"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/09/2023

Jurisprudência 2023 (5)


Fixação judicial de prazo;
vinculação ao pedido; decisão mais favorável ao demandado*


1. O sumário de STJ 10/1/2023 (1281/19.1T8VCD.P1.S1) é o seguinte:

I. É admissível nos processos de jurisdição voluntária a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu.

II. Nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis embora essa possibilidade de não restrinja aos que tenham esse objeto.

III. Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa justificada por a latitude na indagação e fixação dos factos e a obrigação de uma solução equitativa não pode estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"As concretas questões apontadas como nulidades, que os recorrentes inscrevam nas diversas alíneas do art. 615 nº1 do CPC traduzem-se em não poder a decisão recorrida ultrapassar o pedido de 90 dias; [...]. 

A este propósito entendemos que ao ter sido fixado o prazo de 180 dias quando no pedido constava o de 90 não se cometeu na decisão recorrida qualquer nulidade.

No âmbito do pedido tem-se entendido que este não é desrespeitado quando um pedido, embora não expressamente formulado, se deva considerar implicitamente formulado o que é evidente nos casos em que um pedido de condenação numa determinada quantia tem implícito o pedido de condenação em quantia menor, mas o que também ocorre quando o pedido se inscreve no âmbito de um pedido que abranja a totalidade dos elementos do pedido que não foi formulado divergindo-se apenas em razão da qualificação jurídica (v.g. pedido de anulação em vez de nulidade ou declaração de ineficácia em vez de nulidade) – vd. acs. da RL de 3-7-2008 no proc e acs. STJ de 17-2-2005 na revista 89/05 e de 29-11-2006 na revista nº 2210.

O sentido desta admissibilidade assenta em esse pedido, não formulado expressamente, mais não ser que o pressuposto ou condição necessária da pretensão formulada designadamente quando o pedido não pode ser considerado relevante em termos práticos quando autónomo.

Sabemos ainda que em sede de jurisdição voluntária, será admissível a decisão mais conveniente e oportuna que o Tribunal entenda dever proferir ainda que não seja aquela decisão que foi pedida, importando, no entanto, que haja uma conexão ao nível da decisão entre o que se decidiu e o que se pediu. Nestes processos o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes prevalecendo a atividade inquisitória do juiz sobre o princípio da atividade dispositiva das partes.

Por esta razão nos processos de jurisdição voluntária não é absoluta a regra do artigo 609 nº 1 do CPC tendo sido já admitida (desde há muito) a condenação ultra petitum designadamente no âmbito de processo tutelares cíveis – acs. RC de 25-5-1977 in,B.M.J. 270-265 ac. RL de 16-1-1986 C.J., 1, pág. 91, ac. RE de 11-12-1975 ,B.M.J.254-246 e ac. RL de 3-7-2008 já citado.

Quer se trate de uma limitação quantitativa (proibição de o juiz ultrapassar em quantidade os limites constantes do pedido formulado) quer se trate de condenar em objeto diverso do que se pediu, ou seja, uma limitação qualitativa, nos processos de jurisdição voluntária a possibilidade persiste porque no plano desta jurisdição, não se verifica uma absoluta intangibilidade dos limites de condenação.

Mesmo que se tenha por referência ôntica que a ultrapassagem dos limites no plano quantitativo será sempre portadora de alguma reserva por se apresentar desvantajosa para a parte vencida, uma alteração qualitativa poderá ter diferentes leituras, porque não será aceitável uma alteração qualitativa que não tenha uma conexão mínima com a pretensão do requerente da providência, “pois isso se traduziria numa injusta, porque inesperada, decisão-surpresa. Mas não choca, bem pelo contrário, parece até razoável aceitar-se condenação em objeto diverso desde que haja entre esta e a mais ampla pretensão formulada relevante elemento de conexão tratando-se de processos de jurisdição voluntária.” - Ac. RL de 3-7-2008 citado, relator Salazar Casanova.

Porque o tribunal nos processos de jurisdição voluntária não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tal liberdade de ação pode implicar uma condenação qualitativamente diversa, que até poderá ser menos prejudicial do que a decisão que se limitasse a condenar no pedido tout court.

No caso em presença no âmbito da alteração quantitativa conclui-se que ela está autorizada pela natureza do processo de jurisdição voluntária, não se podendo entender que a latitude na indagação e fixação dos factos dos factos e a obrigação de uma solução equitativa pudesse estar limitada pelo pedido, o qual deve entender-se ser uma indicação. Aliás, na ação de fixação judicial do prazo o pedido é esse e só esse, o de fixar um prazo que, mesmo não tendo havido contestação o que conduziria às consequências previstas no art. 1027 nº2 do CPC, será tanto mais vantajoso para os requeridos quanto maior seja, como ocorre no caso em que se fixou não o de 90 dias, mas sim o de 180 dias.

No domínio da alteração qualitativa os recorrentes defendem que a decisão recorrida, ao incluir na fixação do prazo a advertência a que nele se contém a conclusão do processo de destaque do prédio objeto do contrato-promessa em causa e todas as demais obrigações secundárias e acessórias face à obrigação principal de outorga do contrato prometido, condena em objeto diverso do pedido.

Não têm razão os recorrentes porque aquilo que era o pedido e finalidade na ação era a fixação e um prazo e foi isso que ficou decidido com a determinação de o prazo fixado ser de 180 dias. A circunstância de a decisão recorrida esclarecer que esse prazo para o cumprimento da obrigação da responsabilidade dos réus - da marcação da escritura - abrangia todas as diligências necessárias a esse cumprimento para lá de ser desnecessária e inócua, não constituindo o estabelecimento de qualquer condição ou obrigação, não descaracteriza de todo e em nada o pedido de fixação do prazo que foi fixado. Obviamente que se o prazo para a marcação da escritura foi fixado em 180 dias tal só pode significar que para o cumprimento dessa obrigação os réus passam a dispor desse prazo sem que possam argumentar protestativamente que antes desses 180 dias começarem o tribunal está a fixar qualquer condição ou nova obrigação. A decisão recorrida é clara no sentido de fixar um prazo para o cumprimento da obrigação discutida (a da marcação da escritura pelos réus) e indicar quando tal prazo se inicia e apenas nisto se traduz.

Não podendo considerar-se, em face do exposto, que houve no caso uma condenação em objeto diverso, sempre se deixa expresso por questões de rigor que, mesmo que tal sucedesse ela seria possível se estivesse conexionada com a pretensão do requerente. Nos processos de jurisdição voluntária pode o tribunal condenar em objeto diverso do pedido quando entre a condenação e a pretensão exista uma efetiva conexão e quando, assim procedendo, se tenha como objetivo realizado uma solução mais adequada para o litígio. Todavia, para que não existam equívocos, no caso não se verifica qualquer condenação em objeto diverso do pedido razões para que se tenham por improcedentes as arguições de nulidade da decisão recorrida invocadas pelos recorrentes."

*3. [Comentário] Se o demandante pediu a fixação de um prazo de 90 dias para a outorga pelo demandado da escritura do contrato prometido e o tribunal concedeu um prazo de 180 dias para essa outorga, o tribunal decidiu, em referência ao pedido formulado, num sentido menos favorável ao demandante e mais favorável ao demandado. Noutros termos: a decisão constitui um minus em relação ao pedido do demandante, pelo que não padece de nenhuma nulidade.

MTS