Processo penal;
pedido cível; tribunal competente
1. O sumário de RE 14/1/2021 (1367/19.2T8STR.E1) é o seguinte:
I - Com a entrada em vigor, em 1 de Setembro de 2013, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, em face do estabelecimento da obrigatoriedade da gravação de todas as audiências, prevista no artigo 155.º do CPC, e da alteração à possibilidade anteriormente consagrada de ser requerida pela parte a intervenção do tribunal colectivo, o artigo 599.º do CPC veio estabelecer que a audiência final decorre sempre perante tribunal singular, ditando, em consequência, o final da intervenção do tribunal colectivo no âmbito do processo civil, estatuindo o n.º 2 do artigo 2.º daquela lei, que «[n]os processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular», mas referindo no seu segmento final «com as necessárias adaptações, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 5.º»
II - Também no segmento final do referido artigo 599.º do CPC, o legislador sublinha que o juiz singular é determinado «de acordo com as leis de organização judiciária», impondo-se, pois, interpretar qual a repercussão desta alteração da codificação processual civil, na excepção ao princípio da adesão obrigatória prevista na alínea g), do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, na qual o legislador previu que a pretensão indemnizatória pode ser deduzida em separado, quando o valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular.
III - Tendo presente o que decorre da LOSJ, que determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada, e estabelecendo a competência, em razão do valor, entre os juízos centrais cíveis e os juízos locais cíveis, nas acções declarativas cíveis de processo comum, e analisando o preceituado na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, à luz destes princípios, afigura-se-nos que subjacente a esta excepção no espírito do legislador não se encontrava apenas a perspectiva da composição do tribunal, singular ou colectivo, mas especialmente a competência do tribunal decorrente do valor da causa, já que, em matéria cível, deste já então dependia a atribuição da competência do tribunal, sendo primeiramente as causas de valor superior à alçada do tribunal da Relação sempre da competência do tribunal colectivo e, posteriormente, podendo as partes requerer a sua intervenção.
IV - Não obstante de harmonia com o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da LOSJ, os juízes dos tribunais judiciais formem um corpo único e sejam regidos pelo respetivo estatuto, julgando apenas de acordo com a Constituição e com a lei, é esta que, conforme refere o n.º 2 do mesmo preceito, determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de primeira instância, tendo estabelecido que, tanto em matéria de natureza cível como criminal, os juízes a colocar nos juízos centrais, sejam os tendencialmente mais habilitados, em face da maior antiguidade e classificação de mérito, na comparação com aqueles que se encontram habilitados a julgar as causas da competência dos juízos locais.
V - A esta luz, estamos certos que nas necessárias adaptações a que alude no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 41/2013, não deixaria o legislador de ter presente a referida diferenciação na habilitação entre o juiz singular que julga as causas com valor inferior e aqueloutro que julga as de valor superior a 50.000,00 €. Aliás, se bem virmos, quando estabelece a ressalva do n.º 5 do artigo 5.º da referida lei, e no n.º 6 mantém a competência do juiz de círculo para julgamento das causas de valor superior à alçada da Relação até à entrada em vigor da LOSJ, o legislador assume claramente que da entrada em vigor do diploma não pode nunca resultar a diminuição da garantia que a parte que havia requerido a intervenção do tribunal colectivo pretendia, nem da continuação do julgamento das indicadas causas por juiz de círculo, que já então tinha aquelas habilitações que a LOSJ veio estabelecer como necessárias para o exercício das funções nas ali denominadas instâncias centrais.
VI - Como em face do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 9.º do CC, devemos presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento e consagrou as soluções mais acertadas, não podendo, pois, ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal, especialmente tendo presente que apesar de o legislador ter posteriormente efectuado alterações ao CPP nunca revogou esta alínea, e as decisões publicadas que consideraram aquela norma do CPP “esvaziada de conteúdo”, “um anacronismo” ou mesmo “um puro e simples elemento de contradição sistemática do ordenamento”, implicariam que se concluísse pela sua revogação tácita, consideramos, diversamente que, in casu, sendo óbvio que o legislador afastou o julgamento colectivo em processo civil, as dificuldades de interpretação do actual sentido útil do preceito são facilmente ultrapassadas, bastando que se entenda que a prevista excepção tem como escopo o valor do pedido e não a composição do tribunal, e, conferindo-lhe uma interpretação conforme à actual organização judiciária, adaptando-se as referências da alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP à mesma, e assim concluindo que, em face do disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, a excepção consagrada na mencionada alínea será actualmente aplicável quando o pedido formulado for superior a 50.000,00 €, devendo a menção ali efectuada ao tribunal colectivo entender-se feita ao juízo central cível, e a menção ao tribunal singular, ao juízo local criminal.
VII - Assim, admitindo o valor do pedido formulado pelos Autores a intervenção do juízo central cível, e tendo a acusação sido deduzida para julgamento perante juízo local criminal, fixando-se nessa ocasião o dies a quo para o exercício pelos Autores do seu direito no processo criminal, não o tendo feito então e, por isso, não sendo já possível o exercício do seu direito no processo penal quando foram notificados do despacho de pronúncia, com intervenção do tribunal colectivo, não existe qualquer obstáculo à dedução do seu pedido em separado perante o tribunal civil, funcionando de pleno a referida excepção ao princípio da adesão.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"É certo que a actual codificação processual civil já se encontrava vigente ao tempo da notificação aos ora Autores da dedução da acusação no processo criminal, e que com a entrada em vigor em 1 de Setembro de 2013, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, em face do estabelecimento da obrigatoriedade da gravação de todas as audiências, prevista no artigo 155.º do CPC, e da alteração à possibilidade anteriormente consagrada de ser requerida pela parte a intervenção do tribunal colectivo, veio o artigo 599.º do CPC estabelecer que a audiência final decorre sempre perante tribunal singular, ditando, em consequência, o final da intervenção do tribunal colectivo no âmbito do processo civil.
Não obstante, no segmento final deste preceito, o legislador sublinha que o juiz singular é determinado «de acordo com as leis de organização judiciária», impondo-se, pois, aquilatarmos o sentido desta remissão.
Sabido é que, em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa[...], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, dispondo o artigo 40.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 - Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que esta lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada, e determinando o seu artigo 41.º a competência, em razão do valor, entre os juízos centrais cíveis e os juízos locais cíveis, nas acções declarativas cíveis de processo comum. Decorre ainda do artigo 117.º, n.º 1, alínea a), que «compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00 €», pelo que, atento o valor da presente acção, não fora a circunstância de a causa de pedir ter como fundamento factos que abstractamente constituem ilícito de natureza criminal, dúvidas não se colocariam de que a competência para a instrução e julgamento da causa competia ao juízo central cível. Porém, tendo presente a materialidade invocada pelos autores em fundamento da sua pretensão, diz-nos ainda o artigo 118.º, n.º 1, da LOSJ que «compete aos juízos centrais criminais proferir despachos nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo ou do júri», podendo, de harmonia com o disposto no artigo 81.º, n.ºs 1 e 3, als. a) a d), ser criados juízos de competência especializada local e central, tanto cível como criminal, funcionando, consoante os casos, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri (artigo 85.º). Por seu turno, de acordo com o previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 183.º, que rege sobre a colocação de juízes, os juízes a colocar nos juízos referidos nas alíneas a), c) e f) a j) do n.º 3 do artigo 81.º são nomeados de entre juízes de direito com mais de 10 anos de serviço e classificação não inferior a Bom com distinção, enquanto os juízes a colocar nos juízos referidos nas alíneas b), d) e e) do n.º 3 do artigo 81.º são nomeados de entre juízes de direito com mais de cinco anos de serviço e classificação não inferior a Bom.
Portanto, não obstante de harmonia com o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da LOSJ, os juízes dos tribunais judiciais formem um corpo único e sejam regidos pelo respetivo estatuto, julgando apenas de acordo com a Constituição e com a lei, é esta que, conforme refere o n.º 2 do mesmo preceito, determina os requisitos e as regras de recrutamento dos juízes dos tribunais judiciais de primeira instância, tendo estabelecido que, tanto em matéria de natureza cível como criminal, os juízes a colocar nos juízos centrais, sejam os tendencialmente mais habilitados, em face da maior antiguidade e classificação de mérito, na comparação com aqueles que se encontram habilitados a julgar as causas da competência dos juízos locais.
A esta luz, e pese embora seja certo que o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, estatui que «[n]os processos de natureza civil não previstos no Código de Processo Civil, as referências feitas ao tribunal colectivo, que deva intervir nos termos previstos neste Código, consideram-se feitas ao juiz singular», não é menos verdade que no seu segmento final o preceito também refere «com as necessárias adaptações, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 5.º». Ora, estamos certos que nas necessárias adaptações não deixaria o legislador de ter presente o que vimos de referir quanto à diferenciação na habilitação entre o juiz singular que julga as causas com valor inferior e aqueloutro que julga as de valor superior a 50.000,00 €. Aliás, se bem virmos, quando estabelece a ressalva do n.º 5 do artigo 5.º da referida lei, e no n.º 6 mantém a competência do juiz de círculo para julgamento das causas de valor superior à alçada da Relação até à entrada em vigor da LOSJ, o legislador assume claramente que da entrada em vigor do diploma não pode nunca resultar a diminuição da garantia que a parte que havia requerido a intervenção do tribunal colectivo pretendia, nem da continuação do julgamento das indicadas causas por juiz de círculo, que já então tinha aquelas habilitações que a LOSJ veio estabelecer como necessárias para o exercício das funções nas ali denominadas instâncias centrais.
Sinteticamente exposto o que decorre da LOSJ, e analisando agora o preceituado na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, à luz destes princípios, afigura-se-nos que subjacente a esta excepção no espírito do legislador não se encontrava apenas a perspectiva da composição do tribunal, singular ou colectivo, mas especialmente a competência do tribunal decorrente do valor da causa, já que, em matéria cível, deste já então dependia a atribuição da competência do tribunal, sendo primeiramente as causas de valor superior à alçada do tribunal da Relação sempre da competência do tribunal colectivo e, posteriormente, podendo as partes requerer a sua intervenção.
Em face do que vimos de referir não podemos concordar com a ideia vertida nos citados arestos, e defendida pela Apelada, de que inexistindo agora a intervenção do tribunal colectivo no julgamento civil, a citada alínea g), do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, tenha ficado esvaziada de conteúdo. De facto, em face do disposto nos n.ºs 2 e 3 do citado artigo 9.º do CC, devemos presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento e consagrou as soluções mais acertadas, não podendo, pois, ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tem na letra da lei qualquer correspondência verbal, especialmente tendo presente que apesar de o legislador ter posteriormente efectuado alterações ao CPP nunca revogou esta alínea, e as citadas decisões implicariam se concluísse pela sua revogação tácita.
Ao invés, conforme sublinha BAPTISTA MACHADO, impõe-se ter presente que «[m]esmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis»[J. BAPTISTA MACHADO, [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, ALMEDINA, Coimbra, 1987]., pág. 175, e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, 2012, § 17.º, HERMENÊUTICA E DIREITO, § 18 INTERPRETAÇÃO DA LEI e § 19 RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO, páginas 315 a 371]. In casu, sendo óbvio que o legislador afastou o julgamento colectivo em processo civil, tais dificuldades de interpretação do actual sentido útil do preceito são facilmente ultrapassadas, para o que basta que se entenda que a prevista excepção tem como escopo o valor do pedido e não a composição do tribunal. Assim, conferindo-lhe uma interpretação conforme à actual organização judiciária, adaptando-se as referências da alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP à mesma, e considerando, em face do disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, entendemos que a mencionada alínea não ficou esvaziada de conteúdo e a excepção na mesma consagrada será actualmente aplicável quando o pedido formulado for superior a 50.000,00 €[Já que actualmente a atribuição da competência aos juízos centrais em função do valor não coincide com o valor da alçada, que se mantém em 30.000,00 € (artigo 44.º da LOSJ).], devendo a menção ali efectuada ao tribunal colectivo entender-se feita ao juízo central cível, e a menção ao tribunal singular, ao juízo local criminal [Subscrevendo a decisão da primeira instância, no Acórdão TRG de 29.06.2017, proferido no processo n.º 2299/16.1T8BRG.G1, ainda que começando por aderir ao entendimento já referido nos indicados arestos, acabou por se admitir que «quando muito, poderá entender-se, adaptadamente, tendo em atenção o disposto nos artºs 44.º; 117.º, nº 1, al. a); e 130.º, nº 1, al. a), ambos da Lei 62/2013, já em vigor à data dos factos, que a mencionada alínea será aplicável quando o pedido for superior a 50.000,00 euros, caso em que seria da competência das instâncias centrais o julgamento da respectiva acção declarativa cível. Não é o caso, na medida em que o pedido formulado se contém dentro dos limites da competência, em razão do valor, das chamadas instâncias locais»].
Revertendo este entendimento à concreta situação em presença urge concluir que admitindo o valor do pedido formulado pelos Autores a intervenção do juízo central cível, e tendo a acusação sido deduzida para julgamento perante juízo local criminal, fixando-se nessa ocasião o dies a quo para o exercício pelos Autores do seu direito no processo criminal, não o tendo feito então e, por isso, não sendo já possível o exercício do seu direito no processo penal quando foram notificados do despacho de pronúncia, com intervenção do tribunal colectivo, não existe qualquer obstáculo à dedução do seu pedido em separado perante o tribunal civil, funcionando de pleno a referida excepção ao princípio da adesão.
Nestes termos, a decisão recorrida não pode ser mantida, declarando-se o juízo central cível competente para o julgamento do formulado pedido de indemnização."
[MTS]