"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/07/2021

Jurisprudência 2021 (13)


Autoridade de caso julgado;
omissão de pronúncia


1. O sumário de STJ 14/1/2021 (2104/12.8TBALM.L1.S1) é o seguinte:

I - Do despacho saneador onde se decidiu “não existir a situação de caso julgado” decorre que foi julgada não verificada a exceção dilatória de caso julgado, mas já não resulta que também tenha sido apreciada a questão da autoridade de caso julgado ligada ao mérito da ação.

II - Na vigência do CPC de 1961, o despacho saneador que considerasse não verificada a exceção dilatória de caso julgado era impugnável, nos termos do n.º 3 do art. 691.º, com o recurso que viesse a ser interposto da sentença final (tal como agora se prevê no n.º 3 do art. 644.º do CPC de 2013); já quando apreciasse a questão da autoridade de caso julgado era imediatamente impugnável, por estar relacionado com o mérito da ação.

III - Tendo a ré suscitado no recurso de apelação a nulidade da sentença por não ter sido apreciada a questão da autoridade de caso julgado, a Relação estava obrigada a apreciar esta questão, uma vez que não fora apreciada pela 1.ª instância nem no despacho saneador nem na sentença final.

IV - A falta de apreciação dessa nulidade implica a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, e determina a devolução do processo à Relação, nos termos do art. 684.º, n.os 2 e 3, do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.1. A R. alegou no recurso de apelação (e continua a manter no recurso de revista) que das duas sentenças anteriormente proferidas emerge a autoridade de caso julgado.

Para o efeito considera que o despacho saneador onde se concluiu “não existir a situação de caso julgado”, apenas incidiu sobre a exceção dilatória de caso julgado, pelo que não haveria razão alguma para a Relação omitir pronúncia sobre a alegada autoridade de caso julgado.

Sobre este segmento das alegações do recurso de apelação, a Relação concluiu que:

“Não obstante, importa considerar desde já a questão da invocabilidade do caso julgado enquanto fundamento do presente recurso.

Sustentou a apelante que nos termos do disposto nos arts. 619º a 621º do CPC o Tribunal a quo se encontrava “impossibilitado de apreciar, num patamar de mérito, sobre as pretensões já anteriormente analisadas, não podendo decidir num sentido contrário ao ali propugnado, com prevalência das decisões anteriores mencionadas, por imposição da autoridade de caso julgado”.

Analisando os articulados, verificamos que na contestação a R. e ora recorrente invocou a exceção de litispendência, mas não a de caso julgado.

Não obstante, no despacho saneador foi proferida decisão julgando improcedente a exceção de litispendência e considerando “não existir situação de caso julgado”.

O despacho saneador não foi objeto de qualquer recurso.

Com efeito, como se afere da leitura do requerimento de interposição de recurso e da parte inicial da respetiva motivação, a presente apelação tem por objeto, exclusivamente, a sentença proferida.

Nesta, a questão do caso julgado não foi apreciada, porquanto o poder jurisdicional se havia esgotado com a prolação do despacho saneador – art. 613º, nºs 1 e 3, do CPC.

Por não ter sido objeto de recurso, o despacho saneador transitou em julgado, adquirindo, quanto a esta matéria, o efeito de caso julgado – arts. 628º, 620º, nº 1, 595º, nº 1, al. a) e 577º, al. i), todos do CPC.

Por isso mesmo, a sentença recorrida nem sequer se pronunciou sobre esta questão.

Nesta conformidade, não se toma conhecimento do recurso no que respeita a este fundamento”.

2.2. Começaremos por afirmar que a exceção dilatória de caso julgado e a autoridade de caso julgado constituem faces da mesma moeda, mas apresentam uma diferente configuração.

A exceção de caso julgado constitui uma exceção dilatória típica cuja verificação impede a apreciação do mérito da causa, pressupondo uma relação de identidade nas ações em confronto, nos termos que se extraem do art. 581º do CPC:

a) Identidade de sujeitos em ambas as ações, requisito que se mantém quando, apesar da diversidade física de sujeitos, exista identidade jurídica revelada pela qualidade em que intervieram em cada uma das ações;

b) Identidade de pedidos, ou seja, quando nas ações em confronto se pretenda obter o mesmo efeito jurídico, ainda que exista uma falta de correspondência formal entre os pedidos formulados em cada uma delas;

c) Identidade de causas de pedir, isto é, quando as pretensões formuladas decorram do mesmo facto jurídico, ou seja, quando seja substancialmente invocada a mesma realidade para alcançar o efeito jurídico procurado pela via judicial, ainda que por via de uma qualificação jurídica distinta.

Basta a falta de algum dos três elementos para se negar a verificação da exceção dilatória de caso julgado, ficando legitimado o prosseguimento da instância com vista à apreciação do mérito da ação.

A razão é clara: a divergência que porventura se revele apenas quanto a algum ou alguns dos mencionados elementos (sujeitos, pedido ou causa de pedir) não importa o risco de repetição ou de contradição de decisões, já que ambas podem coexistir sem o risco da contradição intrínseca ou de repetição que a figura do caso julgado e o seu reflexo negativo – a exceção dilatória de caso julgado – visam precisamente prevenir.

Já autoridade de caso julgado apresenta uma configuração diversa.

As diferenças emergem, desde logo, do facto de constituir uma figura que na sua essência é resultado de uma construção doutrinária e jurisprudencial, carecendo de sustentação numa norma com o pendor objetivo que apresenta o art. 581º do CPC de 2013 (ou do art. 497º do anterior CPC de 1961), sendo erigida a partir da análise de normas mais difusas como os arts. 619º e 621º (correspondendo aos arts. 671º e 673º do anterior CPC de 1961).

Além disso, o respeito pela autoridade de caso julgado não tem como efeito impedir a apreciação do mérito na segunda ação, antes visa assegurar que nessa apreciação sejam ponderados os efeitos emergentes de uma anterior decisão transitada em julgado que seja vinculativa para ambos os sujeitos. Em determinadas circunstâncias que vêm sendo enunciadas pela doutrina e pela jurisprudência, tem-se revelado premente ponderar o que, com trânsito em julgado, já foi decidido noutra ação, a fim de evitar uma contradição intrínseca de julgados. [...]

Em linhas muito gerais, vem sendo assumido pela doutrina e pela jurisprudência, neste caso refletida em numerosos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, que, pressuposta a aludida identidade de sujeitos, os efeitos de uma determinada decisão proferida numa ação podem projetar-se positiva ou negativamente noutra ação, embora não exista total coincidência entre os respetivos pedidos e/ou causas de pedir.

2.3. No âmbito do presente recurso de revista, na parte em que foi admitido com base na alegada ofensa de caso julgado, cabe apenas analisar se se verifica ou não a invocada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente à autoridade de caso julgado.

Para o efeito, importa verificar a amplitude objetiva do despacho saneador e analisar se a questão específica da autoridade de caso julgado está abarcada pelo segmento decisório que se traduziu em declarar “não existir a situação de caso julgado” (sic).

2.4. A resposta é negativa, o que permite afirmar a verificação da nulidade do acórdão da Relação.

Da leitura do despacho saneador decorre que toda a sua motivação assentou na não verificação dos elementos atinentes à identidade objetiva (pedido e causa de pedir) necessários ao preenchimento dos pressupostos da exceção dilatória de caso julgado material.

O objeto dessa decisão revela-se, desde logo, pelo modo como a questão foi introduzida, seguida da indicação dos preceitos que enunciavam, no CPC de 1961, os requisitos da figura do caso julgado, ou seja, do art. 498º e do art. 497º, nº 2 (que correspondem atualmente aos arts. 581º e 580º, nº 2, respetivamente):

“Coloca-se, pois, a questão de saber se estamos perante situação do caso julgado ou litispendência, rejeitamos esta última hipótese, uma vez que a A. juntou aos autos certidão em como a sentença proferida na ação da …. Vara Cível já transitou em julgado.

A exceção do caso julgado visa evitar que o tribunal duplique as decisões com idêntico objeto processual, ou seja contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior, ou decida duas vezes de maneira idêntica (art. 497º, nº 2, do CPC).

Sobre os aludidos requisitos legais dispõe o art. 498º do CPC, que:

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

Embora também tenha sido feita alusão à “questão dos limites objetivos do caso julgado”, tal não serviu para afirmar ou negar a autoridade de caso julgado mas apenas para, no confronto com os requisitos do caso julgado, concluir que “entre a presente ação e a ação acima identificada apenas existe coincidência quanto aos sujeitos, mas inexiste identidade de pedido e de causa de pedir”.

Motivação que, deste modo, serviu para afastar a verificação da exceção dilatória de caso julgado na ocasião prevista no art. 494º, al. i) (agora no art. 577º, al. i), do CPC de 2013), o que foi expresso, de uma forma tecnicamente incorreta, nos termos seguintes: “pelo exposto, julgo improcedente a exceção de litispendência deduzida pela ré e considero não existir situação de caso julgado”.

Não se descortina na referida motivação qualquer alusão aos preceitos cuja interpretação conjugada tem permitido à doutrina e à jurisprudência atribuir relevo autónomo à questão da autoridade de caso julgado, fundamentalmente a partir dos arts. 671º e 673º do CPC de 1961 (correspondendo aos atuais arts. 619º e 621º). Tão pouco se descobre alguma argumentação em torno desta figura, tudo se resumindo, em linhas muito simples, a negar a exceção dilatória de caso julgado, uma vez que, apesar da identidade subjetiva, se considerou que existia diversidade de pedidos e de causas de pedir.

Por isso, da leitura do despacho saneador apenas é legítimo concluir que foi apreciada e julgada não verificada a exceção dilatória de caso julgado, mas já não que tenha sido apreciados os eventuais efeitos da autoridade de caso julgado porventura emergentes das anteriores sentenças judiciais.

2.5. Diga-se que, no contexto da presente ação, o despacho saneador era essencialmente ajustado a aferir os pressupostos processuais e, em contraponto, a verificar se existia ou não alguma exceção dilatória. O facto de ainda existir matéria de facto controvertida que justificou o prosseguimento da ação para a fase de instrução e de julgamento reforça a ideia de que não esteve em causa, naquela ocasião, a apreciação dos efeitos da autoridade de caso julgado, apesar de a própria A. a ter procurado afastar através de extensa argumentação que expôs nos arts. 188º e ss. da petição inicial.

Até por isso, a atribuição de uma maior amplitude ao que foi apreciado no despacho saneador, de modo a abarcar, também, o afastamento de qualquer eventual efeito emergente da autoridade de caso julgado, não se compadeceria com a conclusão genérica – ainda assim, tecnicamente incorreta - de que não existia a “situação de caso julgado”.

Nas circunstâncias do caso, só a afirmação explícita de que também estava a ser ponderada na apreciação do mérito da presente ação a autoridade de caso julgado (em resultado de considerações jurídicas mais densas) poderia levar a que se estendesse o âmbito da decisão não apenas à declaração de improcedência da exceção dilatória de caso julgado como ainda ao afastamento de qualquer efeito derivado da autoridade de caso julgado.

Ora, nem a motivação nem a conclusão permitem que se possa concluir que a Mª Juíza de 1ª instância estivesse simultaneamente a afastar a exceção dilatória de caso julgado e a interferência na apreciação do mérito da eventual autoridade de caso julgado, resultando claro que o único objetivo foi o de sanear o processo de eventuais exceções dilatórias, in casu, a exceção dilatória de caso julgado.

Foi, aliás, este sentido mais restrito aquele que foi atribuído pela Relação, já que no segmento decisório do acórdão proferido no recurso de apelação limitou-se a sustentar (erradamente) a posição da definitividade do despacho saneador em normas que respeitam exclusivamente à exceção dilatória de caso julgado, mais concretamente nas normas dos “arts. 628º, 620º, nº 1, 595º, nº 1, al. a) e 577º, al. i), todos do CPC de 2013”.[...]

2.6. No que concerne à oportunidade de interposição do recurso de apelação, a matéria era regulada pelo art. 691º do CPC de 1961, cujo nº 1 prescrevia a admissibilidade de interposição de recurso de apelação do despacho saneador que pusesse termo ao processo (por razões de mérito ou de forma).

Deste modo, reportados à figura do caso julgado, admitiria recurso de apelação (imediato) o despacho saneador que julgasse extinta a instância por verificação da exceção dilatória de caso julgado (art. 691º, nº 1, do CPC de 1961, paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. a)).

Também admitia recurso de apelação o despacho saneador em que fosse apreciado o mérito da causa, designadamente aquele que porventura incidisse sobre o pedido ou sobre alguma exceção perentória, como seria a relacionada com a apreciação positiva ou negativa da autoridade de caso julgado. Assim seria por que estaria em causa então a apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 691º, nº 2, al. h), do CPC (paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. b)).

Deste modo, apenas nestes dois casos se admitiria a interposição imediata de recurso de apelação, no prazo de 30 dias (art. 685º, nº 1, do CPC de 1961). E, noutra perspetiva, era apenas nestes casos que a falta de interposição imediata de recurso de apelação inviabilizaria que a questão fosse suscitada no recurso de apelação interposto da sentença final.

Já relativamente ao despacho saneador que se limitasse a negar a exceção dilatória de caso julgado ou que pura e simplesmente omitisse qualquer referência à autoridade de caso julgado apenas era impugnável com o recurso de apelação interposto da decisão final, nos termos do nº 3 (tal como agora consta do nº 3 do art. 644º do CPC de 2013).[...]

Ora, uma vez que, como se referiu, o despacho saneador apenas incidiu sobre a exceção dilatória de caso julgado e que não foi objeto de apreciação a questão da autoridade de caso julgado, esta questão podia e deveria ter sido apreciada na sentença.

Não o tendo sido, era legítimo à R. suscitar a mesma questão (no caso, através da arguição da nulidade por omissão de pronúncia) no recurso de apelação que interpôs da sentença final que foi favorável à A., a qual deveria ter sido objeto de pronúncia por parte da Relação no acórdão recorrido.

2.7. Em conclusão, nem por via do atual CPC, nem do anterior, se poderia concluir que o despacho saneador transitou em julgado relativamente a qualquer questão em torno do caso julgado ou da autoridade de caso julgado tendo por referência as duas anteriores sentenças:

a) O despacho saneador que declarou “não existir a situação de caso julgado” era omisso quanto à questão da autoridade de caso julgado;

b) A questão da autoridade de caso julgado emergente das anteriores sentenças não estava abarcada pela enunciação genérica da não verificação da “situação de caso julgado”, devendo ser apreciada na sentença de 1ª instância e, depois, no acórdão da Relação;

c) Ao omitir pronúncia sobre a questão da autoridade de caso julgado, o acórdão recorrido está ferido de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 2, al. d), 1ª parte, do CPC de 2013.

2.8. A declaração de nulidade do acórdão recorrido obsta a que o processo avance para a apreciação do mérito do recurso de revista na parte em que é invocada a ofensa da autoridade de caso julgado e, além disso, prejudica a apreciação das demais questões.

Com efeito, atento o disposto no art. 684º, nº 2, do CPC, em conjugação com o art. 615º, nº 1, al. d), 1ª parte, quando seja detetada alguma nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, o processo deve ser devolvido à Relação, o que ora se impõe."


[MTS]