"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/07/2021

Jurisprudência 2021 (6)


Transacção; caso julgado;
relação prejudicial*


1. O sumário de RC 12/1/2021 (4133/18.9T8CBR.C1) é o seguinte:

Uma transação homologada por sentença, nos termos da qual foi constituída uma servidão de passagem entre dois prédios, cuja individualidade predial foi invocada como causa de pedir para a reivindicação de uma parcela de terreno que os Autores alegaram ter sido apropriada pela Ré, proprietária do outro prédio, forma caso julgado – n.º 1 do artigo 580.º e 581.º, n.º 1 e 4, do CPC – em relação a uma ação de divisão de coisa comum entre as mesmas partes, alegando agora os mesmos Autores que aqueles mesmos dois prédios são um único prédio em situação de compropriedade.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte;

"Verifica-se, face ao texto da transação, que a mesma pressupõe a existência dos dois prédios distintos, autónomos, que não estão em compropriedade, prédios estes que foram justamente invocados como causa de pedir para a reivindicação da parcela de terreno que os Autores alegaram ter sido apropriada pela Ré, prédios esses identificados na matéria de facto que foi julgada provada.

Esses dois prédios são os mesmos dois prédios que a Ré na presente ação diz existirem e são os mesmos dois prédios que juntos formam, em termos matriciais, o prédio do artigo matricial 4008.

Então, se as partes firmam uma transação na qual declaram que «1. (…) Autores e Ré acordam que os primeiros transitem a pé, com animais, carro de tracção animal e máquinas agrícolas (tractores), pelo limite Norte do prédio rústico pertença desta e que fica situado a Poente do prédio rústico dos Autores que inscrito está na matriz respectiva da freguesia de (…) sob o artigo n.º 4008, para acederem a este último» e que « 2.º Essa passagem será exercitada por uma faixa de terreno com 2,30 metros de largura e em toda a extensão do prédio ora serviente no sentido Poente/Nascente, a qual terá o seu início num ponto situado a 1,50 metros do topo Norte do referido prédio da Ré, (…)» dúvidas não há de que foi constituída uma servidão de passagem entre dois prédios distintos, porquanto não se constituem servidões de passagem sobre o mesmo prédio.

A transação começa por dizer «1.º Sem se discutir o âmbito dos direitos invocados no petitório (…)», o que significou que os direitos invocados na petição se mantiveram e foram objeto de julgamento, ou seja, a questão da reivindicação da faixa de terreno por parte dos autores C (…) e esposa M (…), que alegavam ter sido apropriada pela Ré manteve-se e foi objeto de julgamento de mérito, cuja decisão foi a absolvição quanto a esses pedidos, nestes termos: «No mais, julgar improcedente por não provada a acção e absolver a ré do restante Peticionado».

Afigura-se, por conseguinte, que na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) a causa de pedir consistiu na existência de dois prédios distintos um do outro, que em tempos formaram um só prédio e ainda o constituem em termos matriciais e que a sentença ao homologar a transação que constituiu uma servidão através do prédio da Ré (serviente) para o prédio dos Autores (prédio dominante) reconheceu, sem qualquer possibilidade de dúvida, que efetivamente existiam dois prédios distintos.

A presente ação instaurada pelos mesmos Autores que o foram na ação n.º 1633/09.5TBPBL, alegando agora que esses dois prédios são um mesmo prédio que está em situação de compropriedade, sendo comproprietários os ora Autores e a Ré, contradiz em termos jurídicos e práticos o que foi alegado de modo consensual pelas mesmas partes e decidido na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação).

E se alguma dúvida subsistir sobre se há ou não há caso julgado, resolve-se lançando mão do critério indicado por Alberto dos Reis:

«…quando surgirem dúvidas sobre se determinada ação é idêntica a outra anterior, o tribunal deve socorre-se deste princípio de orientação: as ações considerar-se-ão idênticas se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira» - Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra 1985, pág. 95.

Sem dúvida que decidindo-se como se decidiu na presente ação, ou seja, que os dois prédios não existem jurídica e factualmente, mas que só há um prédio em situação de compropriedade, isso contradiz a decisão tomada na ação n.º 1633/09.5TBPBL (ação de reivindicação) na qual ambas as partes estiveram de acordo quanto à causa de pedir baseada na existência de dois prédios autónomos e constituíram uma servidão e passagem entre os dois prédios que agora se declara, na sentença recorrida, serem um só.

Se a presente decisão pudesse produzir efeitos, isso implicava a extinção dos efeitos produzidos pelo trânsito da outra ação no que respeita à constituição da servidão de passagem aí constituída.

Aliás, a decisão produzida na posterior ação n.º 173/14.5TBSRE (ação de demarcação), julgada improcedente pelo facto do prédio se encontrar em compropriedade, por não existirem dois prédios distintos e confinantes, como é pressuposto da demarcação, contraria também o caso julgado formado na primeira ação, não sendo oponível a essa primeira ação, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 625.º do CPC, onde se determina que «Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar».

Cumpre, pelo exposto, julgar procedente a exceção de caso julgado e absolver a Ré da instância – artigos 278.º, n.º 1, al. e) e 577.º, al. i), ambos do Código de Processo Civil."


*3. [Comentário] Admite-se que a solução do caso não é indiscutível, mas tende-se para uma solução contrária àquela que fez vencimento no acórdão.

É claro que a constituição de uma servidão de passagem (entre um prédio dominante e um prédio serviente) é incompatível com uma situação de compropriedade entre os dois prédios. O problema está em que, no processo civil português, a regra é a de que não há caso julgado sobre relações prejudiciais (art. 91.º, n.º 2, CPC), pelo que a circunstância de entre as partes, através de uma transacção homologada, ter sido constituída uma servidão de passagem não cria nenhum caso julgado quanto à propriedade dos prédios envolvidos.

MTS