"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/09/2023

Jurisprudência 2023 (19)


Direito ao descanso;
providência cautelar; periculum in mora


1. O sumário de RG 26/1/2023 (2323/22.9T8VCT.G1) é o seguinte:

I – São requisitos (de fundo e de forma) necessários ao decretamento da providência cautelar não especificada:

a) - Probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito - «fumus bonis juris»).
b) - Fundado receio de que a demora natural na solução do litígio causará uma lesão grave e dificilmente reparável (do direito que se pretende fazer valer em ação pendente ou a instaurar - «periculum in mora»).
c) - Desde que o prejuízo resultante de um tal recurso não exceda consideravelmente o dano que, através da providência, se pretenda evitar.
d) - E não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer outro tipo de procedimento cautelar nominado.

II – Visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada se essa lesão já se tiver consumado, salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano (como seja em caso de lesões ao direito de personalidade resultantes de actividades ruidosas e perturbadoras do direito ao descanso), pois nesse caso tais lesões são merecedoras de tutela cautelar.

III – Estando em causa uma obrigação de prestação de facto infungível com uma vertente positiva – qual seja, que os requeridos recolham e guardem, designadamente na sua casa de habitação, os seus dois cães, entre as 21h00m e as 7h00m, por forma a que não prejudiquem ou perturbem, com o seu latido, o descanso e o sono dos requerentes –, tal constitui uma daquelas situações que justifica plenamente a fixação de uma sanção pecuniária compulsória (art. 829º-A do CC e art. 365º, n.º 2, do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Considerando que as [...] asserções aduzidas pelos recorrentes estão, direta ou indiretamente, conexionadas com a inverificação dos requisitos do procedimento cautelar comum, a elas nos pronunciaremos conjuntamente.

Sendo assim, e a fim de nos atermos/restringirmos ao circunstancialismo concreto, importa ter presente a facticidade sumariamente apurada:"

- Os requerentes habitam o prédio urbano situado na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., no qual residem com os seus dois filhos (EE, de 9 anos de idade, e ..., de 4 anos) e onde, diariamente, fazem as suas refeições, de onde partem para os seus locais de trabalho, para onde regressam no final do dia de trabalho, onde estudam, onde dormem e descansam, onde recebem familiares e amigos, onde recebem a sua correspondência (pontos 1 e 2 dos factos provados);

- Contígua à casa dos requerentes, situa-se a casa do requeridos, constituída por três andares, tendo a sua “frente”, tal como um jardim frontal, de frente para a Rua ..., sendo que este jardim tem uma cota superior relativamente ao solo onde está edificado o prédio urbano dos requerentes (pontos 3 e 5 dos factos provados);

- A casa dos requerentes dista cerca de 5,00 m do muro que separa a sua propriedade da dos requeridos, distando cerca 4,00 m a casa dos requeridos ao referido muro (pontos 9 e 10 dos factos provados);

Os requeridos são proprietários de dois cães, adultos, de grande porte, de raça “Serra da Estrela”, que não saem da propriedade dos requeridos, aí permanecendo de dia e de noite (pontos 11 e 12 dos factos provados);

- Em data não concretamente apurada do ano de 2020, os referidos cães passaram a ladrar diariamente, de forma persistente, num volume muito alto e, por vezes, em uníssono, o que sucede quando os requeridos chegam a casa, ou seja, pelas 18h30m/19h00m, até às 6h00m/6h30m da madrugada (pontos 13 e 14 dos factos provados); [...]

- Por outro lado, o ladrar diário dos dois cães, no horário de adormecer dos dois filhos dos requerentes, agita e perturba o mais velho, impedindo-o de adormecer quando se prepara para o fazer, deixando-o agitado (ponto 19 dos factos provados); [...]

- Os cães dos requeridos apenas ladram quando vêem alguém estranho, quando existem barulhos estranhos, quando alguém bate ao portão, quando estão na presença de gatos no quintal ou no caminho, ou quando são provocados por alguém (ponto 29 dos factos provados);

- A partir do mês de Junho de 2021, os requeridos passaram a guardar os cães durante a noite, entre as 23h00m e as 7h00m, pelo que durante esse período os animais não ladram (ponto 31 dos factos provados).

Na apelação interposta, quanto ao primeiro requisito do procedimento cautelar decretado, depois de afirmarem não contestarem a existência do direito ao repouso por parte dos requerentes, contrapõem os recorrentes afirmando não se mostrar provado, nem suficientemente indiciado nos autos, que existe da sua parte a violação do direito por aqueles alegada, não se cumprindo assim este requisito para ser decretada a providência requerida.

Ora, face à abundante matéria de facto sumariamente provada não existe dúvida que tais direitos dos apelados foram violados pela conduta dos apelantes.

Com efeito, basta ter presente os enumerados pontos 13 a 21, 24 a 26 e 28 dos factos provados para desde logo se aquilatar da violação e afetação do direito à saúde, ao repouso, descanso e tranquilidade dos requerentes, em particular da requerente mulher, atenta a sua especial condição de saúde (mercê do aneurisma cerebral sofrido em 2018, que a deixou com graves sequelas e lhe impõem uma necessidade acrescida de repouso), bem como dos filhos menores do casal, na medida em que estes revelam sinais de agitação e de perturbação, sobretudo no momento de se deitarem.

Mais resulta (sumariamente) demonstrada a repercussão (sintomatológica) na saúde da requerente mulher de tais barulhos/ruídos provocados pelo latir dos cães dos requeridos, obrigando-a inclusivamente a recorrer a ajuda médica e medicamentosa.

Por conseguinte, é de concluir pela conexão causal entre o ladrar dos cães dos vizinhos e as dificuldades de dormir que a requerente mulher e os filhos patenteiam.

Parafraseando Sandra Passinhas [Cfr. Sandra Passinhas - Os animais e o regime português da propriedade horizontal, Revista da Ordem dos Advogados (ROA] diremos que o poder-utilizar de um entra em colisão com o respeito pelo poder-ser do outro, na situação em que os requeridos têm na sua propriedade cães que ladram persistentemente no período do entardecer (bem como, antes de serem recolhidos a partir das 23h, pela noite dentro), impedindo ou dificultando o repouso, o descanso e o sono dos requerentes. Na apreciação e julgamento de tais efeitos nos lesados, como se disse, o critério que o julgador deve seguir não é do tipo de pessoa médio, cidadão normal e comum, mas antes o de cada pessoa em concreto. Mesmo que o ladrar de um cão seja suportável por uma pessoa normal, mas habitando no prédio vizinho como é o caso uma pessoa que sofreu um aneurisma cerebral, que lhe deixou várias sequelas e limitações, tendo uma necessidade de repouso acrescido, como acontece com a requerente mulher, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis, então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho. Deve prevalecer o direito de personalidade dos requerentes sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial, dos requeridos detentores dos animais, devendo por isso o conflito ser decidido a favor do direito de personalidade.

E se é certo que a vivência nos meios rurais impõe que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, certo é também que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram [Cfr. Ac. do STJ de 3/10/2019 (relatora Rosa Tching), in www.dgsi.pt.]. Essa tolerância deixa de se impor quando, como na situação dos autos, é elevado o atentado ao descanso e sossego dos recorridos.

De facto, quando esses incómodos ultrapassam o grau de razoabilidade e de tolerabilidade – como bem explicitou o Mm.º Juiz “a quo”, quando os latidos são persistentes e, pela sua intensidade, impeçam os requerentes de descansar e de dormir, como é o caso –, fica a presente providência plenamente justificada.

De todo o exposto, resulta à saciedade, a violação ilícita por parte dos apelantes, do direito à integridade física e moral, à saúde e ao repouso dos requerentes, isto é, a violação do seu direito de personalidade.

Donde, ao contrário do propugnado pelos recorrentes, é de secundar a verificação do requisito da probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito - «fumus bonis juris»).

Dizem também os recorrentes não se verificar a existência do “periculum in mora”, posto que se entendessem que havia o perigo de a situação se agravar se não fosse resolvida rapidamente, deveriam instaurar este procedimento cautelar logo que terminaram com as diligências que efetuaram, o que não aconteceu por vontade e decisão deles.

Vejamos.

Para que o recurso à tutela cautelar possa ser considerado justificado exige-se que o periculum in mora seja actual e iminente.

Deste modo, a providência cautelar deve ser indeferida, porque injustificada, nos casos em que o requerente se tenha conformado com a situação de perigo que ameaça afetar o seu direito, assumindo uma conduta inerte e passiva perante esse facto.

Ou seja, visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada, porque injustificada, se essa lesão já se tiver consumado (ainda que grave e de difícil reparação), salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano [Cfr. Marco Filipe Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 3.ª ed., 2017, p. 202/204 e 205.]. Nestes casos, as lesões que revistam carácter de continuidade ou de repetição são merecedoras do âmbito de protecção cautelar.

No mesmo sentido, sustenta Abrantes Geraldes [Cfr. António Abrantes Geraldes, Temas …, Vol. III, pp. 89/90.] que “não deixam de ser tuteladas situações em que o evento é anunciado por uma série de elementos de facto ou em que o evento danoso já verificado continua a produzir efeitos que se prolongam no tempo, agravando o estado de insatisfação”.

Estando, pois, “fora da proteção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves, mas já nada obsta a que, relativamente a lesões continuadas ou repetidas, seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de actos lesivos , v.g em casos de lesões ao direito de personalidade resultantes de actividades ruidosas e perturbadoras do direito ao descanso (…)”. [...]

Para além do mais, “as lesões já verificadas não são inócuas. Elas servem ainda para dar maior seriedade e, assim, justificar a concessão de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência de situações lesivas, admitindo o deferimento de uma providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos”.

Como tivemos já oportunidade de salientar, em consequência dos ruídos e barulhos persistentes e intensos emitidos pelos cães dos requeridos, os requerentes veem afetado o seu sossego, tranquilidade e descanso, em especial no período do entardecer [---].

Trata-se de uma situação de violação efectiva e actual do direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos requerentes e do seu agregado familiar que, a manter-se, lesa a sua saúde física e psicológica dado que, em termos de experiência comum, é sabido que a privação reiterada do repouso e o “stress” causado pelos ruídos de certa intensidade é susceptível de afectar seriamente o bem-estar físico e a saúde, designadamente no foro psicológico.

Existe, pois, no caso dos autos um dano imaterial evidente que, além de revestir especial gravidade por atentar contra os direitos de personalidade, se acumula e tende a agravar-se, pois que é contínuo e repetido, e que acarreta grave prejuízo aos requerentes e ao seu agregado familiar. [...]

Em suma, é de subscrever a afirmação explicitada na sentença recorrida no sentido de ser indiscutível que o comportamento dos requeridos, ao deixarem os dois cães, de grande porte, soltos, no quintal da sua propriedade, durante a noite – numa primeira fase toda a noite e a partir do mês de junho de 2021 até às 23 horas – levando-os a ladrar diária, persistente e ruidosamente, causa lesão grave e dificilmente reparável a tais direitos (periculum in mora).

Bem andou, por isso, a decisão recorrida ao julgar procedente a providência cautelar requerida, pelo que tal decisão tem de se manter, com a consequente improcedência, nessa parte, da apelação."

[MTS]