"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/03/2021

Jurisprudência 2020 (166)


Partilha; contrato-promessa;
título executivo


1. O sumário de RL 15/9/2020 (16642/11.6T2SNT-A-7) é o seguinte:

I. Apesar do teor literal do Artigo 46º, al. c), do Código de Processo Civil (aplicável no caso por força do Acórdão do TC nº 408/2015), o contrato-promessa de partilha não constitui título executivo porquanto as obrigações pecuniárias nele previstas não são exigíveis.

II. As obrigações pecuniárias assumidas no contrato-promessa de partilha só passam a ser exigíveis mediante a celebração da escritura de partilha extrajudicial ou mediante a procedência da ação de execução específica de tal contrato-promessa de partilha, na qual se discute e afere sobre o incumprimento do contrato-promessa de partilha.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O tribunal a quo entendeu que existe título executivo, argumentando nestes termos:

«A obrigação, para ser exequível, tem de ser certa, líquida e exigível, sendo que o título executivo tem de ser condição necessária e suficiente para se aferir da verificação de tais requisitos.

No caso em apreço, o documento intitulado contrato promessa de partilhas e seu aditamento, no qual foram outorgantes quer a exequente, quer o executado, contêm declarações de vontade de ambas as partes.

O exequente declarou, em tais documentos, efetuar determinados pagamentos. Ora, tendo em conta que, no documento particular em causa, o executado reconheceu as obrigações pecuniárias nele constantes, é evidente que se encontrava o exequente desonerado de efectuar qualquer prova complementar no sentido de convencer da exequibilidade da sua pretensão.

A jurisprudência tem também alinhado neste entendimento, como se pode ver no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.03.2015, disponível in ww.dgsi.pt “III - Constitui título executivo, nos termos da alínea c) do artigo 46º do anterior CPC, a constituição/reconhecimento de obrigação pecuniária vazada em contrato-promessa de partilha subscrito por ambos os outorgantes”

Nesta medida, é de concluir que o documento particular apresentado pelo exequente é título executivo válido e suficiente, por via do qual o executado reconheceu as obrigações pecuniárias que dele constam, cujos montantes se encontram perfeitamente determinados de acordo com as cláusulas dele constantes, encontrando-se por isso dotados de plena exequibilidade em face do 46.' n.' 1 al. c) do CPC, na redação já referida.»

Não acompanhamos o raciocínio do tribunal a quo.

Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2020, Almedina, p. 632:

«A jurisprudência tem admitido a validade de contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal, sujeito às seguintes condicionantes: conexão temporal e instrumental com a pendência de ação de divórcio ou de separação; sujeição do contrato-promessa à condição suspensiva da cessação das relações patrimoniais por divórcio ou separação; observância da regra imperativa prevista no art. 1730º, nº 1, do CC; não se estabelecer um regime especial em relação aos bens adquiridos após a celebração do contrato-promessa de partilha (cf. Lopes Cardoso, Partilhas Litigiosas, vol. III, 7ª ed., p. 294; STJ 15-12-11, 2049/06, STJ 18-10-12, 427/10 e STJ 5-3-13, 839/11, Sumários).»

Mediante a celebração de contrato-promessa de partilha, as partes obrigam-se à celebração de partilha, segundo certas condições previamente definidas, as quais podem prever o pagamento de determinadas quantias.

Com efeito, o contrato-promessa é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato (prometido). Cria para o promitente uma obrigação de contratar cujo objeto é uma prestação de facto (facere jurídico consistente na emissão da declaração negocial prometida), gozando - em princípio - de eficácia meramente obrigacional (Arts. 412º e 413º do Código Civil). É bilateral quando ambos os contraentes se comprometem a celebrar futuramente o contrato e é unilateral ou monovinculante quando apenas um dos contraentes está disposto a vincular-se. Na expressão de Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direitos dos Contratos, 2011, p. 269, «O contrato-promessa é facto constitutivo de uma relação obrigacional. / O promissário é o sujeito ativo (credor) e o promitente é o sujeito passivo (devedor) de uma obrigação de prestação de facto jurídico – da obrigação de emitir a declaração de vontade negocial correspondente ao negócio jurídico prometido.»

No caso específico do contrato-promessa de partilha, «Aquele negócio tem apenas como efeito a promessa de imputar os bens comuns concretos, que o casal tem à data do acordo, na meação de cada cônjuge» (Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I Vol., 5ª ed., 2016, p. 525).

Em caso de incumprimento, nada obsta à execução específica de contrato-promessa de partilha. Conforme refere Maria de La Salette Miranda da Silva, Transmissão dos direitos e obrigações emergentes do contrato-promessa, Coimbra, 2013, p. 55:

«Quanto à execução específica do contrato-promessa de partilha de bens comuns na pendencia da ação de divórcio, podemos ser levados a pensar que a ser possível, então os cônjuges estariam obrigados de forma definitiva. Importa lembrar o art.º 830º, n.º 1 que dispõe que a execução específica está excluída quando a isso se oponha a natureza da obrigação assumida. Vários autores têm opinado acerca desta disposição legal. 

Entre outros autores, Rita Lobo Xavier, assenta ser possível a execução específica de um contrato-promessa de partilha dos bens do casal, pois não se trata de um contrato que implique um ato pessoal ou de tal confiança que deva ser realizado apenas pelas partes ou que repugne à lei a substituição das partes pelo tribunal, nem sequer se trata de um resultado impossível de obter pelo simples cumprimento do contrato-promessa.»

Afirma Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Almedina, 2000, p. 284:

«Sem queremos agora tomar partido sobre esta querela da doutrina, o certo é que, em face de qualquer das opiniões que referimos, não fica excluída, em termos gerais, a execução específica de um contrato-promessa de partilha dos bens do casal. Com efeito, não de trata, de forma alguma, de um contrato que implique um ato pessoal ou de tal confiança que deva ser realizado apenas pelas partes, ou que repugne à lei a substituição das partes pelo tribunal. E também não se pode dizer que esteja em causa um resultado impossível de obter pelo simples cumprimento do contrato-promessa.»

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011, Silva Gonçalves, 2049/06, afirmou-se que: «Também é esta a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal - sendo válido o contrato-promessa de partilha, em tese geral, o mesmo estará sujeito à execução específica, no condicionalismo do art. 830.º do C. Civil; só assim não será se for violada a regra da metade prevista no art. 1730.º, 1 do C. Civil pois, se assim acontecer ocorrerá a nulidade prevista nessa norma.»

A incompatibilidade da execução específica com a natureza da obrigação (Artigo 830º, nº1, do Código Civil) ocorre, nomeadamente, «nos casos e que o contrato final exija particulares qualidades ou qualificações da vontade contratual que a tornem insubstituível por decisão judicial, como ainda naqueles outros e quem são as obrigações a ser produzidas pelo contrato prometido que são, por sua natureza, insuscetíveis de execução forçada» (Ana Prata, O Contrato-promessa e o seu Regime Civil, p. 921). Serão os casos da promessa de casamento, de doação, de testamento ou de perfilhação.

Destarte, apesar do teor literal do Artigo 46º, al. c), do Código de Processo Civil (aplicável no caso por força do Acórdão do TC nº 408/2015), o contrato-promessa em causa não constitui título executivo porquanto as obrigações pecuniárias nele previstas não são exigíveis. A obrigação só é exigível quando: já se encontra vencida; o seu vencimento depende da interpelação do devedor (Art. 777º, nº1, do CC) e este já foi interpelado extrajudicialmente; o seu vencimento depende da interpelação do devedor, sendo este interpelado através da citação (cf. Arts. 551º, nº1 e 610º, nº2, al. b); Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2020, Almedina, p. 41). Ora, as obrigações pecuniárias assumidas no contrato-promessa de partilha só passam a ser exigíveis mediante a celebração da escritura de partilha extrajudicial ou mediante a procedência da ação de execução específica de tal contrato-promessa de partilha, na qual se discute e afere sobre o incumprimento do contrato-promessa de partilha. Até lá, tais obrigações pecuniárias assumem um mero carácter preambular, não definitivo, não sendo exigíveis, o que só ocorre com a sua consolidação no contrato definitivo ou na sentença de execução específica. Qualquer entendimento oposto colide com a natureza preambular do contrato-promessa, convolando-o – sem mais – em contrato definitivo, o que não é legalmente admissível, desde logo – no caso – por inobservância dos requisitos de forma do contrato definitivo.

Deste modo, o contrato-promessa em causa e seu aditamento não constituem título executivo por falta da exigibilidade das obrigações pecuniárias neles previstas.

Neste mesmo sentido, se pronunciaram – aliás – os seguintes arestos desta Relação.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.1.2013, Roque Nogueira, 2135/12:

«É que tal acordo, apesar de estar inserido num documento particular assinado pelo ora executado, não importa, só por si, constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, como exige o citado art. 46º, nº1, al. c). Desta disposição resulta que o título exibido pelo exequente tem que constituir ou certificar a existência da obrigação, não bastando que preveja a constituição desta. Quer dizer, quanto aos documentos particulares, e também aliás quanto aos referidos na al. b), do mesmo nº1, do art.46º, estabelece-se expressamente que a força executiva é conferida seja aos que incorporem o ato ou negócio constitutivo do débito exequendo, seja aos de carácter puramente recognitivo, que envolvam mero reconhecimento pelo devedor de uma obrigação pré-existente (cf. Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, pág.69). Só que, no caso, não se verifica nem uma circunstância nem a outra.»

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.11.2014, Conceição Saavedra, 10341/13, www.colectaneadejurisprudencia.com:

«Contra o que argumenta a apelante, por força daquele documento o ora executado não se constituiu validamente devedor de uma certa quantia perante a exequente. O que ambos acordaram é que o imóvel seria adjudicado ao executado que pagaria, por seu turno, à exequente, a título de tornas, a quantia de € 125.000,00.

Tratando-se de um "Contrato-Promessa de Partilha" não há dúvida de que foram instituídas obrigações recíprocas que apenas podem consolidar-se e extinguir-se, correspetivamente, com a realização da escritura pública prometida realizar. Quer dizer que a obrigação do executado em pagar tornas à exequente não pode ter-se constituído de forma válida, na medida em que a partilha, a realizar por escritura pública, pelos vistos ainda não ocorreu.

É que as tornas constituem, por definição, o pagamento de uma compensação em dinheiro àquele que, por motivo de indivisibilidade, não pode ser inteirado por meio de partes ou parte da coisa (4). A sua existência e valor dependem, assim, da circunstância de alguém receber bens em valor superior ao que lhe cabe, o que vale por dizer que o direito a elas só nasce verdadeiramente com a atribuição ao outro de bens nessas condições. Não terá sido por acaso que os outorgantes fizeram coincidir, no contrato dos autos, a celebração da escritura de partilha com o pagamento das tornas devidas, fixando um prazo máximo de 20 meses para o efeito (cf. cláusulas 4ª e 5ª, al. a)).

Se o contrato dado em execução constituísse título executivo nos termos reclamados pela apelante, esta viria a receber o valor "das tornas" sem que estivesse celebrado o contrato definitivo, logo, sem que o imóvel ficasse atribuído ao executado, ou seja, sem que a partilha, de facto, tivesse lugar, o que seria contrário à regra imperativa da participação por metade do cônjuge no património comum (que engloba o ativo e o passivo), prevista no art. 1730 do C.C..

A certeza, a exigibilidade e a liquidez da obrigação devem resultar do título de forma suficiente, pelo que do mesmo tem de constar a prévia existência ou reconhecimento de uma obrigação, não bastando que ali simplesmente se preveja a constituição desta (5).»

Em suma, inexiste título executivo uma vez que do contrato-promessa de partilha e seu aditamento não deriva, sem mais, a exigibilidade das obrigações pecuniárias aí previstas."

[MTS]