1. Suponha-se a seguinte situação: numa acção pendente, uma das partes apresenta um articulado superveniente; o tribunal rejeita a apresentação do articulado e a parte interpõe recurso desta rejeição; a apelação interposta sobe imediatamente (art. 644.º, n.º 2, al. d), e 3, e 645.º, n.º 2, CPC), mas sem qualquer efeito suspensivo sobre a marcha do processo. Perante isto, coloca-se a seguinte pergunta: o que acontece se, antes de se encontrar decidido o recurso sobre a admissibilidade do articulado superveniente, vier a ser proferida uma sentença final que seja desfavorável à parte que apresentou o articulado superveniente?
Uma resposta possível a esta questão seria a seguinte: se a parte não interpuser recurso da sentença que lhe é desfavorável, isso significa que se conforma com a decisão do tribunal e que, por isso, renúncia, pelo menos implicitamente, ao recurso interposto da decisão que rejeitou o seu articulado superveniente (cf. art. 632.º, n.º 2 e 3, CPC).
Esta solução não resiste, porém, a uma verificação muito simples. Pode imaginar-se que a principal razão da discordância da parte em relação à sentença final assente precisamente na não consideração pelo tribunal do facto superveniente que essa mesma parte pretendia alegar no articulado que apresentou e que esse órgão rejeitou. Admita-se, por exemplo, que, no articulado superveniente, a parte alega um facto extintivo da obrigação que constitui o objecto do processo; perante esta situação, o normal é que a parte discorde da sentença final precisamente pela circunstância de o facto extintivo por ela alegado não ter sido considerado pelo tribunal.
Nesta hipótese, não tem sentido impor à parte o ónus de interpor um recurso da sentença final para conseguir o mesmo (a consideração de um facto superveniente) que pretende obter no recurso interposto da decisão que rejeitou o seu articulado superveniente. A circunstância de um recurso ainda não se encontrar decidido não pode constituir fundamento para a interposição de um outro recurso pela mesma parte. Aliás, o que a parte deseja não é impugnar a sentença final (que até pode ser correcta em função dos factos que, perante a rejeição do articulado superveniente, podia considerar), mas que o recurso da decisão interlocutória venha a ser decidido a seu favor, dado que esta decisão de procedência é suficiente para que possa demonstrar que aquela sentença deve considerar os factos superveniente que não considerou.
O art. 644.º, n.º 4, CPC estabelece que, se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão. O preceito refere-se apenas aos recursos que a parte pretende que sejam interpostos depois do trânsito em julgado da sentença final. A situação em que, no momento desse trânsito, ainda se encontram pendentes recursos interpostos de decisões interlocutórias não é subsumível àquele preceito e não encontra mesmo qualquer regulamentação na lei.
A questão é, pois, a seguinte: como integrar esta lacuna? Não existindo na lei nenhuma regulamentação de um caso análogo, a lacuna tem de ser integrada através da regra criada pelo intérprete dentro do espírito do sistema (art. 10.º, n.º 3, CC).
Na hipótese em análise, o espírito do sistema não pode ser outro que não o de que uma sentença final não pode transitar em julgado enquanto se encontrar pendente a apreciação de um recurso que incide sobre uma questão prejudicial dessa mesma sentença. Na verdade, a correcção da sentença depende do sentido da decisão proferida no recurso:
-- Se o recurso for rejeitado e a decisão recorrida for confirmada, a sentença ("dependente") é correcta, dado que não tinha de considerar nada mais do que considerou ou podia ter considerado tudo o que considerou;
-- Se o recurso for aceite e a decisão recorrida for revogada, a sentença é incorrecta (e até eventualmente nula por omissão de pronúncia), porque devia ter considerado algo que não considerou ou não podia ter considerado algo que considerou.
2. Do exposto resulta o sentido da resposta à pergunta que se acima de colocou. A resposta deve ser desdobrada nas seguintes conclusões:
-- Enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a correcção da sentença final, esta sentença não pode transitar em julgado;
-- Depois do proferimento da decisão de recurso sobre a decisão interlocutória, pode verificar-se uma de duas situações:
(i) O recurso interposto da decisão interlocutória é decidido contra o recorrente; nesta hipótese, a sentença final transita em julgado no momento do trânsito em julgado da decisão de recurso;
(ii) O recurso interposto é decidido a favor do recorrente; nesta situação, há que aplicar, por analogia, o disposto no art. 195.º, n.º 2, CPC: a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final.
MTS