1. O art. 5.º CRegP -- cuja epígrafe é "Oponibilidade a terceiros" -- determina, na parte que agora releva, o seguinte:
1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. [...]4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Este n.º 4 consagra, na sequência de um acórdão de uniformização de jurisprudência (Ac. STJ 3/99, de 10/7), a chamada concepção restrita de terceiros para efeitos de registo. Do disposto no n.º 1 poderia retirar-se que um registo seria oponível a qualquer terceiro que não pudesse invocar um outro registo sobre o mesmo bem. Mas, por força do disposto no n.º 4, não é assim. Os "terceiros" referidos no n.º 1 e aos quais pode ser oposto o registo não são "quaisquer terceiros", mas apenas aqueles que compartilhem um transmitente comum com o titular registado. Por exemplo: A transmite x a B e, depois, a C; C regista; B não regista; como B também adquiriu x de A, C pode opor o seu registo a B.
Disto decorrem duas consequências:
-- O registo só pode ser oposto por um dos adquirentes ao outro adquirente de um transmitente comum;
-- O titular de um direito não registado pode opor este direito ao titular registado do mesmo direito, sem que este lhe possa opor sequer a presunção registral.
2. A opção pela consagração da concepção restrita de terceiros para efeitos de registo não é uma opção teórica desprovida de consequências práticas. Muito pelo contrário. As consequências práticas da referida concepção são muito significativas, como, aliás, decorre do que acima se referiu.
O problema reside em que muito dificilmente essas consequências podem ser consideradas salutares e positivas. Também muito pelo contrário. Salvo casos raríssimos, as consequências são mesmo muito perniciosas.
Um exemplo muito simples basta para o demonstrar: só em casos muitos raros, a penhora registada é oponível a um alegado titular do bem penhorado que não tenha registo a seu favor; quer dizer: na enorme maioria dos casos, como o terceiro não registado e o executado registado não adquiriram de um mesmo transmitente o bem que, entretanto, foi penhorado, o registo da penhora não é oponível a esse terceiro; portanto, um terceiro não registado pode, quase sempre, embargar de terceiro contra uma penhora registada e obter ganho de causa.
O problema reside em que muito dificilmente essas consequências podem ser consideradas salutares e positivas. Também muito pelo contrário. Salvo casos raríssimos, as consequências são mesmo muito perniciosas.
Um exemplo muito simples basta para o demonstrar: só em casos muitos raros, a penhora registada é oponível a um alegado titular do bem penhorado que não tenha registo a seu favor; quer dizer: na enorme maioria dos casos, como o terceiro não registado e o executado registado não adquiriram de um mesmo transmitente o bem que, entretanto, foi penhorado, o registo da penhora não é oponível a esse terceiro; portanto, um terceiro não registado pode, quase sempre, embargar de terceiro contra uma penhora registada e obter ganho de causa.
Para que não existam nenhumas dúvidas sobre o alcance do problema e as consequências a que a referida concepção restritiva conduz, deve elucidar-se que é também por ela que se afere a oponibilidade da importante presunção registral que consta do art. 7.º CRegP. Como é evidente, a oponibilidade da presunção registral a terceiros coincide com a oponibilidade do registo a terceiros, pelo que, onde esta não se verificar, aquela também não pode ocorrer.
3. Este é o (muito pouco animador) panorama legal. Que se passa, entretanto, na recente jurisprudência? A título exemplificativo, isto:
-- É vasta a jurisprudência na qual, em acções propostas contra quem não pode ser considerado terceiro nos termos do art. 5.º, n.º 4, CRegP, não se coloca em causa o funcionamento da presunção decorrente do registo e apenas se exclui que essa presunção englobe os elementos da descrição predial (p. ex., STJ 2/3/2023 (1091/20); STJ 7/3/2023 (1628/18); STJ 23/3/2023 (2029720));
-- Nuns embargos de terceiro em que estava em causa a oponibilidade a um terceiro do registo de uma acção de impugnação pauliana, aceitou-se essa oponibilidade num caso em que o autor da acção e o terceiro embargante não tinham adquirido o bem de um autor comum (RG 10/11/2022 (2356/17)); quer dizer: ao contrário do que resultaria da aplicação do disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, o terceiro não foi admitido a embargar de terceiro.
4. Que pensar disto? Talvez isto:
Perante as inaceitáveis consequências que, na maior parte dos casos, resultariam da aplicação da concepção restrita de terceiros para efeitos de registo, a jurisprudência opta por ignorar essa concepção e decide como se ela não estivesse consagrada na lei. É, assim, bem possível que se tenha formado (ou que, pelo menos, se esteja a formar) um costume jurisprudencial contra legem. Note-se que, para que se forme este costume, basta que os tribunais sistematicamente não apliquem o disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP quando o deveriam aplicar e que tal se apresente como uma jurisprudência consolidada a que qualquer tribunal se sente vinculado.
Se assim sucede -- isto é, se há efectivamente uma não aplicação pela jurisprudência da infeliz concepção restrita de terceiros para efeitos de registo com a convição de que essa concepção não deve ser aplicada --, então está em curso algo de muito significativo no ordenamento jurídico português. No mínimo, pode dizer-se que se caminha para a dignificação do registo e para uma normalidade que nunca deveria ter sido posta em causa pela lei.
MTS