"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/03/2021

Jurisprudência 2020 (170)


Defesa por impugnação;
admissão por acordo; poderes do STJ*


1. O sumário de STJ 2/6/2020 (3355/16.1T8AVR.P1.S1) é o seguinte:

I - A nulidade por omissão de pronúncia pressupõe que o tribunal deixe de apreciar alguma questão submetida pelas partes à sua apreciação.

II - No recurso, as questões são fixadas pelas conclusões das alegações, só sendo consideradas as questões suscitadas nas contra-alegações em caso de ampliação do âmbito do recurso, pelo que não incorre em omissão de pronúncia o acórdão que não considerou o conteúdo das contra-alegações.

III - A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, ambos do CPC, pelo que é definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do mesmo Código, sobre a prova sujeita a livre apreciação, como são os depoimentos de testemunhas, os documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

IV - A confissão judicial espontânea feita em articulado de um processo judicial, segundo as prescrições da lei processual, constitui o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária e tem força probatória plena contra o confitente.

V - A confissão judicial não está sujeita à livre apreciação do tribunal, pelo que a violação pela Relação do incumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art. 574.º, n.º 2, do CPC constitui matéria sindicável pelo STJ por se tratar de questão de direito, ainda que o seu desfecho se projecte na manutenção ou na eliminação de facto tido como provado.

VI - Num contrato de comodato em que não foi convencionado prazo certo para a restituição da coisa, nem esta foi emprestada para uso determinado, também denominado comodato precário, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a sua restituição, denunciando o contrato, ficando o comodatário obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida.

VII - A obrigação de restituição mantém-se quando não se mostra celebrado acordo que altere o contrato de comodato inicialmente celebrado no sentido de passar a ter prazo certo consubstanciado, no caso, na realização das partilhas.

VIII - O erro na condenação em custas dá direito a obter a reforma da decisão no sentido de elas serem fixadas de acordo com as regras da respectiva responsabilidade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"2.2. Da violação do disposto no art.º 574.º, n.º 2, do CPC

A recorrente invocou violação de normas de direito probatório, alegando que a Relação deu como provada, por confissão, factualidade expressamente impugnada, pelo que violou o disposto no art.º 574.º do CPC, devendo os correspondentes factos serem dados como não provados, mantendo-se o decidido a tal respeito pelo tribunal de 1.ª Instância.

Nas suas alegações de revista, faz alusão à alteração feita pela Relação aos pontos 8 e 16 dos factos provados. Porém, importa distinguir a fundamentação da decisão de facto quanto a cada um desses pontos, uma vez que em relação ao ponto 8, a Relação aditou factos com o fundamento dos mesmos estarem admitidos por acordo, por não terem sido impugnados pela ré na sua contestação, mas em relação ao ponto 16 dos factos provados, a Relação fundou a sua decisão no depoimento de uma testemunha ouvida em julgamento.

De acordo com o disposto no art.º 682.º, n.º 2, do CPC, no recurso de revista, o STJ não pode alterar a decisão quanto à matéria de facto proferida pelo Tribunal recorrido, salvo no âmbito previsto no n.º 3 do artigo 674.º do mesmo diploma, isto é, quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

Ao STJ, como tribunal de revista, compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias (n.º 1 do art.º 674.º do CPC), sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo o STJ, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada.

A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está, assim, limitada aos casos previstos nos art.ºs 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, ambos do CPC, pelo que é definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do mesmo Código, sobre a prova sujeita a livre apreciação, como são os depoimentos de testemunhas, os documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais[8].

Voltando ao caso concreto dos autos, no que respeita ao ponto 16 dos factos provados, tendo a Relação fundado a sua decisão no depoimento de uma testemunha, tal prova é apreciada livremente pelo tribunal, nos termos previstos no art.º 396.º do Código Civil, pelo que um eventual erro na apreciação desse meio de prova não é sindicável pelo presente recurso de revista.

Já quanto à factualidade aditada pela Relação ao ponto 8 dos factos provados pela 1.ª instância, tal decisão funda-se num alegado acordo das partes, invocando-se no acórdão recorrido que a ré não impugnou essa factualidade na contestação.

A confissão judicial espontânea feita em articulado de um processo judicial, segundo as prescrições da lei processual, constitui o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária e tem força probatória plena contra o confitente (art.ºs 352.º, 355.º, n.ºs, 1 e 2, 356.º, n.º 1 e 358.º, n.º 1, todos do Código Civil).

Dispõe o n.º 1 do art.º 357.º do CC que “a declaração confessória deve ser inequívoca, salvo se a lei o dispensar”. Um dos casos de confissão tácita ou presumida (também conhecida pela expressão latina «confessio ficta») resulta do incumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art.º 574.º, n.º 2, do CPC segundo o qual “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só poderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”.

A confissão judicial não está sujeita à livre apreciação do Tribunal recorrido, pelo que a violação pela Relação das normas legais acima referidas que disciplinam este meio de prova, constitui matéria sindicável pelo STJ por se tratar de matéria de direito, cabendo a este Supremo Tribunal controlar a legalidade do apuramento dos referidos factos por confissão [...].

Importa, assim, apreciar a decisão da Relação nesta parte.

No artigo 8.º da petição inicial foi alegado o seguinte:

“Embora inicialmente o cabeça-de-casal tenha, após o decesso dos pais de ambos, requerido à Ré, ora a desocupação das fracções e a sua entrega às aludidas heranças que administra (com fundamento no consignado no art. 1.137º nº 2 do Cód. Civil), ora a entrega a estas do respectivo valor locativo, condescendeu em seguida com a manutenção dessa ocupação gratuita tão-só por então se antever a possibilidade de a partilha se fazer a breve trecho e apenas por esta condição se afigurar de todo provável – propósito que contudo se veio a frustrar, aliás por causas imputáveis à Ré.”

Com base no acordo das partes, a 1.ª instância considerou provada a seguinte factualidade:

“Embora inicialmente o cabeça-de-casal tenha, após o decesso dos pais de ambos, requerido à ré a desocupação das fracções e a sua entrega às aludidas heranças que administra ou a entrega a estas do respectivo valor locativo, condescendeu em seguida com a manutenção dessa ocupação gratuita (art. 8º da petição inicial)”.

No acórdão recorrido considerou-se que “(…) a Ré na sua contestação, apenas impugnou - reputando de não correspondente com a verdade - a afirmação de que as partilhas não tivessem sido feitas por causas que lhe eram imputáveis. Não impugna a alegação de que o cabeça de casal apenas condescendeu na manutenção da ocupação gratuita por então se antever a possibilidade de a partilha se fazer a breve trecho e apenas por esta condição se afigurar de todo provável. Por isso que, na medida em que tal alegação não está em oposição à defesa deduzida pela ré na sua contestação, considerado o disposto no nº 2 do artº 573º do CPC, deve o ponto 8º da fundamentação da sentença ser aditado daquela mesma factualidade.”

Assim, considerou a Relação provada, por confissão, a seguinte factualidade:

“8 – Embora inicialmente o cabeça-de-casal tenha, após o decesso dos pais de ambos, requerido à ré a desocupação das fracções e a sua entrega às aludidas heranças que administra ou a entrega a estas do respectivo valor locativo, condescendeu em seguida com a manutenção dessa ocupação gratuita, ainda que tão-só por então se antever a possibilidade de a partilha se fazer a breve trecho e apenas por esta condição se afigurar de todo provável (art. 8º da petição inicial).”

Para apurarmos se a ré admitiu por acordo a factualidade aqui em apreciação, importa apreciar o teor da contestação por si apresentada. Tratando-se de um articulado mediante o qual a ré emitiu declarações de vontade que produzem efeitos jurídicos, tal acto processual deve ser qualificado como um acto jurídico em sentido estrito, ao qual é aplicável, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições reguladoras dos negócios jurídicos, nos termos previstos no art.º 295.º do C. Civil.

Deste modo, a interpretação do conteúdo das declarações da ré na contestação rege-se pelo teor das regras constantes dos art.ºs 236.º e 238.º do C. Civil, ou seja, tal interpretação deve ser realizada à luz do princípio da impressão do declaratário normal colocado na posição do real declaratário [...].

No que respeita ao vertido no artigo 8.º da PI, foi escrito pela ré o seguinte:

“10.º - Sendo ainda verdadeiro que, perante essa posição da ré, os outros dois irmãos referiram que, embora não concordando totalmente com essa posição, aceitaram em que ela se mantivesse a utilizar e a fruir as fracções até que fossem feitas as partilhas;

11.º - O demais alegado pela autora não corresponde inteira ou parcialmente à verdade, pelo que expressamente se impugna;

12.º - Designadamente não é verdade que as partilhas não tivessem sido feitas por causas imputáveis à ré”.

Como acima referimos, afirma-se no acórdão recorrido que “a Ré na sua contestação, apenas impugnou - reputando de não correspondente com a verdade - a afirmação de que as partilhas não tivessem sido feitas por causas que lhe eram imputáveis. Não impugna a alegação de que o cabeça de casal apenas condescendeu na manutenção da ocupação gratuita por então se antever a possibilidade de a partilha se fazer a breve trecho e apenas por esta condição se afigurar de todo provável.”

Ora, cremos que esta argumentação não tem suporte no texto da contestação.

Um declaratário normal a quem se dirigisse a declaração da ré contida na sua contestação deduziria das palavras acima transcritas que a ré impugna todo o teor do referido artigo 8.º da PI, com excepção do facto de os seus irmãos, também herdeiros, terem declarado que aceitaram que ela (ré aqui recorrente) se mantivesse a utilizar e a fruir as fracções até que fossem feitas as partilhas. É o que se retira claramente da posição assumida pela ré quando afirmou “o demais alegado pela autora não corresponde inteira ou parcialmente à verdade, pelo que expressamente se impugna.

Também não se alcança como pode concluir-se que essa alegação (de que a aceitação da permanência da ré nas fracções dependia da partilha se fazer num curto período temporal) não está em oposição à defesa deduzida pela ré na sua contestação. Pois não é pelo facto de a ré ter declarado que “designadamente não é verdade que as partilhas não tivessem sido feitas por causas imputáveis à ré”, que se pode concluir que aceita tudo o mais que foi alegado no artigo 8.º da PI. Não é despicienda a utilização do advérbio “designadamente” que claramente indica que a impugnação não se limita a esse segmento da matéria factual, antes tendo de se articular tal excerto do texto com o teor do artigo 11.º da contestação.

Do acima exposto, resulta que em lado algum na contestação, a ré admitiu a afirmação contida na PI que o cabeça de casal apenas condescendeu na manutenção da ocupação gratuita por então se antever a possibilidade de a partilha se fazer a breve trecho e apenas por esta condição se afigurar de todo provável.

Cremos que assiste, assim, razão à recorrente, não havendo suporte legal para que se possa considerar a factualidade aditada pela Relação ao ponto 8 dos factos provados admitida por acordo, pelo que, nesta parte, procede a revista, devendo ser eliminada a matéria aditada e mantida a decisão da 1.ª instância quanto ao ponto 8 dos factos provados nos termos acima já transcritos."

*[Comentário] Adere-se à conclusão do STJ, mas, quanto ao iter decisório, observa-se o seguinte:

-- Não é adequado colocar o problema ao nível da confissão judicial (nem sequer da confessio ficta, que pode ser um efeito da revelia do réu (art. 567.º, n.º 1, CPC)); a não impugnação pelo réu de um facto alegado pelo autor origina a admissão por acordo desse mesmo facto (art. 574.º, n.º 2, CPC);

-- Assim, salvo melhor opinião, o que o STJ deveria ter feito era analisar a possibilidade de aplicar o disposto no art. 674.º, n.º 3, CPC à errada consideração de que um facto alegado pelo autor se encontra admitido por acordo; pode acrescentar-se que não se vê qualquer obstáculo a essa aplicação.

MTS