"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/05/2023

Jurisprudência 2022 (194)


Crédito de tornas;
compensação judicial; requisitos


1. O sumário de RC 11/10/2022 (51/14.8T8MBR-F.C1) é o seguinte:

A mera eventualidade de o devedor/executado vir a ser titular de um crédito sobre o seu credor/exequente não constitui fundamento de oposição à execução.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"B) – A sentença homologatória da partilha, transitada em julgado, associada ao mapa que homologou, consubstanciam o título executivo que possibilita, ao credor de tornas, pedir que, no próprio processo de inventário se proceda à venda dos bens do devedor das mesmas, até onde seja necessário para obter o respectivo pagamento (artº 1378.º n.º 3 do antigo CPC; cfr. artº 1122 do NCPC, aditado por Lei nº 117/2019 de 13-09-2019).

A Mma. Juíz do Tribunal “a quo”, para alicerçar o decidido indeferimento liminar, escreveu, designadamente:

«[…] DD funda a sua oposição no facto de a venda determinada nos autos principais de inventário se tratar de uma execução especial – assente numa decisão judicial de  homologação de partilha de bens proferida nos autos de inventário e consequente requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 1378.º, n.º 3  do antigo Código de Processo  Civil – e que aquele se encontra em tempo em virtude dos factos relevantes para a oposição terem ficado assentes com a  decisão proferida no processo n.º 103/18.5T8MBR, que transitou em julgado a   13/10/2021.

Compulsada tal decisão, conforme certidão junta a estes autos e aos autos principais, decorre inequivocamente que os prédios em causa foram adquiridos pelo interessado FF por usucapião, tendo sido excluídos da partilha adicional por não fazerem parte do acervo hereditário dos inventariados AA e mulher BB. Não vislumbra o Tribunal, por conseguinte, e revisitado o artigo 729.º do Código de Processo Civil, qual dos fundamentos aí previstos é que o aqui executado lança mão para fundar a sua oposição – sendo certo, inclusive, que nem a indica.

Acresce que, e como decidido por despacho proferido a 12/11/2021, no âmbito do processo de inventário a que os presentes autos são apensos – não existe qualquer direito de compensação ou qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação.

Com efeito, não existe qualquer contracrédito do executado, como aquele pretende fazer crer, uma vez que, volte-se a frisar, os bens em causa não estão sujeitos à colação uma vez que foram excluídos da partilha adicional por serem pertença exclusiva de FF, que os adquiriu por usucapião. […]».

Ora, na realidade, conforme acima consta, no despacho proferido a 12/11/2021 foi negada a existência de compensação, mas arrimada na circunstância de não haver lugar à  colação por ter sido reconhecido, na acção nº 103/18.5T8MBR, ao interessado FF e aí Autor, o direito de propriedade sobre os prédios em causa, fundado na usucapião, pelo que, não sendo o fundamento dessa propriedade, as doações de tais prédios que lhe foram feitas pelos inventariados, os mesmos, tal como foi decidido nessa acção, deviam ser excluídos do mencionado inventário e não podiam ser objecto de partilha adicional, por não fazerem parte do acervo hereditário dos Inventariados.

Foi nesta linha, também, o entendimento da Mma. Juiz, na decisão ora recorrida.

Ora, a sentença proferida na acção nº 103/18.5T8MBR, ou melhor, o respectivo caso julgado, se bem interpretamos aquela, apenas obsta à partilha dos prédios a que respeita, “rectius”, em incidente de partilha adicional, não obstando a que os mesmos sejam considerados para efeitos de colação, ou, seja, em temos práticos, que o respectivo valor seja considerado para que se componham os quinhões de todos os interessados do inventário em termos de não se tolher o respectivo direito a uma partilha equilibrada, e, portanto, justa.

Mas, dir-se-á, como o direito de propriedade de tais prédios foi reconhecido com base na usucapião, a doação dos mesmos já não pode legitimar a não sujeição à colação.

Salvo o devido respeito, não concordamos com esse   entendimento.

Escreve, com acerto, Ana Isabel Cardoso Rosado “in” “Dissertação de Mestrado em Direito e Prática Jurídica, Especialidade de Direito Civil”, págs 80 e 84) [https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/40780/1/ulfd140520_tese.pdf.]

«[…] nada na lei leva a que seja excluído do cálculo da legítima o valor   dos bens doados em relação aos quais, em virtude do decurso do tempo, se reconhece um direito de propriedade do donatário, por via da usucapião.   (…)

O donatário, ao receber os bens por via de doação feita pelo de  cujus  adquire a propriedade dos mesmos, assim como a respectiva posse em nome próprio. Porém, como já foi dito, as doações, quer sejam mortis causa quer sejam inter vivos, podem ser afectadas pela acção de redução, o que põe em causa o direito de propriedade do donatário – seja este também herdeiro legitimário ou não. Mas a usucapião, que permite a aquisição do direito de propriedade em virtude do decurso do tempo, cumpridos os prazos legais, é susceptível de ser posta em causa pela acção de redução, prevalecendo sempre o direito à redução por inoficiosidade do herdeiro legitimário, enquanto mecanismo de tutela da sua legítima   subjectiva. (…)

Como refere PAULO SOARES DO NASCIMENTO invocar o instituto da usucapião significaria que o mecanismo da redução das liberalidades inoficiosas perderia todo o sentido de protecção do herdeiro legitimário, na sua vertente de tutela quantitativa da legítima (…)

A invocação da usucapião pode dar-se a todo o tempo contra terceiros, desprovidos de um título de vocação hereditária. Porém, por outro lado, já não poderá a usucapião ser invocada contra o sucessível que concorre à sucessão na qualidade de herdeiro legitimário, por, precisamente, contrariar o princípio da intangibilidade da legítima, princípio basilar do sistema sucessório português.  […]».

Posto isto, atente-se no que se escreveu no Acórdão desta Relação de Coimbra, de 11/05/2004, Agravo nº 3822/03 (Des. Jaime  Fereira) [Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.]:

«[…] com as doações regularmente efectuadas pela “de cujus” a favor dos seus herdeiros, foi transmitida a propriedade dos bens doados como mero efeito desse contrato de disposição gratuita e desde que o mesmo teve lugar – é o que resulta dos artºs 940º, nº 1; 947º, nº 1; e 954º, al. a), todos do C. Civ.

Tal transmissão, porém, não evita que os donatários-descendentes da doadora (autores há que entendem estar também o cônjuge sobrevivo, que seja também donatário, obrigado a este dever, como salienta Rodrigues Bastos in Notas ao Código Civil, vol. VII, Lisboa 2002, pg. 323; veja-se, também, o Prof. Oliveira Ascensão, in “Direito Civil-Sucessões“, 5ª ed. revista, pg. 531) devam restituir à massa da herança desta, para igualação da partilha, os bens ou valores recebidos em doação, para, assim, poderem entrar na sucessão da ascendente, tanto mais que todos os bens imóveis relacionados foram doados com obrigação de colação para os herdeiros assim beneficiados - é o que resulta dos artºs 2104º, nº 1; 2105º; 2106º e 2113º, todos do C. Civ..

A fundamentação deste instituto do direito sucessório acha-se no significado social que é atribuído às doações em vida feitas a presuntivos herdeiros legitimários do doador, considerando-as como meras antecipações da herança (a ocorrer necessariamente no   futuro).

Tal conferência (ou dever de restituição) faz-se pela imputação do valor da doação... na quota hereditária (sendo esse valor aquele que os bens doados tiverem à data da abertura da sucessão), o que é a regra, ou pela restituição dos próprios bens doados, se para tanto houver acordo de todos os herdeiros – artºs 2108º, nº 1; e 2109º, nº 1, do C. Civ..

Assim, na primeira dessas situações (e apenas essa situação se nos coloca), o beneficiário-donatário conserva no seu património os bens doados, sendo apenas o seu valor imputado na sua quota hereditária, com o valor reportado à data da abertura da herança (data da morte do de cujus) […]».

Dito isto, ou seja, afirmada a possibilidade de sujeição à colação dos bens doados, e adquirido que está que o ora Apelante, para o efeito, requereu a emenda da partilha, o ficar como credor de tornas do interessado FF é ainda uma mera eventualidade, não se podendo afirmar que o ora Apelante tenha sobre este, que o nega, um crédito exigível judicialmente.

Ora, a compensação, embora possa respeitar a um crédito não reconhecido judicialmente, reconhecimento esse que é apenas condição de eficácia daquela, necessita, para poder ser invocada que respeite a um crédito exigível judicialmente (artº 847, nº 1, a), do Código   Civil).
Do exposto resulta que, por não ser titular de um crédito exigível judicialmente, não é possível ao Apelante invocar a compensação, para neutralizar o crédito de tornas que o interessado FF tem sobre ele e que está assente em título que se mantém   incólume.

Por isso é manifesta a improcedência da oposição do ora Apelante, quer à execução, quer à venda.

Por outro lado, não podendo a execução ser suspensa por causa prejudicial, ainda que entendida assim a emenda da partilha (artº 272.º, n.º 1, do NCPC    e Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Maio de 1960 - actualmente com força de uniformização de jurisprudência), não ocorre outro motivo justificado de suspensão, que, na prática, não equivalha à prejudicialidade e, que, portanto, possa ser invocado nos termos da 2ª   parte do nº1 desse art. 272.º. [Cfr. Acórdão desta Relação de Coimbra, de 05/19/2020, Apelação nº 1075/09.2TBCTB-E.C1 (Relatora: Des. Ana Vieira) [...].

Assim, embora com diferente fundamentação, confirma-se o indeferimento liminar decidido pelo Tribunal “a quo”, improcedendo a  Apelação."

[MTS]