"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/07/2021

Jurisprudência 2021 (14)


Embargos de executado;
decisão de mérito; revista*


1. O sumário de STJ 14/1/2021 (159/16.5T8PRT-A.P1.S1) é o seguinte:

I - O que releva para efeitos de cabimento da revista reportado ao mérito da causa, em sede de embargos de executado, nos termos conjugados dos arts. 671.º, n.º 1, e 854.º, do CPC, é o conhecimento pelo acórdão da Relação do mérito dos embargos, seja ele respeitante a fundamentos de natureza adjetiva, seja ele referente a fundamentos de matriz substantiva.

II - As relações entre coavalistas do mesmo avalizado não revestem natureza cambiária, pelo que o direito de regresso entre eles segue o regime previsto para a pluralidade de fiadores no art. 650.º com remissão para os arts. 516.º e 524.º do CC.

III - O direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado reger-se-á, em primeira linha, pelo que tiver sido convencionado extracartularmente entre eles e, na falta de convenção, pelo regime das obrigações civis solidárias, dada a sua conexão funcional com o regime cartular, conforme a orientação jurisprudencial estabelecida no AUJ do STJ n.º 7/2012, de 05-12-2012.

IV - Uma vez que o direito de regresso entre coavalistas do mesmo avalizado em livrança não reveste natureza cambiária, essa livrança não detém, para tais efeitos, eficácia cartular, não podendo valer como título executivo sob a categoria de título de crédito propriamente dito.

V - Todavia, essa livrança poderá constituir título executivo como mero quirógrafo, desde que alicerçada em consentânea relação causal, nos termos previstos na al. c) do n.º 1 do art. 703.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II – Questão prévia sobre a admissibilidade da revista

Segundo a 1.ª conclusão do Recorrente, a interposição da presente revista estriba-se no disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, por entender que o acórdão recorrido conheceu do mérito da causa, ao considerar que os documentos complementares da escritura de constituição de hipoteca aqui dada à execução são as livranças dadas à execução pelo Banco noutras execuções em que o devedor e ora embargante também foi executado, sendo, como tal, títulos dotados de força executiva própria, nos termos do art.º 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Por seu lado, os Recorridos sustentaram, em primeira linha, a inadmissibilidade da mesma por considerarem que o acórdão recorrido não apreciou o mérito da causa, não pôs termo ao processo nem absolveu nenhuma das partes.

Ora, segundo o preceituado no artigo 854.º do CPC, no que aqui releva, cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de oposição contra a execução.

E o n.º 1 do artigo 671.º do mesmo Código dispões que:

Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre a decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

Neste quadro normativo, o cabimento da revista pautado pelo conhecimento do mérito da causa deve ser aferido em função do que for julgado pelo acórdão da Relação, o que significa que tal cabimento ocorrerá nos casos em que o acórdão da Relação tenha conhecido do mérito da causa, independentemente do teor da decisão da 1.ª instância.

Assim, no âmbito das ações declarativas, o conhecimento do mérito da causa incidirá sobre o objeto das pretensões ajuizadas ou sobre questões respeitantes a exceções perentórias e, portanto, sobre matéria de direito substantivo.

Porém, em sede do procedimento declarativo de embargos de executado, o seu objeto tanto pode incidir sobre questões de natureza adjetiva ou processual, como são os fundamentos previstos nas alíneas a) a f) do artigo 729.º do CPC, como pode recair sobre fundamentos de matriz substantiva, conforme os previstos nas alíneas g) a h) do mesmo normativo.

Para tal efeito, importa distinguir: por um lado, as questões relativas à falta de pressupostos processuais da execução – por exemplo, a inexistência ou inexequibilidade do título ou a falta de qualquer outro pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva –, matéria obviamente de direito processual, mas que constitui objeto da pretensão de embargos; por outro lado, as questões respeitantes à falta de pressupostos processuais/exceções dilatórias do próprio procedimento de embargos e que são, como tal, obstativas do conhecimento sobre o respetivo objeto.

Nesta linha, o cabimento da revista de acórdão da Relação que conheça do mérito da causa, a que se refere o artigo 671.º, n.º 1, do CPC, quando se trate de acórdão que conheça do objeto dos embargos de executado, deve ser aferido em função da sua incidência sobre este objeto, independentemente de respeitar a matéria de direito adjetivo ou substantivo.

Assim sendo, o que releva para efeitos do cabimento da revista reportado ao mérito da causa, em sede de embargos de executado, é o conhecimento, no acórdão da Relação, do mérito dos embargos, seja ele respeitante a fundamentos de natureza adjetiva – nomeadamente, a falta de pressupostos processuais da instância executiva –, seja ele referente a fundamentos de matriz substantiva, como são os relativos à existência, validade ou subsistência da obrigação exequenda.

No caso vertente, o acórdão recorrido ocupou-se, além do mais, da questão da inexequibilidade do título dado à execução, suscitada como um dos fundamentos dos embargos, previsto na alínea a) do artigo 729.º do CPC, considerando que os documentos complementares da escritura de constituição da hipoteca dada à execução eram as livranças dadas à execução pelo Banco noutras execuções em que o devedor e ora embargante também fora executado, sendo, como tal, títulos dotados de força executiva própria, nos termos do art.º 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Nessa base, a Relação divergiu da decisão da 1.ª instância, que considerara verificada a inexequibilidade do título, concluindo que o assim decidido não podia subsistir e, por isso mesmo, julgando parcialmente procedente a apelação.

E foi nessa decorrência que, tendo em conta as demais questões tidas por prejudicadas pela 1.ª instância, como as respeitantes à existência e à liquidação da obrigação exequenda, em consonância, de resto, com os temas da prova enunciados, se decidiu “anular” a decisão recorrida a fim de serem fixados os factos provados e não provados, alegados pelas partes, relativos a tais questões.

Muito embora se afigure tecnicamente pouco rigorosa a fórmula empregue de “anular a decisão recorrida” para ordenar o prosseguimento dos embargos para efeitos do conhecimento das questões tidas por prejudicadas, mas, de todo o modo, não tendo o acórdão recorrido posto termo ao processo, o certo é que ali foi tomado conhecimento de questão incidente sobre o objeto dos embargos como é a respeitante ao invocado fundamento da inexequibilidade do título, perfeitamente distinto dos demais fundamentos também alegados, relativos à existência e liquidação da obrigação exequenda.

Assim, à luz do critério acima exposto, estamos perante acórdão da Relação que conheceu, em parte, do mérito dos embargos, o que torna a revista admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1, ex vi do art.º 854.º do CPC."


*3. [Comentário] O STJ decidiu indiscutivelmente bem. Qualquer decisão que se pronuncie sobre a procedência ou improcedência de qualquer fundamento invocado pelo executado nos respectivos embargos (cf. art. 729.º a 731.º CPC) é uma decisão de mérito. É irrelevante que esse fundamento tenha natureza processual.

MTS