"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/03/2021

Jurisprudência 2020 (174)


Procedimento cautelar; 
auto-suficiência do procedimento; litigância de má fé*


1. O sumário de RL 24/9/2020 (19727/18.4 SLSB-A.L1-6) é o seguinte:
  
I - Tendo sido julgada extinta a instância, por deserção, e tendo sido formulado pelo Réu/Requerido pedido de indemnização por litigância de má-fé da Autora/Requerente, a correspondente apreciação/julgamento e eventual condenação, constitui objecto de pretensão de que o juiz não pode deixar de conhecer, sob pena de nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do CPC.

II - Em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má-fé apenas poderá fundar-se em má-fé instrumental ou, no caso de má-fé substancial, quando respeite a factos que não hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.

III - Podendo suceder que o destino da acção principal não seja concordante com o do procedimento cautelar, apresenta-se como mais prudente e sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência ou não de má-fé substancial.

IV - O juízo sobre a má-fé instrumental ou processual, também deve ser relegado para a decisão final a proferir na acção principal quando a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.


2. Na fundamentação do acórdão é o seguinte:

"O art.º 542.º n.º 2 do CPC, classifica como litigante de má-fé, aquele que, com dolo ou negligência grave:

“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
“b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
“c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
“d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”

Resulta pois do preceito, que a litigância de má-fé pressupõe, uma actuação dolosa ou com negligência grave, consubstanciada, objectivamente numa das diversas situações previstas nas quatro alíneas do n.º 2 do normativo legal transcrito.

No fundo, pode afirmar-se que a má-fé se traduz na violação dos deveres de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade e não requerer diligências meramente dilatórias.

A má-fé tanto pode ser material ou substancial (diz respeito ao fundo da causa – als. a) e b) como instrumental (diz respeito à relação jurídica processual – als. c) e d)). Naquele caso, “o litigante espera obter uma decisão de mérito que não corresponde à realidade”; neste caso, “procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta” – Prof. J. A. dos Reis, CPC anotado, anotação ao art.º 465.º.

Teremos porém que ser algo cautelosos quando confrontados com situações que tendem a espelhar determinadas teses jurídicas e que factualmente se não confirmam.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 11/12/2003 (in, www.dgsi.pt) “...a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do Estado de Direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º 456.º [hoje 542.º], do CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b) do n.º 2”.

Na realidade, a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa-fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má-fé substancial.

No regime actual vigente, a condenação por litigância de má-fé pode fundar-se, além da situação de dolo, em negligência grave.

A negligência grave verifica-se nas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida.

Há, porém, que não olvidar, como é referido no acórdão do STJ de 20-03-2014[3], “(…) que hoje a condenação como litigante de má fé deve ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária sendo esta última aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionado, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de lhe ser exigível essa consciencialização.(…).»

Uma questão é a alegação factual, outra bem diferente, é a prova alcançada. No caso concreto, os factos invocados pelo Requerido na oposição, que suportam o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, ou seja, o invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”, não foram fixados e valorados pela 1.ª instância e subsistem, na sua maioria, controvertidos.

Alega o Requerido e Recorrente que a Requerente/Recorrida instaurou uma acção de alimentos definitivos, alegando basicamente que tinha tido uma diminuição da remuneração, por estar de baixa médica;

- que alegou, igualmente, que tinha um processo pendente de inventário, que também lhe tinha tirado liquidez;

- que omitiu que não paga habitação, nem paga veículo, nem qualquer outra despesa relevante, por estarem a ser suportadas pelo cabeça-de-casal, enquanto despesas de aquisição e manutenção de bens comuns;

- que omitiu que não paga telemóvel, nem seguro de saúde, que são suportadas pela empresa, uma vez que CONTINUA A SER DIRECTORA DE QUALIDADE DA EMPRESA, apesar de não comparecer ao seu local de trabalho;

- que omitiu também que basicamente só paga água, electricidade, gás e TV a cabo, como ainda despesas com cabeleireiro, depilação, restaurantes e outras do género, que não são essenciais à sobrevivência, como quer dar a entender;

- que omitiu ainda que como directora recebe a quantia de aproximadamente 1.800 Euros líquidos;

- que omitiu que além disto desenvolvia actividade paralela de organização e promoção de eventos.

Alega, por fim, que todos estes factos foram reportados na contestação do processo principal e que o Tribunal Recorrido não podia deixar de conhecer dos mesmos.

E que, apesar de todo essa realidade invocada pelo Réu e Requerido, em meados de Agosto de 2019, a Autora/Requerente/Recorrida não se coibiu de instaurou um procedimento cautelar de alimentos provisórios invocando sucintamente os mesmos factos acima descritos.

Tendo pedido alimentos provisórios, para as necessidades essenciais do ser humano, sensivelmente uma semana antes de ir passar férias de verão com a filha na Alemanha (22 de Agosto de 2019).

Com efeito, o Tribunal Recorrido ignorou o pedido de condenação da Requerente como litigante de má-fé, não tendo sequer feito qualquer referência a esta factualidade alegada pelo Requerido, aqui Recorrente, que será essencial para o apuramento da existência, ou não, duma situação de litigância de má-fé, sendo que só o prosseguimento do processo, com vista ao apuramento desses factos controvertidos, com excepção do referente à situação de baixa médica que está provado por documento idóneo, permitirá que se profira decisão em que se elenquem os factos dados como provados e como não provados, para então se decidir de direito sobre esta específica questão da má-fé.

A apreciação do pedido de condenação da Requerente, formulado na oposição pelo Requerido, só poderá ser feita com base na avaliação que se faça de toda a prova produzida/existente nos autos, quanto aos factos atinentes à má-fé, sendo que a decisão a proferir terá que elencar, quer os que resultem provados, quer os que não se provarem e, só então concluir com decisão final.

Assim sendo, numa primeira apreciação - e porque tendemos a subscrever a primeira tese enunciada supra -, poderíamos ser tentados a concluir, como nos Acórdãos desta Relação de Lisboa, de 09-01-2020, proc. n.º 2487/17.3T8VFX.L1-2 e de 21-11-2013, proc. n.º 1063/11.9TVLSB.L1-, disponíveis em www.dgsi.pt., pela revogação da decisão recorrida, por afectada de nulidade, e consequente determinação que os autos prosseguissem os seus termos no Tribunal Recorrido exclusivamente para apreciação, de facto e de direito, da invocada questão da litigância de má-fé da Requerente.

Na verdade, como se ponderou no Ac. desta Relação de Lisboa, de 26/06/2014, proc. n.º 1524/10.7TBCSC.L1, acessível em www.dgsi.pt., “o apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má-fé é uma questão de facto que apenas o juiz que assistiu ao seu desenrolar pode valorar para decidir se efectivamente essas ocorrências traduzem ou não má-fé.”

Não obstante, depois de uma maior ponderação, que levou em consideração a natureza cautelar do presente processo, ou seja, as especificidades do caso concreto, entendemos ser outra a orientação a seguir por este Tribunal de Recurso no caso sub judice, na linha, aliás, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25-01-2005, proc.º n.º 3913/04, disponível no sítio www.dgsi.pt., de cuja fundamentação, na parte que aqui releva e à qual aderimos, se pode ler:

“Apesar da indiscutível natureza de provisoriedade das providências cautelares (cfr. art.º 381º e 392º do Cód. Proc. Civil), nada na lei afasta a aplicabilidade do instituto da má fé em sede dos procedimentos conducentes ao decretamento de tais providências Ac. STJ de 19/10/99, relatado pelo Ex.mo Cons. Ferreira Ramos, in www.dgsi.pt/jstj e Ac. Rel. Coimbra de 27/01/2004, relatado pelo Ex.mo Des. Jorge Arcanjo, in www.dgsi.pt/jtrc., sendo até sustentado no Ac. do STJ de 06/06/2000 que, nesses casos, basta que o requerente não actue com a prudência normal BMJ, nº 498, pág. 179. No acórdão em questão afirma-se textualmente: “Nas providências cautelares bastará, até, que o requerente não tenha agido com a prudência normal, pois neste caso, se a providência for considerada injustificada, o requerente responde pelos danos culposamente causados ao requerido - artigo 390.°, n.° 1”.
Contudo, se bem vemos, também aqui há que distinguir.

Os procedimentos cautelares bastam-se com uma averiguação sumária e provisória (sumaria cognitio) da provável ou aparente existência do direito ameaçado (fumus boni iuris), com vista a evitar, enquanto a acção principal não define a situação, a sua lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora).

Por isso, sendo o processo mais célere e a produção da prova menos aprofundada e segura, é habitual, na decisão de facto, aludir-se a “factos indiciados” e não a “factos provados”. E a improcedência do procedimento cautelar não significa necessariamente a improcedência da acção principal que poderá vir a ser total ou parcialmente procedente Ac. do STJ de 19/10/1999, já referido.

Como escreve Abrantes Geraldes Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 2ª edição, págs. 81/82., são requisitos gerais para o decretamento de providências cautelares não especificadas a probabilidade séria da existência do direito invocado, o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; a adequação da providência à situação de lesão iminente; e a não existência de providência específica que acautele aquele direito.

No caso da restituição provisória de posse, são pressupostos do decretamento da providência a posse, o esbulho e a violência (art.º 393º do CPC), sendo, pois, a posse, o direito cuja probabilidade séria de existência constitui requisito indispensável.

A circunstância de, em sede de procedimento cautelar, não só não resultar indiciada a existência da posse alegadamente esbulhada, como até resultar indiciada a sua inexistência não implica necessariamente que o mesmo venha a suceder na acção principal.

E a contradição entre a factualidade alegada pelo requerente no que tange à probabilidade da existência do seu direito e a factualidade nessa matéria indiciada no procedimento cautelar, mesmo aliada a indícios de dolo ou negligência grave do requerente, não poderá, se bem vemos, conduzir à condenação imediata por litigância de má fé, sob pena de, finda a acção principal, poder chegar-se à conclusão de que tal condenação foi precipitada e injusta.

Ou seja, afigura-se-nos que em sede de procedimentos cautelares, a condenação por litigância de má fé apenas poderá fundar-se em má fé instrumental ou, no caso de má fé substancial, quando não respeite a factos (designadamente à existência ou não do direito alegadamente ameaçado ou violado) que hajam de ser objecto de apreciação na acção principal.”

Ora, no caso dos presentes autos, a má-fé indiciada, alegada pelo Requerido, é, essencialmente, de natureza material ou substancial, pois os factos alegados que suportam o pedido de condenação da Requerente ou da sua Ilustre Patrona como litigante de má-fé, respeitam ao invocado “alterar a verdade dos factos”, “omitir factos” e “omitir documentos”.

Trata-se de factos que hão-de ser objecto de apreciação mais aprofundada e segura na acção principal de alimentos, afigurando-se, assim, como prudente e mais sensato deixar para aquela acção o juízo definitivo sobre a existência, ou não, da alegada má-fé material ou substancial da Requerente, mas também sobre a má-fé instrumental ou processual, já que, no caso em apreço, a conclusão sobre o alegado “uso manifestamente reprovável” do processo e da providência cautelar, com o “fim de conseguir um objectivo ilegal” (art.º 542.º/2-d) não dispensa a prova dos factos alegados indicadores da má-fé substancial.

Entende-se, assim, que a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e, suprindo tal nulidade, decide-se que o juízo definitivo sobre a alegada má-fé da Autora/Requerente e da sua Ilustre Patrona, Sra. Dra. Susana …., dever ser relegado para a acção principal, mantendo-se, consequentemente, a declarada extinção da instância, por deserção."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se da solução defendida pela RL.

b) O que sucedeu foi o seguinte:

-- Foi proposto um procedimento cautelar; na contestação a este procedimento, o requerido pediu a condenação da requerente como litigante de má fé;

-- O procedimento cautelar não chegou a ser julgado quanto ao mérito, dado que a instância se extinguiu por deserção;

-- O tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre o pedido de condenação da requerente como litigante de má fé;

-- A RL detectou a nulidade da sentença da 1.ª instância, mas entendeu que a decisão sobre a litigância de má fé só pode ser tomada em função do que venha a obter-se na acção principal.

c) Com a devida consideração, esta solução não é aceitável. Qualquer processo -- e mesmo qualquer procedimento cautelar -- rege-se por um princípio de auto-suficiência: tudo o que é pedido nesse processo tem de ser apreciado no próprio processo. Há apenas uma excepção: aquela em que a apreciação de um pedido depende da apreciação de um outro pedido prejudicial que não pode ser apreciado na acção (nomeadamente, porque esse pedido já se encontra formulado numa outra acção já pendente).

É aceitável que o tribunal conclua que não há elementos para condenar a parte como litigante de má fé. O que não é aceitável é que o tribunal conclua que, saber se a parte actuou como litigante de má fé no processo que está pendente perante ele, depende do que venha a ser obtido num outro processo.

O critério também vale para os procedimentos cautelares. Não é aceitável que se relegue para a acção principal qualquer juízo sobre a litigância de má fé num daqueles procedimentos. A seguir-se este critério, seria mesmo impossível qualquer condenação do requerente de um procedimento cautelar sempre que o mesmo venha a ser julgado improcedente, porque, afinal, nunca se sabe o que pode vir a ser provado por esse mesmo requerente na acção principal.

Acresce que, sempre que o procedimento cautelar tenha terminado sem a apreciação do mérito ou com uma decisão de improcedência, a apreciação da litigância de má fé do requerente daquela providência é relegada para uma acção principal que, muito provavelmente, nunca virá a ser instaurada. 

MTS