Acção de divisão de coisa comum;
reconvenção; conexão objectiva*
1. O sumário de RP 26/1/2021 (1509/19.8T8GDM.P1) é o seguinte:
I - A acção de divisão de coisa comum é assim uma acção de natureza real e constitutiva, na medida em que implica uma modificação subjectiva e objectiva do direito real que incide sobre a coisa. Comporta processualmente duas fases distintas, uma declarativa a que se reportam os art.ºs 925.º a 928.º do C.P.Civil e outra executiva, nos termos do art.º 929.º do C.P.Civil. A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, e só assim não será se o Juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que os autos deverão seguir os termos do processo comum.
II - Inexistindo qualquer divergência entre as partes relativamente à existência de compropriedade do imóvel em apreço por ter sido por ambos adquirido, nem quanto à natureza indivisível da coisa, e não tendo invocada em sua defesa qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a acção tem de ser totalmente procedente, encerrando-se a fase declarativa da acção.
III – O pedido reconvencional fundamentado em despesas alegadamente efectuadas apenas pela ré na aquisição e manutenção do imóvel cuja divisão se peticiona, e outras decorrentes da vida em comum havida entre as partes, com vista ao reconhecimento desse crédito sobre o autor a ser efectivado/compensado aquando da adjudicação ou venda do imóvel, não é admissível à míngua da não verificação de qualquer requisito substancial de conexão, cfr. n.º2 do art.º 266.º do C.P.Civil.
IV- Estando por força da lei encerrada a fase declarativa da acção de divisão de coisa comum, arrendada estava também a possibilidade de o juiz, à luz do preceituado no n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º do C.P.Civil, adequar a formas de processo (declarativos) para admitir o pedido reconvencional.
V - Mas mesmo que assim se não entenda, certo é que o que se pretende com a reconvenção é acautelar um eventual direito de crédito a ser realizado/concretizado num futuro incerto ou eventual, ou seja, aquando da adjudicação ou venda do imóvel a terceiro – fase executiva da presente acção de divisão de coisa comum, todavia, a admissibilidade do pedido reconvencional não pode depender de condição futura e incerta, exigindo-se que os respectivos requisitos se mostrem reunidos aquando da sua dedução.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
- Da admissibilidade ou não do pedido reconvencional formulado pela ora apelante.
O art.º 1412.º do C.Civil atribui a cada comproprietário o direito de exigir a divisão. Trata-se de um direito potestativo destinado a dissolver a relação de compropriedade, objectivado nos art.ºs 925.º a 929.º do C.P.Civil.
A cessação da situação de compropriedade implica, como é manifesto, o termo do concurso de vários direitos de propriedade pertencentes a pessoas diferentes, tendo por objecto a mesma coisa; tem lugar a constituição de situações de propriedade singular sobre cada uma das parcelas da coisa dividida (se for divisível), cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, pág.335. No caso de indivisibilidade material da coisa, essa cessação da situação de compropriedade será realizada por acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos outros com dinheiro, ou na falta de acordo, pela venda executiva e subsequente repartição do seu produto na proporção das quotas de cada um, cfr. art.º 929.º n.º 2 do C.P.Civil.
A acção de divisão de coisa comum é assim uma acção de natureza real e constitutiva, na medida em que implica uma modificação subjectiva e objectiva do direito real que incide sobre a coisa, pois, caso se verifique a divisibilidade da coisa, o direito de compropriedade será fragmentado, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao objecto e, nos casos de indivisibilidade, o direito de compropriedade transforma-se em direito de propriedade singular, passando a ser seu titular outro ou outros sujeitos.
Ora, preceitua o art.º 925.º do C.P.Civil, a respeito da petição do processo especial de divisão de coisa comum, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.
A acção de divisão de coisa comum, como acção especial, comporta processualmente duas fases distintas, uma declarativa a que se reportam os art.ºs 925.º a 928.º do C.P.Civil e outra executiva, nos termos do art.º 929.º do C.P.Civil.
A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, como determina o n.º2 do art.º 926.º C.P.Civil, e só assim não será se o Juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que os autos deverão seguir os termos do processo comum, cfr. art.º 926.º nº 3 do C.P.Civil.
Como já se referiu acima, trata-se de uma acção real, sujeita a registo, e cuja causa de pedir é a situação de compropriedade e cujo pedido é a cessação dessa compropriedade, pela divisão material se a coisa for divisível, não o sendo pela adjudicação a uma das partes ou pela venda a terceiro, preenchendo-se assim em dinheiro as quotas de cada um dos comproprietários.
*No caso dos autos, inexiste qualquer divergência entre as partes relativamente à existência de compropriedade do imóvel em apreço (fracção autónoma para habitação e fracção autónoma para aparcamento) por ter sido por ambos adquirido, nem quanto à natureza indivisível da coisa.
Destarte e dúvidas não podem restar de que a acção tem de ser totalmente procedente, já que ambas as partes estão de acordo quanto à verificação dos fundamentos que impõem a procedência do direito potestativo do autor de querer por termo a essa situação de compropriedade, cfr. art.º 1412.º do C.Civil. Logo, bem andou a 1.ª instância ao seguir o preceituado no n.º2 do art.º 926.º do C.P.Civil, e porque, na realidade não havia qualquer dissenso entre as partes quanto ao objecto do processo, julgar sumariamente o pedido como o fez.
Mas como se viu também, a contestação da ré, que como se disse confessa os fundamentos de facto e de direito do direito arrogado pelo autor, vem mostrar que entre autor e ré existem divergências reais, decorrentes do que cada um, alegadamente, despendeu na aquisição e manutenção da coisa. Ou seja, diz a ré/apelante que “as despesas realizadas pela ré, quer no pagamento de empréstimo bancário relativo ao prédio, quer nos inerentes seguros” e outras, “numa situação em que o pagamento caberia a ambos, autor e ré, gera na esfera jurídica da ré, um direito a ser ressarcida em ½ das despesas”. Daí pretender ser compensada com o crédito do autor em tornas. [...]
Em suma, cumpre agora apurar se na presente acção de divisão de coisa comum, a reconvenção, com estes fundamentos, não é admissível, ou inversamente, como pretende a ré/apelante, a admissão e apreciação do pedido reconvencional é essencial para, em sede de conferência de interessados, “ser fixado o valor das tornas que o comproprietário que adjudique o prédio terá de pagar ao outro”.
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Ora, preceitua o art.º 266.º do C.P.Civil, sob a epígrafe “Admissibilidade da reconvenção”, que:
“1. O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.2. A reconvenção é admissível nos seguintes casos:a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.3. Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos ou o juiz a autorizar, nos termos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações. (…).”
A reconvenção permite que, a bem da economia processual e do alcançar da justiça material, se alargue o objecto do processo, nele se dirimindo um conflito entre o autor e o réu, em que o réu se apresenta como demandante e o autor como demandado. Para tal, é necessário que, além da adequabilidade da apreciação dos dois litígios do ponto de vista formal, cfr. n.º 3 do art.º 266.º do C.P.Civil, exista conexão relevante entre ambos.
Em suma, pode o réu, além da estrita defesa que oponha ao autor tanto através de excepções genéricas (do conhecimento oficioso do tribunal desde que os respectivos factos constem do processo), como de excepções específicas (que tão-somente podem ser tomadas em conta quando alegadas), formular pedidos contra o autor (reconvenção).
Com a reconvenção modifica-se o objecto da acção. Pois que esta, em vez de ficar circunscrita ao pedido formulado pelo autor, passa a ter também por objecto um pedido formulado pelo réu.
A reconvenção deve ser configurada como um cruzamento de acções, como uma espécie de contra-acção (Widerklage), cfr. Prof. Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. I, pág. 170, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constitui uma contra-acção que se cruza com a proposta pelo autor (que, no seu âmbito, é réu, enquanto o réu nela toma a posição de autor – respectivamente, reconvindo e reconvinte).
Como acima já se deixou consignado a ré na sua contestação não impugnou os factos alegados pelo autor, antes os confessou, nem se opôs ao pedido pelo mesmo formulado e, consequentemente não invocou em sua defesa qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Ora, no que concerne aos requisitos substantivos ou materiais de admissibilidade da reconvenção, dúvidas não temos de que os mesmos “in casu” se não verificam.
Na verdade é manifesto que o pedido reconvencional formulado pela ré não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa. Desde logo porque como se disse, a ré não invoca em sua defesa qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, para poder fundamentar o seu pedido reconvencional. Por outro lado, o facto jurídico que serve de fundamento ao pedido formulado pelo autor é tão só a situação real de compropriedade, logo, resta-nos concluir que o pedido reconvencional formulado pela ré não emerge desse facto jurídico, cfr. al. a) do n.º2 do art.º 266.º do C.P.Civil.
O pedido do autor não é de entrega da coisa e nem a ré peticiona o reconhecimento de direito a benfeitorias ou a despesas feitas com a coisa, logo, também temos de concluir que o pedido reconvencional em causa se integra na previsão da al. b) do n.º2 do citado preceito legal.
Nem a ré pretende, por via do pedido reconvencional, obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor pretende, cfr. al. d) do n.º1 do mesmo preceito.
Por fim, sendo manifesto que a ré/apelante, como alega, pretende o reconhecimento de um crédito para obter um eventual compensação futura e incerta, todavia tal não se integra na al. c) do n.º 2 do art.º 266.º do C.P.Civil, desde logo porque, como se disse a acção de divisão de coisa comum é uma acção de escopo real e, como se viu, o autor não formula qualquer pedido de pagamento ou reconhecimento de qualquer crédito sobre a ré, logo.
E assim sendo temos de concluir que o pedido formulado pela ré não tem qualquer conexão substantiva com o objecto da presente acção, sendo antes um pedido (acção) absolutamente autónoma a esta e como tal inadmissível.
Mais, como se viu, em face da posição que a ré tomou em sede da sua contestação quanto ao objecto da acção, ou seja, não contestou a situação de compropriedade, e igual proporção, das partes relativamente ao imóvel em apreço, nem a situação da sua indivisibilidade material, por força da lei, cfr. n.º2 do art.º 926.º do C.P.Civil, a acção de divisão de coisa comum tinha de encerrar aí a sua fase declarativa, e assim, deixando de existir essa mesma fase, ela, por impossibilidade jurídica, nunca se poderia transmutar, em acção de processo comum e eventualmente admitir a dedução de pedido reconvencional.
E tendo, por força da lei, sido encerrada a fase declarativa da acção de divisão de coisa comum, arrendada estava também a possibilidade de o juiz, à luz do preceituado no n.ºs 2 e 3 do art.º 37.º do C.P.Civil, adequar a formas de processo (declarativos) para admitir o pedido reconvencional.
Todavia e, como resulta bem demonstrado, quer pelo que deixámos consignado, pelo teor da decisão recorrida, quer pelo teor das alegações e contra-alegações deste recurso e atentas as citações jurisprudenciais aí feitas sobre a questão em apreço, temos de concluir que a decisão da questão em apreço nestes autos não tem sido pacífica na nossa jurisprudência.
No sentido da admissibilidade de pedido reconvencional na acção de divisão de coisa comum veja-se, por exemplo, os Acs. R.L. de 15.03.2018; R.E. 17.01.2019; de R.G. de 20.09.2018. E no sentido também por nós ora defendido, embora como fundamentação por vezes diversa, veja-se, entre outros, os Acs. da R.C. de 12.03.2013; da R.E. de 22.03.2018; da R.L. de 4.03.2010, de 30.06.2009, de 11.01.2018 e de 25.06.20, todos in www.dgsi.pt.
No fundo o que a ré/apelante pretende é acautelar um eventual direito de crédito a que se arroga sobre o autor e a ser realizado/concretizado num futuro incerto ou eventual, ou seja, aquando da adjudicação ou venda do imóvel a terceiro – fase executiva da presente acção de divisão de coisa comum, mas como se refere, e bem, no Ac. da Rel. de Lisboa de 25.06.2020, in www.dgsi.pt, “A admissibilidade do pedido reconvencional não pode depender de condição futura e incerta, exigindo-se que os respectivos requisitos se mostrem reunidos aquando da sua dedução, sendo que o funcionamento da compensação, nos termos previstos pelo art.º 847.º do CC, segundo o Prof. Menezes Cordeiro, in Obrigações, 1980, 2.º, 221, depende da verificação dos seguintes requisitos: a existência de dois créditos recíprocos; a exigibilidade do crédito do autor da compensação; que as obrigações sejam fungíveis e da mesma espécie e qualidade; a não exclusão da compensação pela lei; a declaração da vontade de compensar – o que não ocorre”.
Por fim sempre se dirá que é manifesto que o actual C.P.Civil reforçou os poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz e que “in casu” a eventual admissão do pedido reconvencional formulado pela ré poderia dirimir um global conflito existente entre as partes decorrente da sua passada vida em comum, mas a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, logo não se pode pretender que no uso dos supras referidos poderes do juiz se admita que por via de uma única e global acção se possa vir a dirimir todos os eventuais litígios existentes entre as partes, sejam quais forem os fundamentos de facto e de direito a que cada um se arroga.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos, julgam-se as conclusões da ré/apelante improcedentes, confirmando-se a decisão recorrida."
3. [Comentário] No acórdão afirma-se que "é manifesto que o pedido reconvencional formulado pela ré não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa".
É muito discutível que se possa ser tão afirmativo quanto à circunstância de o pedido reconvencional deduzido pela ré (relativo ao pagamento de certas despesas tidas com a coisa a dividir) não decorrer do fundamento da acção (art. 266.º, n.º 2, al. a), CPC). Efectivamente, a ré pretende ser ressarcida de determinadas despesas relacionadas com o prédio comum; tem sentido que as faça valer não só enquanto se mantiver a comunhão, mas também no momento em que essa comunhão finda.
A referência à "compensação" realizada pela ré é, naturalmente, equivocada. Talvez também tivesse sido melhor solução que nem a ré, nem a RP tivessem misturado a temática da compensação com a do real objecto da reconvenção.
MTS