"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2021

Jurisprudência 2020 (172)


Arbitramento de reparação provisória;
juros de mora


1. O sumário de RG 17/9/2020 (5963/19.0T8VNF-A.G1) é o seguinte:

I- O recebimento das rendas pelo lesado com o cumprimento voluntário ou coercivo da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória é por conta da indemnização definitiva que lhe vier a ser paga posteriormente (art. 388º, n.ºs 1 e 3 do CPC).

II- No caso de o “quantum” da indemnização definitiva ser superior ao valor global das rendas provisórias pagas, estas devem ser imputadas naquele montante, ficando a pessoa condenada na indemnização definitiva obrigada a pagar apenas a diferença entre os dois valores.

III- Considerando os pagamentos das rendas mensais feitos em cumprimento da providência cautelar, os quais foram realizados de forma faseada e são imputados ou subtraídos no quantitativo indemnizatório apurado na ação principal, a liquidação dos juros de mora deverá ser feita em relação a cada pagamento parcial, sendo calculados, para cada período, sobre o capital sucessivamente diminuído.

IV- O prazo prescricional relativamente à obrigação de juros de mora é de cinco anos (art. 310º, al. d) do CC), apenas estando prescritos os juros que, à data da instauração da execução, se tiverem vencido há mais de cinco anos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Particularizando [...] o caso concreto mostra-se provado que, por acórdão do STJ de 13/10/2013, a executada/embargante foi condenada a pagar à exequente/embargada “o montante indemnizatório de 750.000,00 euros acrescido de juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento, montante a que serão descontadas as quantias já arbitradas provisoriamente no âmbito da providência cautelar apensa”.

A título de indemnizações pagas no âmbito da providência cautelar, a executada/embargante pagou à exequente, entre os dias 07-04-2008 e 04-10-2013, o montante total de € 140.000,00, bem como ainda, no dia 17/03/2012, o valor de € 10.000,00, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos na viatura sinistrada. Com efeito, relativamente a este último ponto, no processo judicial n.º 386/11.1TBVVD, que correu termos no extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Verde, instaurado pela proprietária do veículo sinistrado (Y, Lda.) contra a W Seguros, S.A. (entretanto incorporada na X – Companhia de Seguros, S.A.), foi celebrada transação, homologada por sentença transitada em julgado, nos termos da qual foi acordado o valor de € 10.000,00, relativo aos prejuízos sofridos no veículo sinistrado, valor esse que teria de ser deduzido na indemnização que viesse a ser fixada no âmbito do processo judicial n.º 981/07.3TBVVD, instaurado pela embargada contra a X, caso se esgotasse o limite do capital seguro, como foi o caso.

Ou seja, com vista ao cumprimento da decisão judicial condenatória proferida no processo n.º 981/07.3TBVVD, a X pagou à embargada o montante global de € 750.180,82, sendo que, por reporte ao valor da condenação (€ 750.000,00), deduziu o montante de € 150.000,00 (que se refere ao montante de € 140.000,00, pago a titulo de rendas, no âmbito da providência cautelar, acrescido da indemnização de € 10.000,00 pela viatura danificada, conforme o acordado pelas partes), o que perfaz € 600.000,00, sobre o qual calculou os respetivos juros, desde a citação (10/09/2007) até à data do pagamento (10/12/2013).

Sendo inquestionável – tal como decidido na decisão recorrida – que à quantia condenatória arbitrada no acórdão condenatório do STJ (indemnização de 750.000,00 €, acrescida “de juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento”) se impõe a dedução dos montantes pagos pela recorrida no âmbito da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória (no montante total de € 140.000,00), bem como a quantia de € 10.000,00 paga a título de indemnização pelos prejuízos sofridos na viatura sinistrada, já não podemos concordar com o ali decidido – bem como com a posição propugnada pela embargante/recorrida – quando isenta ou exime do pagamento de juros de mora os montantes parcelares entretanto pagos, o que determina que os juros apenas incidam sobre a quantia de € 600.000,00 (e não, como decidido no acórdão dado à execução, sobre € 750.000,00).

Com vista a elucidar a nossa discordância quanto ao decidido pelo tribunal “a quo” afigura-se-nos relevante ter presente as questões atinentes à imputação da indemnização recebida em sede da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória.

Este procedimento cautelar especificado está previsto e regulado nos arts. 388º a 390º do CPC, estabelecendo aquele preceito que:

«1 - Como dependência da ação de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, podem os lesados, bem como os titulares do direito a que se refere o n.º 3 do artigo 495.º do Código Civil, requerer o arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano.
 
2 - O juiz defere a providência requerida desde que se verifique uma situação de necessidade em consequência dos danos sofridos e esteja indiciada a existência de obrigação de indemnizar a cargo do requerido.
 
3 - A liquidação provisória, a imputar na liquidação definitiva do dano, é fixada equitativamente pelo tribunal.
 
4 - O disposto nos números anteriores é também aplicável aos casos em que a pretensão indemnizatória se funde em dano suscetível de pôr seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado».

O referido procedimento cautelar visa a antecipação de créditos de natureza pecuniária emergentes de responsabilidade civil, em situações de grave carência, enquanto não decidida a ação principal e abrange as situações em que urge reparar provisoriamente o dano decorrente da morte ou de lesão corporal ou em que a pretensão indemnizatória se funde em dano suscetível de colocar seriamente em causa o sustento ou a habitação do lesado.

Trata-se de uma medida antecipatória de reparação provisória do dano sofrido, mormente quando está em causa o direito à indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual, no pressuposto que a lesão corporal determinou para o lesado uma situação de carência de meios económicos, que deve ser colmatada imediatamente pelo requerido em prol dos princípios da justiça distributiva (...).

O recebimento das rendas pelo lesado com o cumprimento voluntário ou coercivo da providência cautelar é por conta da indemnização definitiva que lhe vier a ser paga posteriormente (art. 388º, n.ºs 1 e 3 do CPC).

Sendo o arbitramento de reparação provisória uma providência antecipatória da decisão que visa acautelar as indemnizações pagas, sob a forma de renda, têm um cariz precário, sendo meros adiantamentos por conta da indemnização que se vier a apurar ser devida na ação declarativa da qual a providência é instrumental.

Assim, na hipótese do “quantum” da indemnização definitiva ser superior ao valor global das rendas provisórias entretanto pagas, estas devem ser imputadas naquele montante (art. 388º, n.º 3 do CPC), ficando a pessoa condenada na indemnização definitiva obrigada a pagar apenas a diferença entre os dois valores (Cfr. João Cura Mariano, A Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória, 2ª ed., Almedina, pp. 119 e 120).

Por força deste regime não há, no caso dos autos, que fazer apelo ao regime de imputação do cumprimento previsto no art. 785º do CC, que dispõe:

«1. Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.
 
2. A imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes».

Na verdade, o regime estabelecido no referido normativo não se mostra directamente estruturado ou pensado para o pagamento das rendas efetivado em sede de procedimento cautelar de arbitramento de reparação por conta da indemnização definitiva a fixar posteriormente.

Por conseguinte, não oferecendo dúvidas que à quantia fixada no acórdão do STJ se devem deduzir os montantes pagos pela recorrida no âmbito da providência cautelar de arbitramento de reparação provisória, não menos verdade é que, tendo efetivado pagamentos parcelares e mensais, os juros de mora deverão incidir apenas sobre o capital remanescente, já que quanto aos valores que foram pagos – e que eram devidos desde a citação – deixou de haver mora.

Com efeito, considerando os pagamentos das rendas mensais feitos em cumprimento da providência cautelar, os quais foram realizados de forma faseada e são imputados ou subtraídos no quantitativo indemnizatório apurado na ação principal, a liquidação dos juros de mora deverá ser feita em relação a cada pagamento parcial, levando em conta os sucessivos pagamentos parcelares, por forma a não prejudicar o executado como sucederia caso essa liquidação, mormente no que concerne aos juros, apenas fosse relegada para o pagamento que perfizesse a integralidade da quantia indemnizatória, mas de igual modo por forma a não prejudicar o exequente, como sucederia caso – como decidido na decisão recorrida –, no apuramento dos juros, apenas se tomasse em consideração o remanescente do montante indemnizatório já após a integral imputação das rendas mensais pagas, sem atender ao momento em que estas foram parcelarmente pagas. O que significa que, para cada período, os juros de mora deverão ser calculados sobre o capital sucessivamente diminuído.

Diverso seria se, por reporte à data da citação, a recorrida tivesse já procedido ao pagamento à recorrente da quantia de 150,000,00€, posto que nessa situação os juros de mora incidiriam apenas sobre o capital (então) em dívida, no valor de 600.000,00€.

Relembre-se, o Ac. do STJ que serve de título executivo, condenou a executada a pagar à exequente “o montante indemnizatório de 750.000,00 euros acrescido de juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento, montante a que serão descontadas as quantias já arbitradas provisoriamente no âmbito da providência cautelar apensa”.

Ora, os pagamentos parcelares feitos no âmbito da providência cautelar (bem como o ressarcimento do valor da viatura sinistrada) tiveram o seu início em data posterior à citação da ré na ação declarativa (...), pelo que inexiste qualquer fundamento para dispensar (ou isentar) a executada do pagamento de juros de mora pelo retardamento no cumprimento da obrigação pecuniária a que estava adstrita."

[MTS]