"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/03/2021

Jurisprudência 2020 (179)


Servidão predial; 
acção inibitória; legitimidade passiva*


I. O sumário de RC 13/7/2020 (178/16.1T8TND.C1) é o seguinte:


1.- Se o autor não instaura uma acção constitutiva de um direito de servidão de passagem e de servidão de águas, mas peticiona apenas que se declare a existência dos referidos direitos com a inerente condenação da parte contrária ao seu reconhecimento e para que deixe de praticar actos lesivos desses alegados direitos, deverão estar em juízo as pessoas que alegadamente se encontrem a violar o direito do autor.

2.- A servidão de passagem por destinação do pai de família constitui-se no momento em as fracções de um determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.

3.- A servidão de presa traduz-se, no direito de captar e derivar a água, em benefício do prédio dominante, por meio de levadas, canais ou outras obras análogas, no prédio serviente. A servidão de aqueduto consiste essencialmente no direito de conduzir a água através do prédio serviente, para o prédio dominante.

4.- Para a aquisição do direito de servidão de águas, torna-se ainda necessário, identificar o prédio onde exista a fonte ou nascente que revelem a captação e a posse da água nesse prédio e o prédio serviente (art. 1390.º nº2 do CC).


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"No caso em apreço consideramos que não foi preterido o litisconsórcio necessário porque estamos perante uma acção de condenação e não uma acção constitutiva e nessa medida as partes são legitimas porque a acção tem acautelado o seu efeito útil com as partes da acção. Não se tendo invocado que os terceiros referidos coloquem em causa a servidão de pé e de aqueduto e presa e atenta a natureza da acção consideramos que a decisão a proferir produz o seu efeito útil quanto aos réus que é cessar a alegada violação dos direitos invocados.

No caso dos autos o que é peticionado pelo autor é o reconhecimento da servidão constituída por destinação do pai de família e usucapião de pé, presa e de aqueduto e a condenação dos réus ao seu reconhecimento e que se abstenham de actos impeditivos da passagem e uso da água e a prática de actos que evitem a obstrução dessa utilização. O autor refere que quem coloca em causa ou obstáculos ao normal exercício das invocadas servidões são os réus referidos e não se invoca que os terceiros estejam a impedir a sua utilização e nessa medida não existe litisconsórcio passivo.

Configurada nestes termos a relação material controvertida, por referência ao pedido concretamente formulado, torna-se evidente que o litígio concreto a dirimir apenas diz respeito aos autores e aos réus.

Neste sentido, vide o AC da RC Processo: 640/13.8TBLMG.C1, Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE Data do Acórdão: 02-04-2019: «Sumário: I – Sendo o objectivo da legitimidade, em última análise, o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de molde a não voltar a repetir-se, a aferência da legitimidade plural terá necessariamente que passar pela natureza e fim da acção.

II – Se, nas acções meramente declarativas, deverão estar em juízo as pessoas que disputam a situação activa ou passiva em causa, e se nas acções constitutivas se requererá a presença de todos os sujeitos da relação jurídica a constituir, modificar, ou extinguir, nas acções de condenação, o normal é que baste à legitimidade plural a presença passiva na lide de quem se encontre a violar o direito do autor.

III- A A. nos presentes autos não pretende uma alteração na ordem jurídica existente, mas apenas que, reconhecendo-se que tem direito à água da barroca pelo instituto da preocupação e à água das duas nascentes pelos institutos da usucapião e destinação do pai de família, esses seus direitos sejam reintegrados com a condenação dos RR. a limparem o rego e a permitir-lhes, a ela e aos seus familiares, o acesso à barroca, mina, rego e poças.

IV – Por isso, basta que a A. intente a acção contra quem se encontra a violar aqueles direitos.

V – Exigir a presença passiva dos proprietários dos prédios em que se situam as nascentes, a barroca, a mina e as poças, bem como a de todos os proprietários por cujos prédios a água passe, implicaria denegar ou dificultar substancialmente direitos…»(sic).

Igualmente, neste sentido, vide o Ac. RG 1428/12.9TBBCL.G2, Relator: EVA ALMEIDA, 11-10-2018: «Sumário: I - A servidão predial define-se como “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” – art.º1543º do CC. Foi doado aos autores um prédio que beneficia das águas captadas noutro prédio e não as águas, como coisa autónoma (204º nº 1 al. b) do CC), separadas do prédio onde nascem ou são captadas e sem afectação a qualquer outro prédio. No caso e nas palavras da escritura de doação as águas pertencem ao prédio dos autores, são um benefício deste prédio e efectivamente assim vêm sendo fruídas. Estamos por isso perante um encargo sobre um prédio a favor de outro prédio determinado, que foi doado aos autores com esse benefício. O direito às águas está assim estabelecido não a favor dos autores (direito de propriedade), mas sim do respectivo prédio (servidão de águas).

II - O facto do nosso entendimento sobre a natureza do direito à água invocado pelos autores divergir conceptualmente do que consta da sentença recorrida, em nada afecta a sorte da presente acção, em que os autores, como pressuposto dos direitos que aqui pretendem ver reconhecidos (servidão de aqueduto e a adminiculum de passagem) apenas têm de provar o direito à água que é conduzida subterraneamente através do prédio dos réus, sendo indiferente que se trate de um amplo direito de propriedade sobre essas águas ou de um mais limitado direito, de fruírem no respectivo prédio da água captada num determinado prédio de terceiros (servidão de águas).

III - Em qualquer dos casos, é título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, nomeadamente a usucapião, quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio (art.º 1390º do CC), como é o caso.

IV - Esta acção não é constitutiva, antes se apresentando como uma acção de condenação, na qual os autores, arrogando-se a titularidade de direitos que alegam ter sido violado pelos réus, pretendem se declare a existência e a violação desses direitos e se determine aos réus a realização da prestação (em regra, uma acção mas podendo bem ser uma abstenção ou omissão) destinada a reintegrar os direitos violados ou a reparar de outro modo a falta cometida.

V – Assim, tal como a propósito da desnecessidade de intervenção nesta acção dos proprietários do prédio onde são captadas as águas, também relativamente aos proprietários dos prédios atravessados pelo aqueduto (mina), não se impõe a sua demanda, nem reconhecimento nesta acção das demais servidões de aqueduto constituídas sobre prédios de terceiros, para que os autores vejam reintegrado o seu direito de servidão de aqueduto sobre o prédio dos réus.»(sic).

Igualmente no mesmo sentido vide o AC RG Processo: 76/09.5TBMLG.G1 Relator: MANUEL BARGADO 22-02-2011: « Sumário: 1. Se os autores pedem que o réu seja condenado a reconhecer que aqueles são os proprietários das águas com que irrigam o seu prédio rústico e que o prédio do réu está onerado com uma servidão de aqueduto em benefício do seu prédio, e ainda a sua condenação a desobstruir o rego que corre a céu aberto no seu prédio por forma a permitir que as águas sejam conduzidas até ao prédio dos autores e a abster-se, no futuro, de praticar quaisquer actos que impeçam essa mesma condução da água, não é necessária a demanda do proprietário do prédio onde se situa a poça donde provem aquela água, para que esteja assegurada a legitimidade do réu na acção.

2. O direito à água que nasce em prédio alheio pode ser – conforme o título da sua constituição – um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, ou seja, um direito de propriedade; e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste, isto é, um direito de servidão.

3. Porém, para a aquisição do direito por usucapião, trate-se da aquisição da propriedade ou de servidão, torna-se ainda necessário, além dos demais requisitos exigidos por lei, este outro: o da construção de obras visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.

4. Na dúvida quanto aos termos em que se processa a posse, mas sendo seguro que há a intenção de se exercer um direito real, deve concluir-se que se quer possuir em termos de direito de propriedade.».

Conforme se refere no citado acórdão que estamos a acompanhar dado o paralelismo com o caso dos autos: «… Não se vê, pois, considerando a relação material controvertida tal como foi configurada pelos autores/recorrentes, que a decisão a obter só produza o “efeito útil normal” com a presença na lide do proprietário (ou proprietários) do referido prédio da Leira de Canle, e em relação aos quais em momento algum da petição inicial é afirmado que tenham colocado em questão os direitos a que os autores/recorridos se arrogam, sendo certo que também não alegou o réu/recorrido que a obstrução à passagem das águas para o prédio dos recorrentes realizada no seu prédio, tenha sido efectuada por ordem ou com o consentimento desse proprietário, caso em que se justificaria o seu chamamento ao processo através do respectivo incidente de intervenção principal provocada.

… Não é uma acção deste tipo que está em causa nos presentes autos: os autores não pretendem que seja constituído um direito de propriedade sobre as águas em questão nem que seja constituída uma servidão de aqueduto sobre o prédio do réu (art. 1550º do Código Civil), mas apenas que se declare a existência de tais direitos, com a consequente condenação do réu no seu reconhecimento e na realização da prestação destinada a reintegrar aqueles direitos violados, mediante a desobstrução do rego a céu aberto que passa no prédio do réu e que este se abstenha, no futuro, de praticar qualquer acto lesivo desses mesmos direitos.

A acção em causa apresenta-se, assim, como uma acção de condenação, na qual o autor, “arrogando-se a titularidade dum direito que afirma estar sendo violado pelo réu, pretende se declare a existência e a violação do direito e se determine ao réu a realização da prestação (em regra, uma acção mas podendo bem ser uma abstenção ou omissão) destinada a reintegrar o direito violado ou a reparar de outro modo a falta cometida” (cfr. Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., revista e actualizada, 1985, pág. 17).

Assim, só faria sentido a demanda do proprietário (ou proprietários) do prédio denominado Leira da Canle, onde se situa a poça donde provêm as águas em causa, se aquele de alguma forma questionasse os direitos dos autores/recorrentes, o que não se verifica in casu, considerando a relação material controvertia apresentada pelos autores…»(sic).

Acompanhando este último acórdão concluímos que atento o teor da causa de pedir e pedidos formulados pelo autor que as partes são legitimas não existindo litisconsórcio necessário em relação aos terceiros referidos."

*III. [Comentário] Embora a RC nunca o referira, a acção pendente é uma acção inibitória, dado que o autor pretende obter a condenação dos réus a absterem-se de perturbar o gozo de uma servidão predial. No âmbito dos direitos reais, a acção inibitória deve ser proposta contra o "perturbador" ou "estorvador" ("Störer", na expressão do § 1004 BGB). Nesta base, a RC decidiu bem.

MTS