"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/09/2023

Jurisprudência 2023 (10)


Comunhão de bens;
acção de reivindicação; legitimidade processual


1. O sumário de RG 19/1/2023 (191/21.7T8CMN.G1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

I - Uma questão específica, e que tem suscitado dúvidas quanto à respectiva legitimidade processual, respeita aos casos da comunhão que se estabelece entre cônjuges após dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha (“período de transição”).

II - Os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela (propriedade coletiva): os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal.

III – No referido “período de transição” está em causa uma forma de comunhão de direitos: embora a dissolução do casamento faça cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, como decorre do disposto no art. 1688º do C.Civil, é inequívoco que, até efectivação da partilha, continua a existir uma forma de comunhão de direitos.

IV - Se é certo que tal comunhão não se pode qualificar como um caso de compropriedade, foi o próprio legislador que, através do disposto no art. 1404º do C.Civil, determina que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles). Deste modo, não faz sentido a aplicação analógica das normas que regulam os efeitos do casamento quanto às pessoas e aos bens dos cônjuges constantes nos artigos 1671º e seguintes do Código Civil, uma vez que tais normas foram criadas para protecção da sociedade conjugal, que já não existe naquele período.

V - Perante a concreta relação contratual controvertida apresentada na contestação/reconvenção e perante o disposto no art. 1405º/2 do C.Civil (norma subsidiariamente aplicável ex vi do citado art. 1404º do mesmo diploma legal), a Ré detém legitimidade processual activa para, por si só (sem estar acompanhada do ex-marido), deduzir o pedido reconvencional de que seja «declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal que era constituído pela Ré e o seu ex-marido». [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.3. Da (I)Legitimidade Activa da Ré para Deduzir o Pedido Reconvencional
          
Importa, antes demais, fazer o enquadramento jurídico da reconvenção.

É entendimento generalizado entre os processualistas que na reconvenção há um pedido autónomo formulado pelo réu contra o autor, tratando-se de uma espécie de contra-acção, de tal forma que passa a haver no processo um cruzamento de acções. Nas palavras do Antunes Varela [
In Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 323.] na reconvenção «há uma contrapretensão do réu, há um verdadeiro contra-ataque desferido pelo reconvinte contra o reconvindo. Passa assim a haver uma nova acção dentro do mesmo processo. O pedido reconvencional é autónomo, na medida em que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes».

A reconvenção identifica-se, enquanto acção, através da providência solicitada e, principalmente, através do direito a ser tutelado através desse meio, sendo certo que esse direito enquanto objecto da reconvenção (acção), individualiza-se através do seu próprio conteúdo e objecto (pedido) e ainda através do acto ou facto jurídico que se pretende ter-lhe dado origem (causa de pedir).

A reconvenção configura, assim, um desvio ao princípio da estabilidade da instância, que determina que esta se deve manter imutável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir após a citação do réu (cfr. art. 260º do C.P.Civil de 2013), tendo, por isso, um caracter excepcional. 

Mas a reconvenção não pode ser admitida indiscriminadamente: «Com a reconvenção deixa de haver uma só acção e passa a haver duas acções cruzadas no mesmo processo. E esse cruzamento de acções só pode ser admitido em certos termos, sob pena de se poder facilmente subverter toda a disciplina do processo» [
Antunes Varela, in obra citada, p. 324.]

A sua admissibilidade da reconvenção está condicionada pela verificação de vários pressupostos, uns de carácter processual ou adjectivo e outros de natureza objectiva ou substantiva. Estes últimos exprimem a relação de conexão substantiva que deve existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional (seguindo os ensinamentos de Alberto dos Reis [
In Comentário ao Código Processo Civil, Vol. III, p. 98.«traduzem-se na exigência duma certa conexão ou relação entre o objecto do pedido reconvencional e o objecto do pedido do autor»), enquanto os requisitos de natureza processual se destinam essencialmente a evitar a confusão processual que necessariamente se estabeleceria quando aos pedidos cruzados correspondessem diferentes espécies processuais.
           
Quanto aos requisitos processuais:

1) exige-se que o tribunal da acção tenha competência para conhecer do pedido reconvencional em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia (art. 93º/1 do C.P.Civil de 2013), não importando, no entanto, que a não tenha em razão do valor ou do território (basta a competência absoluta);

2) é necessário que ao pedido reconvencional corresponda a forma de processo aplicável ao pedido principal, ou seja, a mesma forma de processo, excepto se a diversidade resultar apenas do diferente valor dos pedidos ou o juiz a autorizar (art. 266º/3 do C.P.Civil de 2013);

3) e, ainda implicitamente contido no nº1 do art. 266º do C.P.Civil de 2013 (quando se afirma que “o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor”), tem que se verificar identidade subjectiva das partes, embora em posições invertidas.
           
Quanto ao laço substantivo de conexão que deve existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional, ou seja, quanto aos requisitos substantivos, a lei distingue taxativamente quatro tipos de situações (sendo certo que uma delas tem de se verificar para que a reconvenção seja admissível) que são as seguintes:

A) ligação através do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa, isto é, o pedido reconvencional deve brotar (emergir) do facto jurídico (real, concreto) que serve de fundamentação, seja à acção, seja à defesa (art. 266º/2a) do C.P.Civil de 2013);

B) efectivação de compensação, direito a benfeitorias ou despesas com a coisa cuja entrega é pedida (art. 266º/2b) do C.P.Civil de 2013);

C) reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

D) ou reversão, a favor do réu, do efeito jurídico pretendido pelo autor, isto é, o réu pretende conseguir o mesmo efeito jurídico visado pelo autor, mas em seu benefício (art. 274º/2d) do C.P.Civil de 2013) [...]
        
No caso em apreço, o Tribunal a quo considerou que “a ré pretende obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que pretende a autora, pelo que se enquadra a situação na previsão da alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do CPC” [a referência à alínea c) trata-se de um manifesto lapso de escrita, sendo óbvio e inequívoco que se pretendia referida a situação prevista na alínea d)].
           
Ora, embora alegue, na causa de pedir, para além do mais, ser titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel objecto da acção, é certo que a Autora não formulou concretamente qualquer pedido de reconhecimento desse direito, tendo efectivamente apenas formulado um pedido de devolução do veículo, e dos respectivos documentos, e um pedido de condenação numa quantia indemnizatória pela privação do uso do veículo. Porém, afigura-se-nos que o reconhecimento daquele direito de propriedade está necessariamente implícito contido naquela pretensão concretamente formulada de restituição/devolução, acrescendo que aquela pretensão indemnizatória também concretamente formulada é uma consequência do reconhecimento do direito e da pretensão de restituição. 
           
O pedido reconvencional concretamente formulado pela Ré consiste em «que seja anulado o registo de propriedade do veículo de matrícula ..-BA-.., marca ..., a favor da Autora» e em «que seja declarada a propriedade do citado veículo a favor do extinto casal constituído pela aqui Ré e BB», sendo certo que, embora formulado em primeiro lugar, a pretensão de anulação do registo é uma mera consequência da pretensão reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade.

Deste modo, afigura-se-nos que existe coincidência entre o efeito jurídico pretendido pela Autora e o efeito jurídico pretendido pela Ré, estando verificado o requisito substantivo previsto na alínea d) do art. 266º/2 (tal como se concluiu no despacho recorrido).
           
Ainda que, assim não fosse, sempre estaria preenchido o requisito substantivo previsto na alínea a) do art. 266º/2: com efeito, tendo a Autora invocado, a título de causa de pedir, que é detentora do direito de propriedade sobre o veículo automóvel objecto da acção, e que, tendo exigido à Ré a sua devolução, esta recusa-se a entregá-lo, verifica-se que, em sede de contestação, a Ré nega aquele direito de propriedade da Autora e invoca que tal veículo integra o património comum do extinto casal formado entre si e o seu ex-marido porque foi adquirido para esse património através de usucapião, donde resulta inequivocamente que este «meio de defesa» produz efeito útil defensivo, porque pode ter a virtualidade de extinguir os pedidos da Autora. [...]
           
Em sede de recurso, a Ré/Recorrente defende, essencialmente, que (cfr. conclusões 2ª a 8ª e 10ª a 13ª):

- «face ao disposto no art. 34º do CPC, ambos os cônjuges têm de estar em Juízo apenas quando esteja em causa a perda ou oneração de um bem comum; no pedido reconvencional formulado, a Ré, pelo contrário, pretende manter no acervo comum do ex-casal o veículo automóvel “sub judice”, não está em causa a alienação, perda ou oneração de qualquer bem do património comum, pelo que a Ré pode estar em Juízo “a solo”»;

- «seguindo o raciocínio do Tribunal “a quo”, sempre a decisão teria de ser pela ilegitimidade da Autora, porquanto propõe uma ação peticionando a condenação da Ré a entregar-lhe um veículo automóvel que, como resulta dos factos alegados em sede da própria Ação, da Contestação, da Reconvenção e da Resposta, desde 2005 foi conduzido indistintamente pelo casal e só depois do divórcio passou a ser conduzido exclusivamente pela Ré; é o próprio Tribunal “a quo” que refere expressamente “Tratando-se de uma comunhão conjugal de extinto casal…” e, sendo assim, face ao disposto no n.º 3 do art. 34º do CPC… por se tratar de uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, sempre teria que decidir pela ilegitimidade ativa da Autora»;

- «a comunhão conjugal é um património de mão comum ou propriedade coletiva, que se distingue da compropriedade porque os direitos dos cônjuges sobre os bens que constituem o património comum não incidem sobre cada um dos bens, de “per si”, mas, antes, sobre todos os bens no seu conjunto, como um todo unitário; relativamente aos bens comuns, que constituem o acervo comum do casal, cada um dos cônjuges pode usar contra terceiros os meios de defesa da posse previstos na lei, quer para a defesa da própria posse, quer para a defesa da posse comum; a usucapião por um compossuidor relativamente ao objeto da posse comum aproveita aos demais compossuidores; a Recorrente, na qualidade de ex-cônjuge e contitular e compossuidora do património comum do casal dissolvido pelo divórcio, sempre poderia reclamar a propriedade do veículo “sub judice” por usucapião, sem que, para tal, tenha de se apresentar em Juízo acompanhada ou com o consentimento do seu ex-marido; pelo que é parte legitima e, como tal, pode formular o Pedido Reconvencional.

Portanto, a impugnação recursiva da 1ª decisão recorrida (para além da nulidade arguida que, como supra se concluiu, improcede) baseia-se em três fundamentos distintos, importando analisar cada um deles em separado, embora antes se imponha fazer o enquadramento jurídico do pressuposto processual da legitimidade. [...]

Como resulta do disposto no art. 33º/1 do C.P.Civil de 2013, a preterição de litisconsórcio necessário (que pode ter origem na lei, no negócio jurídico ou decorrer da própria natureza da relação jurídica controvertida) é geradora da excepção dilatória da ilegitimidade, de conhecimento oficioso.

Uma questão específica, e que tem suscitado dúvidas quanto à respectiva legitimidade processual, respeita aos casos da comunhão que se estabelece entre cônjuges após dissolução da sociedade conjugal e enquanto se não faz a partilha (isto, naturalmente, nos regimes de comunhão).

Porque se nos afigura constituir o entendimento mais correcto da referida questão, acolhemos e seguimos a fundamentação do Ac. da RP de 18/11/2021 [
uiz Desembargador Paulo Dias da Silva, proc nº1403/20.0T8PVZ.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.e do Ac. do STJ de 26/04/2012 [Juiz Conselheiro Serra Baptista, proc. nº33/08.9TMBRG.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.]
           
Explica Guilherme de Oliveira [
In Manual de Direito da Família, p. 224.que “os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela. Adere-se assim à doutrina da propriedade coletiva. O património coletivo é um património que pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideias, como na propriedade. Enquanto, pois, esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património coletivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal”.

Esta natureza de propriedade colectiva da comunhão conjugal, que se molda na antiga comunhão de tipo germânico, que a delimita nitidamente da comunhão de tipo romano (de tipo individualista), resulta de vários pontos do seu regime jurídico, sendo que o aspecto mais relevante desse regime é, notoriamente, o seguinte: antes de dissolvido o casamento, ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação, nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento [
Cfr. o citado Ac. RP 18/11/2021, Juiz Desembargador Paulo Dias da Silva, proc nº1403/20.0T8PVZ.P1.]

Mas quando ocorre dissolução do vínculo conjugal surgem dúvidas (e divergências) sobre qual deve ser o regime que se aplica no período que medeia entre o momento após tal dissolução e o momento em que se realiza a efectiva partilha dos bens, sendo certo que a lei nada prevê quanto ao “regime de transição”.

Refere Eva Dias Costa [
In “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuges entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, p. 7 [...]que “Nos regimes em que exista comunhão, os cônjuges são, regra geral, compossuidores pro indiviso dos bens que integram o património comum, à semelhança dos comproprietários e dos condóminos, e podem reclamar a proteção possessória caso sejam turbados, esbulhados, ou ameaçados em sua posse, contra terceiros ou mesmo seus consortes. De facto, o exercício da composse deve regular-se ou modelar-se pelos princípios que disciplinam a comunhão do direito correspondente e, quanto aos efeitos, parece deverem aplicar-se a cada compossuidor, individualmente considerado, as regras do instituto possessório, salvo quando a lei estabeleça um regime especial, como acontece em relação à defesa da posse e à usucapião”.

Podemos, portanto, afirmar que neste período está em causa uma forma de comunhão de direitos: embora a dissolução do casamento faça cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, como decorre expressamente do disposto no art. 1688º do C.Civil, é inequívoco que, até efectivação da partilha, continua a existir uma forma de comunhão de direitos.

E, se é certo que tal comunhão não se pode qualificar como um caso de compropriedade, foi o próprio legislador que, através do disposto no art. 1404º do C.Civil, determina que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos (sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles), ou seja, prevê-se aqui, de forma expressa, a aplicação dos normativos deste instituto (compropriedade) à comunhão de quaisquer outros direitos.

Deste modo, ao referido período de “transição” (entre a dissolução do casamento e a partilha dos bens comuns) mostram-se subsidiariamente aplicáveis as normas que regem o regime da compropriedade."

[MTS]