Decisão penal condenatória;
presunção ilidível; âmbito subjectivo
1. O sumário de RP 10/1/2023 (23808/16.0T8PRT.P1) é o seguinte:
I - A inversão do ónus da prova prevista no art. 344º, nº 2 do Cód. Civil só pode ocorrer quando a parte contrária culposamente tenha tornado impossível a prova à parte com ela onerada.
II – A decisão penal condenatória, transitada em julgado, no respeitante ao autor e ao réu, que intervieram no processo crime na qualidade, respetivamente, de arguido e assistente, tem eficácia absoluta no que toca aos factos constitutivos da infração, que não poderão voltar a ser discutidos dentro ou fora do processo penal, sendo o julgamento desses factos definitivo quanto ao arguido.
III - A possibilidade de ilidir a presunção juris tantum estabelecida no art. 623º do Cód. de Proc. Civil, conferida a terceiros, nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas aos sujeitos processuais que não tiveram intervenção no processo criminal, em homenagem ao princípio do contraditório.
IV – Se o contrato de mútuo está ferido de nulidade, por falta de observância da forma legalmente prescrita, a consequência será a restituição de tudo o que tiver sido prestado, por força do art. 289º, nº 1 do Cód. Civil, acrescido dos juros moratórios contados desde a citação para a ação de condenação ou desde a interpelação extrajudicial admonitória para pagamento, se esta tiver ocorrido.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"4. [...] Em sede de motivação da decisão de facto o Mmº Juiz “a quo” escreveu o seguinte:
“O tribunal fundamenta a sua convicção quanto aos factos que considerou provados e não provados nos documentos juntos aos autos, com especial enfoque, na decisão penal acima referida (e factos nela constantes), em que figurou o aqui autor como arguido e o aqui réu como assistente (por referência, nomeadamente, ao disposto nos arts. 623 e 624 do Código de Processo Civil, relativamente ao valor da anterior sentença penal, integrando o direito probatório civil material, ou seja, da eficácia probatória da fundamentação da sentença penal em processo civil, tudo em conjugação com as regras da experiência comum e no confronto com os seguintes depoimentos, na parte em que, por alguma forma, contribuíram para a convicção do tribunal:O autor AA, negando embora que fossem empréstimos para jogo, afirmando que se encontravam em café, na ..., perto do casino, admitiu que efectuava os levantamentos em dinheiro naquele local (casino) para entrega ao réu;DD foi também jogador frequente naquele casino. Conhece autor e réus de os ver por ali, no café e no casino. Encontrava-se com o autor e outros no café, cerca de 15/16 horas e depois iam para o casino, que ambos frequentavam, juntamente com outras pessoas com quem também se encontravam no café. Por vezes, cerca de uma vez por semana, o réu sentava-se numa mesa próxima e o autor ia ter com ele. Regressando à mesa, dizia que lhe emprestara dinheiro, tendo-lhe o autor mostrado um cheque; CC, amigo do autor desde cerca do ano de 2012, de quem é amigo, conhecendo o autor apenas de o ver pelo café e casino (como referido pela anterior testemunha). Durante o verão de 2014[5], muitas vezes se encontrava com o autor no café (como acima dito). Por várias vezes aparecia ali o réu, juntando-se com o autor numa outra mesa e vendo que algumas dessas vezes o autor lhe entregava dinheiro. Certa vez, por lho ter perguntado, o autor disse que lhe emprestava dinheiro, tendo-lhe mostrado um cheque e uns papéis em que apontava as contas entre ambos.Os demais factos considerados não provados, assim o foram quer porque nenhuma prova foi efectuada quanto aos mesmos, quer porque a prova produzida não foi suficiente para este tribunal formar uma convicção segura quanto à sua veracidade.”
5. Elemento fundamental para a formação da convicção do julgador em 1ª Instância quanto aos factos provados e não provados foi a sentença condenatória, transitada em julgado, proferida no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal singular nº 637/15.3T9PVZ, em que foi arguido o aqui autor e assistente o aqui réu, e em que o primeiro foi condenado pela prática de um crime de usura para jogo, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 114.º, nº 1, do Dec. Lei nº 422/89 de 2/12 e 30º, nº 2 e 226º, nº 1 do Cód. Penal – cfr. nºs 7 e 8.
Dispõe o art. 623º do Cód. de Proc. Civil que “[a] condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como os que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.”
Constata-se, pois, que neste preceito apenas se regula expressamente o valor probatório cível da sentença penal condenatória face a terceiros, aí se estabelecendo que nos casos em que estes sejam titulares de uma relação jurídica dependente da infração criminal, a sentença penal, conquanto proferida no âmbito de processo em que o terceiro não teve intervenção, representa uma presunção ilidível da ocorrência dos factos que sejam comuns aos que foram apreciados e considerados provados no processo penal. [---]
Nada dizendo esta norma legal quanto às partes propriamente ditas dever-se-á entender que o legislador quis significar que a sentença penal é tida como vinculante para as partes também no tocante aos fundamentos decisórios, ou seja, aos factos constitutivos da infração.[---]
Assim, a decisão penal condenatória, transitada em julgado, no respeitante ao autor e ao réu, que intervieram no processo crime na qualidade, respetivamente, de arguido e assistente, tem eficácia absoluta no tocante aos factos constitutivos da infração, que não poderão voltar a ser discutidos dentro ou fora do processo penal, sendo o julgamento desses factos definitivo quanto ao arguido, aqui autor.
A possibilidade de ilidir a presunção juris tantum estabelecida no art. 623º do Cód. de Proc. Civil, conferida a terceiros, nunca é concedida ao arguido condenado, mas apenas aos sujeitos processuais que não tiveram intervenção no processo criminal, em homenagem ao princípio do contraditório – cfr. Ac. STJ de 13.1.2010, proc. 1164/07.8 TTPRT.S1, relator Pinto Hespanhol, disponível in www.dgsi.pt..
Deste modo, foi acertada a posição assumida pelo Mmº Juiz “a quo” na sentença recorrida ao convocar, para formar a sua convicção, o teor da sentença penal, transitada em julgado, que condenou o aqui autor pela prática, no caso dos autos, de um crime de usura para jogo na forma continuada.
Considerou este que a factualidade dada como provada e não provada emergiu desta sentença condenatória penal em conjugação com as regras da experiência comum e com o teor dos depoimentos/declarações prestados pelo próprio autor AA e pelas testemunhas DD e CC, que atrás se deixaram sintetizados.
Ora, ouvidos estes depoimentos/declarações, na sua íntegra, entendemos que os mesmos não permitem afastar a convicção probatória formada pela 1ª Instância, largamente assente, conforme já se referiu, no conteúdo da sentença penal condenatória proferida no proc. nº 637/15.3T9PVZ.
Neste contexto, concluímos que o Mmº Juiz “a quo”, de forma correta, deu como assente que:
- o autor emprestava dinheiro a jogadores que frequentavam o Casino ..., cobrando um juro semanal de, pelo menos, 10%, o que fez com o aqui réu;- por cada uma das entregas em dinheiro, o réu emitia e entregava ao autor um cheque bancário com aquele valor acrescido da referida taxa de juro semanal de 10% e se esse cheque não era pago no prazo de uma semana, o réu emitia e entregava um novo cheque, a que sempre iam acrescendo aqueles juros semanais;- não tendo efetuado o pagamento de quaisquer quantias, em outubro de 2014, o réu emitiu e entregou ao autor um cheque no valor de 104.500,00€, que correspondia à totalidade das verbas que lhe tinham sido emprestadas, acrescidas dos referidos juros semanais;- as quantias que o autor emprestou ao réu ascenderam ao valor total de 25.800,00€, divididas em três tranches de 5.000,00€ e uma de 10.800,00€.
Factualidade esta que, de resto, se compagina com o conteúdo da referida sentença penal condenatória, com a prova oralmente produzida na audiência de julgamento, com as regras da experiência comum, que manifestamente apontam o vício de jogo de que padece o réu como razão de ser dos empréstimos que lhe foram sendo efetuados pelo autor, e também com o conjunto da demais prova documental constante dos autos.
Acresce que o cheque emitido pelo réu no valor de 107.000,00€, face à natureza dos juros cobrados pelo autor, não permite concluir que os empréstimos efetuados por este se tenham situado em montante próximo desta quantia.
E quanto à fixação da quantia mutuada no montante de 42.000,00€, em virtude de o ora réu no âmbito de anterior oposição a execução que lhe foi movida pelo ora autor ter admitido este valor [---], importa referir que nos presentes autos, nos arts. 5º a 7º da contestação, este não aceitou sequer o empréstimo desta quantia ao alegar o seguinte:
“5º Mas não deve os montantes nele titulados, nomeadamente os €107.000,00 titulados pelo cheque que foi inicialmente dado à execução e agora é usado como prova invocada como essencial nos presentes autos.6º Mas o Autor bem sabe que o Réu não lhe deve a quantia que peticiona.7º Nem sequer o montante de €42.000,00, pois que os valores que o Autor lhe entregou, se os juros fossem normais, reduziriam substancialmente este quantitativo.”
Como tal, entendemos que nenhuma alteração se justifica introduzir na factualidade dada como provada e não provada, assim improcedendo o recurso do autor no tocante à impugnação da decisão fáctica."
[MTS]
[MTS]