"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/03/2021

Jurisprudência 2020 (164)


Nulidade da decisão;
falta de fundamentação*


1. O sumário de RP 8/9/2020 (15756/17.5T8PRT-A.P1) é o seguinte:

I - De acordo com o previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

II - Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

III - No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.

IV - O artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

V - Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente.

VI - Verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável.

VII - Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm que se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, insuscetível de ser apreciada criticamente por não se alcançarem as razões subjacentes e comprometendo a sua própria execução por força de tais vícios.

VIII - Ao julgar confessados os factos alegados pelo opoente por efeito da revelia, num caso em que não foram alegados factos passíveis de confissão que não tivessem sido já antecipadamente impugnados no requerimento executivo, a decisão recorrida não padece verdadeiramente de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, mas antes de erro de julgamento na apreciação dos efeitos da revelia do exequente.

IX - Sendo a oposição à penhora um incidente da ação executiva com processado autónomo, é-lhe aplicável a previsão do nº 1 do artigo 665º do Código de Processo Civil.

X - Quer o nº 4 do artigo 829º-A do Código Civil, quer o nº 2 do artigo 703º do Código de Processo Civil não constituem desvios ao princípio do pedido, mas tão-só à regra da literalidade do título, admitindo-se que os limites da execução não se definem apenas pelo título executivo (artigo 10º, nº 5, do Código de Processo Civil) mas também com o concurso da lei substantiva e adjectiva.

XI - A manifestação de vontade do exequente nas alegações de recurso no sentido de haver do executado o que lhe cabe a título da sanção prevista no nº 4, do artigo 829º-A, do Código Civil deve ser relevada desde que ocorra até ao momento da extinção da ação executiva, atento o figurino próprio da ação executiva que não comporta audiência final, não lhe sendo aplicável o termo final previsto no nº 2, do artigo 265º do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Fundamentos de direito

4.1 Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentos de facto e oposição dos fundamentos com a decisão e por ambiguidade ou obscuridade

O recorrente pugna pela nulidade da decisão recorrida por oposição dos fundamentos com a decisão e ainda por ambiguidade ou obscuridade, alegando para o efeito que os fundamentos da sentença – confissão dos factos por falta de pronúncia do exequente – não fazem o menor sentido, inexistem por inexistirem factos alegados pelo opoente, estando em oposição com a decisão, que não pode basear-se em algo que não existe, além de que nos termos do disposto no art.º 732.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 785.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, não se consideram confessados os factos que estiverem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo e, finalmente, a sentença padece de ambiguidade e obscuridade, pois julga procedente a oposição e ordena a restituição ao opoente da parte que exceda o montante necessário para garantir o integral pagamento das custas e quantia exequenda, sendo que a quantia exequenda há-de ser, necessariamente, o montante de € 25.000,00 acrescido de IVA à taxa de 6%, os juros civis requeridos e os compulsórios que decorrem da Lei, enquanto as custas incluirão os montantes pagos pelo exequente a título de taxa de justiça e os honorários da Agente de Execução – artigo 541º do Código de Processo Civil.

Cumpre apreciar e decidir.

De acordo com o previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis [Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140], é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de Março de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sérgio Poças, no processo nº 161/05.2TBPRD.P1.S1 e acessível no site da DGSI].

O artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício previsto na primeira parte da alínea em análise verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

Já o vício previsto na segunda parte da aludida previsão legal, decorrente da eliminação do fundamento de esclarecimento da sentença previsto anteriormente na alínea a), do nº 1, do artigo 669º do Código de Processo Civil, na redação que vigorava antes da vigência do atual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, ocorre sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível. Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente. Verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável. Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm que se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, insuscetível de ser apreciada criticamente por não se alcançarem as razões subjacentes e comprometendo a sua própria execução por força de tais vícios.

No caso em apreço, na decisão recorrida julgaram-se confessados os factos alegados pelo recorrido no seu requerimento de oposição à penhora, por falta de contestação do ora recorrente e, nessa sequência, sem qualquer ponderação ou apreciação crítica, julgou-se procedente a oposição à penhora, determinando-se o levantamento da penhora efetuada nos autos principais relativamente à parte que excede o montante necessário para garantir o integral pagamento das custas e quantia exequenda e a respetiva restituição ao opoente.

Importa não olvidar que a partir da reforma do direito processual civil operada pelo decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, deixou de existir o chamado cominatório pleno (veja-se o nº 2, do artigo 784º do Código de Processo Civil, na redação que vigorava antes das alterações introduzidas pelo citado decreto-lei), pelo que a revelia da parte passiva implica apenas a confissão dos factos alegados pela parte ativa (trata-se do cominatório semi-pleno), devendo sempre ter em atenção os factos alegados no requerimento inicial da ação executiva e que antecipadamente impliquem impugnação dos factos alegados pela parte que deduz pretensão incompatível com esta.

Ora, analisando o requerimento de oposição à penhora, não se colhem no mesmo factos concretos que sejam suscetíveis de confissão pelo requerido em tal incidente, já que a adesão do opoente ao vertido no ponto 8 do auto de penhora se deve considerar antecipadamente impugnada pelo que foi pedido no requerimento executivo, na medida em que aí, além do capital que o executado reconheceu em dívida, no montante de € 25.000,00, do IVA à taxa de 6% no montante de € 1.500,00, se pediram também juros de mora contados à taxa legal desde 01 de julho de 2017 até efetivo e integral pagamento.

De facto, no requerimento de oposição à penhora, sem total congruência [...], vêm suscitadas duas questões de direito que importava resolver: a primeira é da determinação do capital exequendo – vinte e cinco mil euros, numa certa perspetiva da recorrida – e a segunda é a da irresponsabilidade da recorrida pelas despesas da execução em virtude de beneficiar de apoio judiciário.

A decisão recorrida, sem atentar na inexistência de factos concretos alegados pelo requerente da oposição à penhora passíveis de confissão, julgou confessados os factos alegados no requerimento de oposição e, depois, sem mais [...], julgou procedente a oposição, determinando o levantamento da penhora efetuada nos autos principais relativamente à parte que excede o montante necessário para garantir o integral pagamento das custas e quantia exequenda e a respetiva restituição ao opoente, não atentando que uma das pretensões da agora recorrida era a de não pagamento de quaisquer despesas da execução em virtude de beneficiar de apoio judiciário e não curando de concretizar a abrangência da quantia exequenda, matéria controvertida entre as partes.

Neste contexto, por um lado, a decisão recorrida afirma a procedência da oposição à penhora e, por outro lado e simultaneamente, na realidade julga a mesma oposição parcialmente improcedente responsabilizando o opoente pelo pagamento das custas da ação executiva.

A tudo isto, que já não é pouco, acresce a ambiguidade na determinação do que é a quantia exequenda já que não se curou minimamente de definir os seus precisos contornos, como se impunha, pois que havia pelo menos um aparente conflito das partes sobre esta matéria.

Ao julgar confessados os factos alegados pelo opoente por efeito da revelia, num caso em que não foram alegados factos passíveis de confissão que não tivessem sido já antecipadamente impugnados no requerimento executivo, a decisão recorrida não padece verdadeiramente de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, mas antes de erro de julgamento na apreciação dos efeitos da revelia do exequente.

Ao julgar procedente a oposição à penhora e ao determinar o levantamento da penhora efetuada nos autos principais relativamente à parte que excede o montante necessário para garantir o integral pagamento das custas e quantia exequenda e a respetiva restituição ao opoente, o tribunal recorrido proferiu uma decisão em si mesma contraditória, na medida em que procedendo, como se declarou, a oposição, o opoente não devia ser simultaneamente responsabilizado pelo pagamento das custas, decisão que porém não foi atacada pelo recorrido que tinha legitimidade para tanto, pelo que não deve nesta sede ser especificamente escrutinada [...].

Por outro lado, ao afirmar que na procedência da oposição, a penhora se cingia ao necessário para garantir o integral pagamento das custas e quantia exequenda, não curando de precisar em que consistia precisamente a quantia exequenda [...], matéria sobre a qual havia patente discordância entre o opoente e a Sra. Agente de Execução, o tribunal recorrido proferiu um dispositivo ambíguo que torna a decisão ininteligível e inexequível.

Pelo exposto, declara-se a nulidade da decisão recorrida por ambiguidade do dispositivo."

*3. [Comentário] Há uns anos foi publicado um texto com o sugestivo -- mas não muito feliz -- título "Morra Alberto dos Reis!". Sem pretender ressuscitar Alberto dos Reis ou sequer cuidar da sua memória, há que, em todo o caso, dizer que uma coisa foi o que Alberto dos Reis disse e outra bem diferente foi o que se passou a dizer que Alberto dos Reis disse.

Lembre-se o trecho original de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado V (1952), 140):

"Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da fundamentação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade".

O que Alberto dos Reis diz é que, enquanto vício da sentença, ou seja, como fundamento da sua nulidade, apenas releva a falta de fundamentação. O equívoco foi passar a entender-se que Alberto dos Reis quis dizer que, se da sentença constasse uma qualquer fundamentação (por exemplo, um "porque sim" ou um "porque o zodíaco o impõe"), já não havia falta de fundamentação. A verdade é que isso não resulta do trecho de Alberto dos Reis.

Isto dito, há que concluir que a RP decidiu bem ao entender que uma fundamentação imperceptível da sentença é equivalente a uma falta de fundamentação. Muito provavelmente, como Alberto dos Reis também concluiria, pensando, por exemplo, no paralelismo com a ininteligibilidade do objecto do processo como motivo de ineptidão da petição inicial.

MTS