"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/09/2023

Jurisprudência 2023 (4)


Comunhão de bens;
partilha; contrato-promessa; processo de inventário


1. O sumário de RL 12/1/2023 (1421/20.8T8CSC.L1-8) é o seguinte:

I - Nos regimes de comunhão de bens, os contratos promessa de partilha de bens comuns são válidos, desde que respeitada a regra imperativa da metade prevista no art.º 1730º, do CC.

II- A celebração de contrato promessa de partilha entre os ex-cônjuges, ainda que válido, não constitui, por si só, obstáculo ao prosseguimento de inventário judicial para partilha dos bens comuns do casal dissolvido, não lhe retirando razão de ser.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3.2.2. Da (in)validade e incumprimento do contrato promessa e sua repercussão no prosseguimento dos autos de inventário.

Veio a recorrente invocar ainda que o contrato promessa de partilha dos bens comuns em causa nos autos não obedece à regra prevista no art.º 1730º, do CC, sendo nulo. Nulidade esta que é oficiosamente cognoscível (art.ºs 280º e 286º do CC).

Estando, assim, em causa a validade do contrato promessa celebrado entre as partes, importa começar por ter presente o estatuído no art.º 410º, do CC:

“À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato- promessa.”.

Daqui ressalta que o contrato-promessa se rege pelas normas jurídicas atinentes aos contratos em geral e, para além delas, pelas normas relativas ao contrato prometido com as duas excepções mencionadas na parte final do citado nº 1 (normas respeitantes à forma do contrato e normas alusivas ao contrato prometido que pela sua razão de ser se revelem incompatíveis com a natureza do contrato – promessa).

Por seu turno prevê o art.º 405º, nº 1, do CC, que “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.”.

Ora, nos regimes de comunhão, a partilha dos bens comuns, em consequência da extinção, pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, da comunhão de bens entre os cônjuges, só pode ocorrer depois de terem cessado, por qualquer daqueles motivos, as relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1688º e 1689º, nº 1 do CC).

A proibição de partilha do património conjugal antes da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges é directamente imposta pelas regras da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei e da livre revogabilidade das doações entre casados que, por sua vez, se fundam no princípio da equidade das relações patrimoniais entre os cônjuges (art.ºs 1714º nºs 1 e 2 e 1765º nº 1 do CC).

Tornaram-se, porém, vulgares, os contratos acessórios - embora não necessariamente - de processos de divórcio por mútuo consentimento ou de separação judicial de pessoas e bens, cujo escopo é a fixação antecipada das regras a que deve obedecer a liquidação do regime matrimonial após a extinção ou a modificação da relação jurídica matrimonial.

A estes contratos são atribuídos, pelos cônjuges, eficácia diferida para um momento posterior ao do trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens. [...]

O único limite colocado à validade do contrato promessa é o representado pelo princípio estruturante da participação dos cônjuges no património comum: a regra da metade, prevista no art.º 1730º nº 1 do CC.

Com efeito, a lei proíbe as estipulações ou cláusulas contrárias à dita “regra da metade” imperativamente imposta pelo art.º 1730º, proibição extensiva aos casos em que do contrato não constem os elementos necessários que permitam ajuizar sobre a observância dessa regra.

É, assim, nulo, por violação do nº 1 do art.º 1730º, o contrato promessa de partilha que não contemple a totalidade das situações jurídicas activas e passivas que compõem o património comum do casal, nem contenha a indicação do valor integral do conjunto dessas situações (cfr. ac. da RP de 11.04.2019, relator Miguel Baldaia de Morais, disponível in www.dgsi.pt).

Sendo estes acordos nulos, o cônjuge prejudicado tem o direito de invocar a nulidade a todo o tempo e apenas tem o ónus de provar, nos termos gerais, que o contrato promessa de partilha lhe reservou uma quota inferior a metade (vide, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 3ª ed., p. 489).

Por outro lado, a citada regra da metade não se encontra sujeita a um juízo de apreciação que permita averiguar se essa igualdade numérica realiza, no caso, uma distribuição igual das vantagens e das desvantagens, causalmente associadas à relação matrimonial. A igualdade aritmética assim imposta pode atraiçoar o objecto de concretização de uma igualdade material entre os sujeitos da relação matrimonial (cfr. Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, 2ª Edição Revista e Actualizada, volume II, p. 645).

Quando a lei prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista - dada a natureza que deve assinalar-se ao património conjugal comum - não a definição do objecto do direito de cada cônjuge aquela massa patrimonial de afectação especial, mas fixar a quota-parte a que cada um tem direito no momento da dissolução e partilha do património comum.

Dada a natureza claramente imperativa da regra - através da qual o legislador pretende, precisamente, evitar uma partilha desigual, obtida através do ascendente psicológico de um dos cônjuges sobre o outro - será nulo o contrato promessa de partilha, através do qual um cônjuge se vincula a partilhar o património comum, recebendo menos de metade do valor dele (art.º 294º do CC).

Esta solução vale, por inteiro, para a partilha subordinada à condição suspensiva do decretamento entre os cônjuges do divórcio. Também neste caso não ocorre qualquer modificação do regime de bens nem, muito menos, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges. De igual modo, a partilha será nula se violar a regra da metade.

Neste sentido, Albino de Matos, Partilha, Divórcio e Condição, Temas de Direito Notarial, I, p. 467 a 475, Inocêncio Galvão Teles, p. 157 a 160 e Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, p. 444 a 447. Em sentido contrário, podemos ver Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os cônjuges, p. 285 a 287.

Há, portanto, que concluir pela validade do contrato promessa de partilha, celebrado depois da instauração da acção de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, mas anterior ao trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 2ª Edição, vol. I, p. 444 a 447 e Rita Lobo Xavier, Contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal celebrado na pendência da acção de divórcio. Comentário ao Ac. do STJ de 26 de Maio de 1963, RDES, 1994, p. 137 e 172 e Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, p. 264 a 276 e Guilherme de Oliveira, Temas de Direito da Família, p. 226 a 244.

Nem, de resto, está excluída, na falta de convenção contrária, a possibilidade da obtenção da sua execução específica, dado que a isso não se opõe a natureza da obrigação assumida (art.º 830º nº 1 do CC) – cfr. Rita Lobo Xavier, Limites, cit., p. 282 a 284.

Actualmente, a conclusão de que são válidos, nos regimes de comunhão, os contratos promessas de partilha – desde que respeitada a regra imperativa da metade – já não oferece dúvida séria e corresponde mesmo a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça (cfr., entre outros, os acs. do STJ de 22.02.07, de 15.12.11 e de 7.10.2020, todos acessíveis in www.dgsi.pt).

Vejamos, então, se o contrato promessa concluído entre a recorrente e o recorrido acata a regra da metade.

Temos que concluir necessariamente que não.

Como decorre do documento que corporiza as declarações de vontade dos interessados e dos factos dados como provados (note-se que se apurou que o valor real do bem imóvel é superior ao valor tributário, ascendendo ao montante estimado de €600.000,00), o respectivo património é constituído por uma participação social, por um veículo automóvel e por um imóvel, que seriam repartidos, entre ambos, do modo seguinte: ao requerido marido seria atribuída a totalidade do activo, no valor global de €621.500,00 e assumia o pagamento do passivo no valor de €281.293,33 e a requerente mulher assumia o pagamento de €65.735,93 e recebia de tornas a quantia de €56.500, a pagar em prestações.

As quotas dos cônjuges têm, imperativamente, que ser iguais. E, no caso, é inegável que não o são.

Consequentemente, ao afrontar a mencionada regra, o ajuizado contrato padece de vício de nulidade que o inquina no seu todo, nos termos dos art.ºs 280º, 410º, nº 1 e 1730º, nº 1 do CC, sujeito ao regime geral do art.º 286º do mesmo diploma legal.

E, por força dessa nulidade – que, como vimos é de conhecimento oficioso -, aquele contrato nenhuma eficácia produz no tocante à instância pendente do inventário e, portanto, não tem a virtualidade de impedir o seu normal prosseguimento.

Aliás, somos do entendimento que a celebração do contrato promessa de partilha - independentemente da sua validade - não constitui obstáculo ao prosseguimento do inventário judicial, dado que, por si só, não lhe retira razão de ser.

Como lapidarmente se diz no ac. da RG de 14.02.2013, relator Amílcar Andrade, disponível in www.dgsi.pt: “É certo que o contrato promessa impõe às partes a celebração do contrato prometido, ou seja, neste caso, a formalização da partilha nos termos acordados. Dele resulta a prestação de facto positivo: a obrigação de, no futuro, proceder à partilha nos termos acordados.

Pelo contrato promessa de partilha foi prometido realizar a partilha dos bens comuns do casal, que é o acto adequado a pôr termo à universalidade de direito que constitui a comunhão de bens do casal. Mas, um contrato promessa de partilha não pode titular e legitimar uma partilha - não passa de uma simples promessa que pode ou não ser cumprida (cfr. Acórdão nº 99B978 de Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Janeiro de 2000, acessível em www.dgsi.pt).

Assim sendo, só a escritura prometida realizar poderia pôr termo definitivo à comunhão dos bens do casal. Porém, essa escritura de partilha não foi feita. Daí que o contrato promessa de partilha não constitua obstáculo ao prosseguimento do inventário judicial, não lhe retirando razão de ser.”.

Neste mesmo sentido, veja-se ainda o ac. da RE de 18.10.2007, relator Manuel Marques e os acs. da RP, de 11.10.2016, relatora Maria Cecília Agante e de 12.10.2021, relator José Carvalho, todos acessíveis in www.dgsi.pt."

[MTS]