pode questionar-se se se cumpriram as obrigações constantes do acordo, bem como a verificação de determinadas condições nele constantes, pelo que, pode admitir-se, sem conceder, que o exequente não apresentou, conforme lhe competia, prova complementar ao título, mas a omissão desses elementos não é suficiente para afastar a exequibilidade do título e, muito menos, para o juízo de que “é manifesta a falta de título executivo”.
Relativamente à exequibilidade dos documentos particulares, dispõe o artigo 707 do CPC que quando neles “se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.”
Ou seja, estamos, eventualmente, perante a necessidade de apresentar documentação ou prova complementar ao título dado à execução.
Face a esta omissão, entende a jurisprudência que, sempre seria de convidar o exequente à apresentação de prova complementar do título, através de despacho de aperfeiçoamento (acs. do STJ de 10/04/2018, proc. 18853/12.8YYLSB-A.L1.S2, e do TRE de 18/10/2018, proc. 71/13.0TBETZ-A.E2).
Logo, a omissão do oferecimento da prova complementar não justifica o indeferimento liminar, pois que essa omissão seria suprível (arts. 726/4 e 6/2 do CPC).
*
Para a decisão desta questão importa ter em conta o documento em causa e por isso passa-se a transcrevê-lo [na parte que importa, com simplificações das identificações das partes e do prédio objecto do acordo e de cláusulas que não importam à questão]:
AcordoEntre:1.ª Contraente: executada e 2.º Contraente: exequentePressupostos:1. No passado dia 25/01/2010, foi celebrado um contrato de uso referente parte do terreno designado por […]2. A 1.ª Contraente atribuiu a favor do 2.º Contraente o direito de uso sobre a parte do terreno […]3-5. Entre as partes foram celebradas três aditamentos a tal contrato de uso, entre 27/01/2010 e 16/06/20106. Face ao incumprimento dos prazos contratuais referentes a tal contrato, a 1.ª contraente é devedora a favor do 2.º contraente do montante de 100.000€;7. Ambos os contraentes pretendem celebrar um acordo referente ao pagamento da divida e em simultâneo constituírem uma sociedade entre ambas as partes, a qual visa a exploração imobiliária em diversas vertentes do terreno descrito no considerando 1 do presente, com excepção da área ocupada pelos três campos de futebol;Serve o presente acordo para ambas as partes firmarem as principais premissas dos contratos definitivos a celebrar, os quais serão submetidos a aprovação na Assembleia geral extraordinária a ser realizada: […]Ambas as partes acordam que o 2.º contraente inicie o processo de constituição da sociedade referida no ponto 2 do presente acordo, desta forma poderão ser apresentados os contratos definitivos na Assembleia geral a ser realizada num prazo máximo de 20 dias a contar da data do presente acordo:a) Caso o presente acordo não seja integralmente aprovado na Assembleia Geral a ser realizada, a 1.ª contraente obriga-se a pagar ao 2.º contraente o montante em divida, nomeadamente 100.000€, em 36 prestações mensais de 2777,77€, a serem pagas no 1.º dia útil de cada mês, vencendo-se a primeira prestação no próximo dia 01/03/2012.Feito em S, 19/01/2012, em duas vias. [...]
Posto isto:
Por força do ac. do TC referido pela decisão recorrida, os títulos particulares anteriores à reforma de 2013 do CPC continuaram a ter força executiva. Naturalmente como títulos particulares - a que se tinha de aplicar o regime processual até aí vigente, ou seja, o artigo 46/1-c do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, pois que o novo regime não permite a exequibilidade dos documentos particulares em geral -, não como títulos autênticos ou autenticados, previstos nos arts. 703/1-b e 707, ambos do CPC depois daquela reforma, como quer o exequente, sem aduzir para isso qualquer fundamentação, limitando-se a invocar o art. 707 do CPC como se ele fosse aplicável ao caso, apesar de, evidentemente, o acordo dado à execução não ser um documento exarado ou autenticado, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal.
Posto isto,
O art. 46/1-c do CPC, na redacção anterior à reforma de 2013, dispunha: “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto; […]”
Assim, como requisito de fundo, a lei impõe que do documento “conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético […].”
Do documento em causa consta, realmente (ao contrário do que diz o despacho recorrido), a obrigação de pagamento de uma quantia que se reconhece em dívida [como decorre do seu 6.º pressuposto e da sua alínea a], embora condicionada à verificação de uma série de pressupostos.
Por outro lado, no caso, a obrigação não nasce do incumprimento; o incumprimento daquilo que está previsto no acordo é apenas uma condição da eficácia da obrigação que já existe e foi reconhecida e se teria de pagar caso se verificasse aquele incumprimento (art. 270 do CC).
Por fim, nas execuções, o incumprimento das obrigações exequendas não tem que resultar provado, como algo definitivo e indiscutível, do documento, em qualquer tipo de título executivo, também ao contrário do que é defendido pelo despacho recorrido. Como diz Antunes Varela, em nota da página da passagem citada pelo despacho recorrido: “Provando a constituição ou a existência da obrigação e do direito subjectivo correspondente, o título prova ainda, em princípio, até prova em contrário, a violação da obrigação, visto ser ao devedor que incumbe alegar e provar os factos modificativos ou extintivos dela, tal como os factos impeditivos. A lei presume, por conseguinte, uma vez provada a constituição da obrigação, a inexistência de causas impeditivas, modificativas ou extintivas dela.”
Mas este incumprimento que se presume nos termos referidos acima é o da obrigação de pagar a quantia exequenda, aquela que está reconhecida como em dívida. Não quer isto dizer, por isso, que o incumprimento que está em causa, no caso dos autos, como condição da obrigação, também se presuma. Quanto a este, como se disse, trata-se de um incumprimento de pontos de um acordo que funciona como condição de uma obrigação.
Ora, em relação às obrigações sujeitas à verificação de uma condição suspensiva, o art. 715/1-2 do CPC [idêntico, no que importa, ao art. 804 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013] dispõe que: “Quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva ou de uma prestação por parte do credor ou de terceiro, incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição ou que efectuou ou ofereceu a prestação. 2 - Quando a prova não possa ser feita por documentos, o credor, ao requerer a execução, oferece de imediato as respectivas provas.” [...]
Em suma, o acordo dado à execução como título executivo, será título suficiente para a exigibilidade da obrigação consoante o exequente venha ou não a provar que a condição se verificou. Pelo que, para já, o despacho recorrido não podia dizer que não existia título executivo sem antes dar a oportunidade ao exequente – através de um despacho de aperfeiçoamento - de alegar e provar a verificação da condição suspensiva da obrigação que pretende executar.
*
Assim, o despacho recorrido tem de ser substituído por um outro que convide o exequente a oferecer prova complementar do título, a que se seguirá a tramitação subsequente que o tribunal recorrido tiver por adequada – nos termos legais - conforme o que for feito pelo exequente (despacho de rejeição e de extinção da execução, ou despacho nos termos dos n.ºs 3 a 5 do art. 715 do CPC), e que poderá implicar a parcial anulação do processado, às custas do exequente por ter sido ele a dar causa ao que vier a acontecer.
Há, no entanto, que ter em conta as particularidades do caso: se tiverem sido deduzidos embargos de executado, em que já se discuta a (não) verificação da condição suspensiva, não poderá dar-se origem a um incidente declarativo a discutir a mesma questão, pelo que a decisão a proferir por este TRL preverá esta esta restrição."
[MTS]
[MTS]