"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/07/2021

Jurisprudência 2021 (21)


Sociedade;
representação; mandato; irregularidade*


1. O sumário de RP 25/1/2021 (27337/18.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Sendo a gerência plural e conjunta, para os actos de representação da sociedade, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.

II - Tal exigência é também necessária para a representação da sociedade demandada em juízo, existindo irregularidade de representação em caso de apresentação da contestação através de procuração emitida por um único gerente (cfr. artigo 25.º, nº 1 do CPCivil).

III - O direito de recorrer é apenas atribuído, em princípio, a quem for parte e lhe advier um prejuízo directo e efectivo da decisão, ou seja, se dela resultar um prejuízo actual e positivo, no sentido de impor responsabilidades ou implicar a imediata afectação de direitos ou interesses juridicamente tutelados.

IV - A Ré que foi absolvida da instância não pode recorrer do segmento dessa decisão que condenou em custas as Autoras.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que a Autora C…, Lda estava irregularmente representada em juízo, uma vez que sendo a gerência plural, também a representação da sociedade é feita de forma conjunta e plural pelos gerentes da sociedade, daí que estando a procuração forense oferecida nos autos emitida em nome daquela sociedade, foi outorgada apenas por um dos gerentes da mesma, razão pela qual a referida autora não está devidamente representada em juízo.

Deste entendimento dissentem as Autoras recorrentes para quem, apesar do Pacto Social da Autora C…, Lda., prever que esta se obriga com a assinatura conjunta dos dois Gerentes M… e N…, a procuração forense junta aos presentes autos, que se encontra assinada apenas pelo Gerente M…, não obsta a que a Sociedade C…, Lda., seja considerada regulamente representada em juízo, isto porque, tal contrato societário é omisso relativamente à representação em juízo.

Quid iuris?

Como se extrai da certidão permanente junta aos autos pelas apelantes, a C…, Lda. obriga-se com a intervenção de dois gerentes.

São gerentes da Apelante C…, Lda. o Sr. M… e o Sr. N….

No caso concreto a procuração forense emitida em nome da referida sociedade e junta aos autos com a petição inicial, foi outorgada apenas por um dos gerentes da apelante-o Sr. M….

O sócio gerente que não outorgou a procuração, apesar de devidamente notificado para o efeito, não ratificou o processado, nem renovou os actos praticados.

Por outro lado, não foi alegada ou demonstrada a existência de qualquer impossibilidade de os gerentes assumirem em conjunto as funções de representação, como o impõe o pacto social, assim como não existe qualquer situação de conflito de interesses.

Perante este quadro factual será que podemos dizer que a referida Autora está devidamente representada em juízo?

Como preceitua o artigo 25.º, n.º 1 do CPCivil “As demais pessoas colectivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.”

No âmbito do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.), o artigo 192.º, n.º 1 sob a epígrafe “Competência dos gerentes” estatui no seu nº 1 que:

1- A administração e a representação da sociedade competem aos gerentes.

Em concreto, no que respeita às sociedades por quotas, decorre do artigo 252.º do C.S.C. sob a epígrafe “Composição da gerência” que:

1 - A sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.(…)
 
5 - Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 261º.
 
Por último preceitua o artigo 261.º do C.S.C. sob a epígrafe “Funcionamento da gerência plural” que:

1 – Quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respectivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados.

2 – O disposto no número anterior não impede que os gerentes deleguem nalgum ou nalguns deles competência para determinados negócios ou espécie de negócio, mas, mesmo nesses negócios, os gerentes delegados só vinculam a sociedade se a delegação lhes atribuir expressamente tal poder.

3 - As notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos gerentes, sendo nula toda a disposição em contrário do contrato de sociedade.

Decorre dos normativos transcritos que o legislador, na organização do modo de exercício da gerência, optou pela gerência conjunta, como regra supletiva no que concerne à representação (activa ou passiva) da sociedade.

Deles não resulta, por isso, qualquer limitação à extensão dos poderes de representação dos sócios gerentes, mas apenas uma limitação ao exercício desses poderes de representação.

No caso em apreço, da inscrição do respectivo registo comercial, resulta claro que como forma de obrigar a sociedade/autora em causa é com a “intervenção de dois gerentes”.

Ou seja, sendo a gerência plural e conjunta, é manifesto que, para os actos de representação da sociedade, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.

Em suma, as sociedades por quotas são representadas pelos gerentes, e à gerência, que pode ser singular ou plural, estão confiadas as funções de exteriorizar perante terceiros a vontade da sociedade, representando-a activa ou passivamente. [...]

Como supra se referiu in casu resulta evidente da inscrição do respectivo registo comercial que a forma de obrigar da sociedade C…, Lda./ apelante é através da “intervenção de dois gerentes”.

Ora, as apelantes não invocaram nem provaram qualquer alegada delegação de poderes ou competências para a prática de determinados actos ou negócios, ou seja, o mesmo é dizer que o gerente não outorgante não delegou a conferência do mandato no outorgante.

Como assim, sendo a gerência plural e conjunta, é manifesto que, para os actos de representação da sociedade, é necessária e obrigatória a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos referidos artigos 252.º e 261º/1 do CSC.

Daqui resulta que, sem margem para qualquer tergiversação, a sociedade Autora em questão não está devidamente representada em juízo através de procuração que não se encontra emitida e assinada por ambos os gerentes.

E contra isto não se argumente, como fazem as apelantes, que tal exigência não é aplicável à representação da sociedade em juízo, invocando em abono da sua defesa a alegada omissão do contrato de sociedade no que concerne à representação em juízo.

Importa, desde logo, salientar que as apelantes não juntaram aos autos o contrato de sociedade C…, Lda. que permitia atestar se o mesmo é, ou não, omisso quanto à representação da sociedade em juízo, ou seja, as apelantes limitaram-se a alegar, em sede de recurso que o mesmo é omisso, mas sem fazerem a prova respectiva do facto que alegam.

Mas ainda que o contrato de sociedade seja, de facto, omisso no que concerne à representação da apelante em juízo, tal omissão jamais poderá ter o efeito de sanar a efectiva irregularidade de representação da sociedade C…, Lda. [...]

Pelo que, constando do contrato de sociedade que a gerência da sociedade fica a cargo de duas pessoas, sendo obrigatória a assinatura de ambas para vincular a sociedade, duvidas não restam sobre a previsibilidade de uma gerência plural e conjunta, para cujos actos de representação, designadamente em juízo, é necessária a assinatura de ambos os gerentes, em conformidade com o disposto nos artigos 252.º e 261.º, nº 1 do C.S.C., sob pena de irregularidade e vício de representação.[...]

E ao contrário do que defendem as apelantes cremos, salvo o devido respeito, por diferente opinião, que no caso em apreço se não aplica a solução defendida no Acórdão do STJ de 12/07/2007 e nos restantes Acórdãos também aí citados, em que se decidiu que no caso de o pacto social ser omisso quanto à representação das sociedades em juízo, deverá a sociedade ter-se por validamente representada, na propositura de uma acção para cobrança de dívida, através da procuração subscrita apenas por um sócio gerente, por aplicação da norma supletiva do artigo 985.º do CC, ex vi seu artigo 966.º, por estar em causa a prática de um acto de mera administração, para o qual qualquer gerente tem poderes.

Todavia, a acção proposta pelas apelantes não constitui um acto de mera administração, nem tão pouco é um acto urgente destinado a evitar um dano eminente,

Na verdade, não se trata de uma acção para cobrança de dívida ou sequer de natureza indemnizatória, pedido que é feito pelas apelantes a título meramente subsidiário ou alternativo.

Com a presente acção, as apelantes pretendem que o Tribunal declare que a 1ª Ré– D…, SA-exerceu abusivamente o seu direito ao alienar os imóveis identificados nos artigos 28º a 31º da petição inicial e, paralelamente, ao não ter continuado o giro comercial das falidas e que declare nulos e sem efeito os contratos de compra e venda dos prédios identificados nos artigos 28º a 31º da petição inicial, assim como os contratos de compra e venda subsequentes.

Ora, face aos efeitos que, em teoria, poderiam decorrer da eventual procedência dos pedidos formulados, jamais se poderá qualificar a acção em causa como um ato de mera administração corrente ou normal, para o qual, em teoria e como as apelantes pretendem fazer crer, qualquer gerente, por si, teria poderes.

Antes pelo contrário, trata-se de um acto que, pela sua natureza e extensão, exige a intervenção de todos os interessados/representantes da sociedade, sob pena de irregularidade do mandato, como bem decidiu o tribunal a quo."


*3. [Comentário] O acórdão "balança" entre a irregularidade de representação (art. 27.º CPC) e a irregularidade do mandato (art. 48.º CPC). Correcto é que se trata de uma situação de irregularidade de representação, dado que o mandato judicial não foi concedido pelos dois representantes da parte.

O que deve servir de parâmetro é o seguinte:

-- Se o patrocínio não fosse obrigatório, a autora teria de estar representada em juízo por ambos os representantes;

-- Sendo o patrocínio obrigatório, o mandato tem de ser conferido por ambos os representantes.


MTS