"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/03/2021

Jurisprudência 2020 (168)


Citação; 
prazo de defesa; processo urgente*


1. O sumário de RC 11/9/2020 (4143/18.6T8VIS-B.C) é o seguinte:

I – Nos termos do art. 227º/2 do NCPC, “No acto de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.”.

II - A expressão “… o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa…” reporta-se exclusivamente à duração do prazo concedido ao citado para se defender em juízo (v.g. o de 30 dias fixado no art. 569º do NCPC, o de dez dias para o exercício do contraditório que decorre das disposições conjugadas dos arts. 365º, 366º e 293º/2 do NCPC, o de 20 dias fixado no art. 728º/1 do NCPC, o de 15 dias fixados nos art. 128º e 156º/1 do CPT).

III - Como facilmente se constata da simples análise das normas acabadas de enunciar os prazos legalmente fixados para a apresentação da defesa são fixos, não variando a duração dos mesmos em função da natureza urgente ou não dos processos ou da circunstância dos mesmos correrem ou não em férias judiciais.

IV - Tal expressão não comporta, pois e ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão à natureza urgente ou não de uma determinada ação, nem à forma de contagem dos prazos processuais no que respeita à sua continuidade e/ou suspensão ou não no decurso das férias judiciais.

V - Assim sendo, sustentar-se que essa expressão comporta uma exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e de que, por isso, o prazo para a apresentação da defesa não se suspende em férias judiciais redunda na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Questão única: saber se no acto de citação devem ser fornecidas ao citado informações sobre a natureza urgente da acção e sobre a não suspensão em férias judiciais do prazo para apresentação da defesa, sendo nula a citação que não comporte tais informações.

Como se depreende do relatório deste acórdão, o despacho recorrido considerou nula a citação da ré pela circunstância de não ter sido fornecida no acto de citação a informação sobre a natureza urgente deste processo e sobre o decurso do prazo para contestar no período de férias judiciais.

Nos termos do art. 227º/2 do NCPC, “No acto de citação, indica-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorre no caso de revelia.”.

A decisão recorrida considerou que a exigência de indicação do prazo dentro do qual pode ser apresentada a defesa comporta a exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e que o decurso do prazo não se suspende em férias judiciais.

Argumenta a decisão recorrida no sentido de que “… no caso em apreço, pese embora no acto de citação conste o prazo de 15 dias, para contestar a acção e se indique o período das férias judiciais, o certo é que da mesma não consta que se trata de processo urgente e que tal prazo não se suspende nas férias judiciais.

Tal menção era essencial para a parte conhecer o prazo dentro do qual podia oferecer a defesa, sendo por isso um elemento a transmitir obrigatoriamente ao citando, tal como decorre do disposto no supra referido artº 227º, nº 2 do CPC.”.

Não acompanhamos a decisão recorrida.

“A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.” – art. 9º/1 do CC.

“Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” – art. 9º/2 do CC.

“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” – art. 9º/3 do CC.

Resulta do art. 9º transcrito que na interpretação da lei devem considerar-se os elementos literal, histórico, sistemático e teleológico, tudo com vista a alcançar-se o resultado final pretendido, qual seja o de ser desvendado o espírito da lei (o denominado pensamento legislativo objectivo).

O ponto de partida do intérprete é constituído pelo elemento literal que, além disso, também constitui o limite da interpretação.

Com efeito, a letra da lei tem duas funções: a negativa ou de exclusão, que impõe o afastamento de qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei (teoria da alusão); e a positiva ou de selecção que determina sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem.

Logo por aqui se verifica que a interpretação sustentada pelo tribunal recorrido esbarra no elemento literal, em especial na sua função negativa.

Com efeito, por um lado, a expressão “… o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa…”, reporta-se exclusivamente à duração do prazo concedido ao citado para se defender em juízo (v.g. o de 30 dias fixado no art. 569º do NCPC, o de dez dias para o exercício do contraditório que decorre das disposições conjugadas dos arts. 365º, 366º e 293º/2 do NCPC, o de 20 dias fixado no art. 728º/1 do NCPC, o de 15 dias fixados nos art. 128º e 156º/1 do CPT).

Como facilmente se constata da simples análise das normas acabadas de enunciar os prazos legalmente fixados para a apresentação da defesa são fixos, não variando a duração dos mesmos em função da natureza urgente ou não dos processos ou da circunstância dos mesmos correrem ou não em férias judiciais.

Tal expressão não comporta, pois e ainda que imperfeitamente expressa, a mínima alusão à natureza urgente ou não de uma determinada acção, nem à forma de contagem dos prazos processuais no que respeita à sua continuidade e/ou suspensão ou não no decurso das férias judiciais.

Assim sendo, sustentar-se que essa expressão comporta uma exigência de indicação de que se trata de processo de natureza urgente e de que, por isso, o prazo para a apresentação da defesa não se suspende em férias judiciais redunda na adopção de uma interpretação que não tem a mínima base de apoio na letra da lei, o que é vedado pelo art. 9º/2 do CC.

Note-se, ademais, que a expressão utilizada no citado art. 227º/2 do NCPC é claramente distinta das expressões “… indicando-lhe o dia até ao qual pode oferecer a defesa…” que era utilizada no art. 242º/1 do CPC de 1961, ou do “… termo do prazo até ao qual pode ser oferecida a defesa e que é marcado com a dilação …” que era utilizada no art. 244º/2 do mesmo CPC, as quais, a manterem-se na actualidade, exigiriam, essas sim, que se indicasse o último dia até ao qual a defesa poderia ser apresentada, o que obrigaria a ponderar a natureza urgente ou não do processo em questão e a suspensão ou não dos prazos em férias judiciais.

Ora, se o legislador processual civil actual, ao contrário do que sucedeu com o de 1961, não pretendeu que fosse indicado o último dia disponível para o citado apresentar a sua defesa e se bastou, literalmente, com a indicação do prazo dentro do qual pode oferecer a defesa, o qual, como visto, tem duração fixa legalmente imposta, tal só pode significar que aquele legislador não impôs ao autor da citação a obrigação de ponderar e esclarecer o citado sobre a natureza urgente ou não do processo e sobre a suspensão ou não do prazo para apresentação da defesa em férias judiciais.

Finalmente, a história da lei (trabalhos preparatórios, exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, PL 521/2012, de 2012/11/22, e occasio legis - circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada), o elemento sistemático que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo sistemático, e o elemento racional ou teleológico que leva a atender-se ao fim ou objectivo que a norma visa realizar (ratio legis)[1], não fornecem qualquer argumentação no sentido propugnado pela decisão recorrida que, aliás e deste ponto de vista, nada aduz.

Não se verifica, assim, o fundamento fáctico-jurídico em que o tribunal recorrido ancorou a nulidade da citação que declarou.

Não pode subsistir, por isso, a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que decida a questão da (in)tempestividade da contestação apresentada pela ré partindo do pressuposto de que a citação não padece de qualquer vício que determine a sua nulidade e que justifique a suspensão em férias judiciais do prazo para a ré contestar."


*3. [Comentário] Acompanha-se o decidido pela RC, principalmente com o argumento de que a regra é a continuidade do prazo de contestação (art. 138.º, n.º 1, CPC), pelo que, se a parte quiser beneficiar da suspensão durante as férias judiciais, é-lhe exigível que se certifique de que não ocorre nenhuma excepção a essa suspensão.

MTS