União de facto;
reconhecimento judicial; competência material
I. O sumário de RC 23/6/2020 (610/20.0T8CBR-B.C) é o seguinte:
1. A competência material do tribunal afere-se em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida e da natureza das normas que disciplinam a relação jurídica que está na base do litígio.
2. As soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efectiva protecção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento.
3. A união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas, pelo que, materialmente, a acção de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) - «Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (…) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.»
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"4. A Lei n.° 7/2001, de 11.5, veio adoptar medidas de protecção das uniões de facto, independentemente do sexo das pessoas e desde que a união durasse há mais de dois anos (art.º 1º, n.º 1, na sua redacção inicial [...]).
A Lei n.° 23/2010, de 30.8, alterou substancialmente aquele regime jurídico, e passou a prever-se no art.º 2°-A (aditado à Lei n.° 7/2001, de 11.5), relativo à “prova da união de facto”, que na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível (n.º 1), evidenciando-se, aqui e nas demais alterações (maxime, na nova redacção dos art.ºs 3º a 6º), a tendência do legislador no sentido de proteger efectivamente agregados familiares constituídos fora das normas do casamento. [...]
5. No presente recurso - como se verá -, a solução deverá ser encontrada atendendo à previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ, e não propriamente por referência ao que prescreve a alínea b) do mesmo número: questiona-se se a competência material a dilucidar se encontra atribuída pelas ditas alíneas, as únicas que aqui relevam.
6. Ao indagar o conteúdo e sentido do segmento normativo (cláusula geral) em análise - “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” - verifica-se que foi introduzido pela Lei n.º 52/2008, de 28.02 (LOFTJ), através do seu art.º 114º, al. h), sem que seja possível divisar nos correspondentes “trabalhos preparatórios” a razão de ser de tal estatuição, importando assim atender ao contributo da jurisprudência sobre a leitura desses conceitos jurídicos. [Cf., a propósito, sobretudo, os acórdãos do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1, publicados no “site” da dgsi [...]]
7. E a jurisprudência tem convergido no sentido de que a leitura da citada alínea b) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ [processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum] implica ou pressupõe a tramitação de acção com a natureza de processo de jurisdição voluntária, sendo que não se descobre no título XV [“Dos processos de jurisdição voluntária”] do CPC, ou em legislação avulsa, um qualquer procedimento de jurisdição voluntária que tenha por objecto a apreciação e o reconhecimento judicial (a se) de uma situação de união de facto [Neste sentido, vide, ainda, António José Fialho (no artigo “In Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum”, https://blogippc.blogspot): “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum (art.ºs 3º, al. a), e 4º, da Lei n.º 6/2001 e art.º 4º, al. d), e 5º da Lei n.º 7/2001), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”], sublinhando-se também, atentas as particularidades daquela concreta jurisdição, que não se vê sequer qualquer razoabilidade em sujeitar a presente acção e em razão da natureza do seu objecto, ao critério de julgamento a que alude o art.º 987º, do CPC [“Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”], ou à possibilidade plasmada no n.º 1 do art.º 988º do mesmo diploma legal.
Perfilhando-se aquele entendimento e equacionando, depois, a aplicação da referida alínea g), não se vê como enjeitar a perspectiva de que a alusão na parte final à palavra “família” se tem de entender como referida às “acções sobre o estado civil das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de estado civil usado no seu sentido restrito” [Cf., nomeadamente, os mencionados acórdãos do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1] - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida [Cf. o acórdão da RC de 26.4.2016-processo 901/15.1T8LRA.C1, publicado no “site” da dgsi] -, e bem assim que o legislador terá certamente pretendido abranger o caráter fluído e flexível que hoje carateriza a vida familiar, que não se restringe a laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável, e sabendo-se que estamos perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8º da CEDH [...], razão pela qual a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto [...], de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família. [Cf. o citado acórdão da RP de 05.02.2015-processo 13857/14.9T8PRT.P1 [...]]
8. A descrita perspectiva mostra-se consentânea com a própria evolução da organização judiciária: os Tribunais/Juízos de Família (desde o momento em que foram criados pela Lei n.º 4/70, de 29.4 e vieram a ser regulamentados, pela primeira vez, pelo DL n.º 8/72 de 07.01, e até à legislação actual) estão pensados/vocacionados para o conhecimento de acções que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família, ou seja, a longa tradição já sedimentada é a de conferir a competência daquele tribunal de competência especializada às acções em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, sendo pacífico que em acções relativas às situações de união de facto se aplicam normas de Direito da Família (cf., designadamente, os art.ºs 1793º - conjugado com a Lei n.º 7/2001, de 11.5 - e 2020º do Código Civil) [], “embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sócio-familiares”. [Cf. o mencionado acórdão do STJ de 13.11.2012-processo 13466/11.4T2SNT.L1.S1 e, ainda, com idêntico enquadramento quanto aos anteriores pontos do presente acórdão, os arestos da RL de 11.12.2018-processo 590/18.1T8CSC.L1-6 [...]].
9. Concluiu-se, assim, que a união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas e família, pelo que, materialmente, a presente acção de reconhecimento judicial da união de facto se insere na competência do Juízo de Família e Menores, no caso vertente, atribuída ao Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra."
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