"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/03/2021

Jurisprudência 2020 (173)


Maior acompanhado;
pluralidade de acompanhantes


1. O sumário de RG 17/9/2020 (315/18.1T8MAC.G1) é o seguinte:

I- O novo regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, afastou-se do sistema dualista, até então consagrado, da interdição/inabilitação, demasiado rígido, e veio introduzir um regime monista e flexível norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível” e da “subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns”, e por um “modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade”.

II- Ainda que formalmente o Processo de Acompanhamento de Maiores não seja de considerar um processo de jurisdição voluntária, ao mesmo é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (cfr. artigo 891º n.º1 do CPC).

III- Nos termos do disposto no artigo 143º do CC o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente e, na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário.

IV- O artigo 143º do CC só permite a nomeação de mais do que um acompanhante para o exercício do cargo em simultâneo se forem atribuídas concretas funções e se especifiquem as atribuições de cada um, mas não afasta a possibilidade de nomeação de mais do que um acompanhante se o cargo for exercido apenas por um, num período de tempo concretamente fixado e em regime de rotatividade.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em face do preceituado no referido artigo 143º o cargo de acompanhante poderia ser atribuído a qualquer um dos filhos maiores da beneficiária, a Recorrente ou seu irmão, tal como a própria reconhece pois afirma serem legítimas as duas pretensões, entendendo que deveria ser decidido qual dos irmãos estaria em melhores condições para desempenhar o cargo ou nomeados os dois em simultâneo com atribuição de tarefas concretas e especificas a cada um.

A nomeação de um acompanhante ou de mais do que um em simultâneo, e com especificas tarefas (permitindo-se, por exemplo, o desdobramento no acompanhamento pessoal, por alguém mais íntimo do beneficiário, e no acompanhamento patrimonial, relacionado com a administração do seu património, por alguém que, embora pessoalmente mais distante, possua essas mesmas qualidades) resulta inequivocamente do preceituado no referido artigo 143º e constituirá efectivamente, e na generalidade dos casos, a solução a adotar.

A questão que aqui se coloca, contudo, é se é ainda admissível a nomeação de dois acompanhantes, mas não para exercerem o cargo em simultâneo, ou se tal hipótese contraria o preceituado no artigo 143º do CC.

E julgamos, salvo melhor opinião, que a resposta será afirmativa e que o preceituado no referido artigo 143º comporta também tal possibilidade; o que não será admissível é o exercício em simultâneo do cargo de acompanhante por mais do que uma pessoa, a não ser que lhes sejam atribuídas concretas funções e se especifiquem as atribuições de cada um.

Cremos que não é efectivamente admissível a nomeação de várias pessoas para exercerem em simultâneo o cargo se não forem especificadas as atribuições que competem a cada um; o que bem se compreende, sob pena de na prática surgirem dificuldades no exercício do cargo, designadamente dúvidas sobre a competência para a tomada de decisões ou se estas deveriam ser tomadas conjuntamente ou até, no limite, a tomada de decisões contraditórias.

Conforme se reconhece na decisão recorrida “os acompanhantes não se devem sobrepor entre si no exercício de funções, sob pena de poder tornar-se a vida do maior acompanhado ingovernável, o que vai, obviamente, contra os seus interesses”.

Porém, a solução preconizada pelo Tribunal a quo não é a do exercício simultâneo do cargo de acompanhante pelos dois irmãos, mas o exercício do cargo apenas por um, mas num período de tempo fixado (concretamente de um ano), em regime de rotatividade.
Resulta da fundamentação do Tribunal a quo que “tendo em consideração estas normas legais, uma vez que a beneficiária está incapaz de escolher acompanhante, considerando que nenhum dos seus filhos se dedicará em exclusivo ao acompanhamento (pois têm atividades profissionais que vão além dessas tarefas), que ambos pretendem participar na vida da mãe e já demonstraram, no passado, ter condições habitacionais para esse efeito além das imprescindíveis competências emocionais, encontrando-se porém de relações cortadas, afigura-se como desejável estabelecer um regime de acompanhamento repartido, no qual a ambos acompanhantes incumbirá o dever de assistência permanente (aliás, sendo filhos, esse dever já decorre da lei – cf. artigo 1874.º do Código Civil), mas no que tange ao exercício dos poderes de representação geral e administração total (que entre si também se podem sobrepor), deverão ser compartimentados, privilegiando-se um sistema de rotação anual que não nos parece incompatível com o espírito da lei, ao permitir a repartição de responsabilidades e ao privilegiar o compromisso entre os familiares a quem incumbem essas funções.

Tal regime em nada interfere, no nosso modesto entender, com o dever de prestar contas por ambos os acompanhantes no que concerne aos períodos da respectiva administração”.

Também entendemos não ser a solução encontrada incompatível com o espírito da lei.

De facto, e conforme deixamos já expresso, pretendeu-se afastar o regime anterior, caracterizado por ser demasiado rígido, e introduzir um regime caracterizado pela flexibilidade; tal flexibilidade tem também tradução nas próprias regras processuais ao aplicar-se, com as necessárias adaptações, e como já referimos, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes.

Tais características levam-nos a considerar a possibilidade de nomear dois acompanhantes sem atribuição especifica de funções, desde que não exerçam o cargo em simultâneo, mas em período de tempo determinado e em regime de rotatividade, e desde que tal solução salvaguarde o interesse do beneficiário.

É este - o interesse imperioso do beneficiário- que deve ter-se como critério para a nomeação de acompanhante.

A este propósito o Tribunal a quo esclareceu de forma fundamentada o regime que fixou, não só relativamente à nomeação de acompanhante, mas também à residência da beneficiária, fixada de forma alternada e por períodos de três meses em casa de cada filho e visitas, bem como o decidido nas demais alíneas e que com estas se interligam; entendeu designadamente restabelecer o sistema de residência alternada que outrora vigorou, cabendo a cada filho acolher a beneficiária em sua casa em períodos rotativos de 3 meses.

De facto, resulta dos factos provados que desde dezembro de 2015 e até julho de 2018, altura em que ocorreu um desentendimento entre os irmãos devido às férias do verão desse ano, a beneficiária à noite, pernoitava em casa dos seus filhos, em regime de rotatividade, de três em três meses, sendo a requerente e o curador provisório, no contexto do regime de pernoita alternada, que proviam pela alimentação e higiene da beneficiária, e a conduziam a consultas e exames médicos; tal só deixou de ocorreu porque, na sequência do desentendimento, em 26/07/2018, foi enviada uma carta pelo Ilustre mandatário da requerente ao curador provisório, informando-o que a beneficiária passaria a viver, em exclusivo, na habitação daquela e desde então, a beneficiária nunca mais voltou a pernoitar em casa do curador provisório.

De salientar que o tribunal a quo teve o cuidado de salvaguardar o interesse da beneficiária indagando junto do perito médico se a doença da beneficiária permitia esse regime de residência, perguntando se “em face do estado de saúde atual da beneficiária, encontra algum inconveniente do ponto de vista clínico para que aquela possa viver em regime alternado de três meses com cada um dos seus filhos, ou em outro período que considere adequado, informando ainda se é necessária a adoção de outros cuidados de saúde que se adequem ao estado e evolução da doença padecida” (cfr. ata de 11/11/2019) tendo o perito médico atestado que o estado de saúde da mesma permite o regime de residência alternado sem indicar a necessidade de adoção de quaisquer cuidados (o que não foi então questionado pela Recorrente), nada permitindo também concluir ser mais benéfico para a mesma mantê-la exclusivamente na residência da Recorrente conforme vem ocorrendo desde julho de 2018, apenas por vontade e iniciativa unilateral da Recorrente.

Não vemos, por isso, e ao contrário do que sustenta a Recorrente, que a decisão do Tribunal a quo não salvaguarde o interesse da beneficiária, sendo certo que lhe permite, não obstante o actual estado de saúde e a doença neurológica de que padece e que infelizmente não lhe permite já reconhecer os filhos, continuar a beneficiar do convívio próximo com os dois filhos e respectiva família que possuem condições para o feito. E, analisados os autos, nada decorre dos mesmos que permita concluir não ser essa a vontade que a beneficiária expressaria, se a doença assim lho permitisse.

[MTS]