"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2023

Jurisprudência 2022 (235)


Matéria de facto;
impugnação; instrumentalidade


1. O sumário de RG 15/12/2022 (213/20.9T8CHV-A.G1) é o seguinte:

I. Invocando o devedor a excepção de preenchimento abusivo do título de crédito, é sobre ele que recai o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação dos termos e condições aí definidos.II. Exigindo-se que a emissão de declaração de interpelação admonitória, bem como de resolução contratual, se faça por carta registada, com aviso de recepção, a prova da emissão, envio e recepção das ditas declarações só poderá fazer-se pela junção dos exigidos registo e aviso de recepção.

III. Pese embora seja proibida a prova testemunhal e por presunções judiciais quando a declaração negocial houver de ser reduzida a escrito, admite-se, em interpretação restritiva do art. 393.º, do CC, que tais provas possam ser produzidas desde que exista um mínimo de prova documental que torne verosímil a existência da dita declaração, ou exista uma impossibilidade de obtenção de prova escrita por parte de quem invoca a prova testemunhal, ou tenha ocorrido a perda, sem culpa sua, da mesma.

IV. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.

V. Sendo condição de preenchimento de uma livrança recebida em branco, para garantia de cumprimento de obrigações contratuais, que tenha havido prévio incumprimento destas e resolução do contrato que as originou, provando-se que tais factos não ocorreram, o preenchimento do título que ainda assim ocorra é abusivo.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.

Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior CPC], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com [itálico] apócrifo).

Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1).

Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.

Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, com [itálico] apócrifo) [No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.3TBLRA.C1, onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação». Ainda Ac. do STJ, de 09.02.2021, Maria João Vaz Tomé, Processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1, onde se lê que «nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil».]"

[MTS]