"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/09/2023

Jurisprudência 2023 (18)


Ineptidão da petição inicial;
preclusão; efeitos*


I. O sumário de RG 26/1/2023 (2475/21.5T8GMR) é o seguinte:

1. Quando se pede a declaração da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas não se identifica a parcela de terreno cuja aquisição se pede, nomeadamente sem referir a área da dita parcela nem as confrontações da mesma, estamos perante um pedido ininteligível, que causa a ineptidão da petição inicial.

2. Esse vício é ao mesmo tempo uma nulidade de todo o processo e uma excepção dilatória, e deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).

3. Porém, por força do art. 200º,2 CPC, proferida a sentença em primeira instância sem o Tribunal conhecer dessa excepção ou nulidade, fica precludida a possibilidade de dela conhecer posteriormente.

4. Não obstante, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave em sede de recurso como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente. Resta, pois, por exclusão de parte, absolver o réu do pedido.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não havendo qualquer controvérsia quanto aos factos provados e não provados, as questões que se colocam são puramente jurídicas.

A recorrente e autora pretende que o Tribunal declare que ela adquiriu “o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...52/..., melhor identificados nos artigos supra desta petição inicial a favor da A., de per si e na qualidade de Cabeça de Casal por usucapião, nomeadamente do terreno onde está implementada a sua habitação”.

Se formos olhar para a petição inicial em busca de uma definição completa da parcela de terreno que a autora pretende adquirir, apenas vemos a seguinte referência: “o referido BB, já casado em 1993, solicitou à Ré sua mãe que o deixasse construir uma casa n... canto do campo que havia sido adquirido denominado Campo ..., sito no lugar ..., actualmente na rua ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...52/..., conforme flui da cópia que se junta e se dá por reproduzida para todos os efeitos legais – cfr. doc. nº ...”. E mais adiante: “durante vários anos foi a A., e o seu falecido marido efectuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro á volta do mesmo, fazendo benfeitorias, que aumentaram após a morte do marido, tendo efectuado melhorias muito significativas no mesmo, no qual despendeu várias dezenas de milhares de euros uma vez que pretendia e pretende habitar na sua habitação até ao final dos seus dias”.

O Tribunal recorrido apercebeu-se do problema, quando escreveu: “pretende a autora obter a condenação judicial da Ré a ver declarada a aquisição a seu favor, por usucapião, de uma parcela de terreno, de dimensões e características não especificadas, que seria parte integrante de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré”. Só que seguiu em frente, apreciando a questão da usucapião.

Pensamos porém que não deveria ter seguido.

O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (art. 3º,1 CPC).

O princípio do dispositivo é estruturante do processo civil. Escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC anotado, anotação ao art. 3º, que “quanto ao princípio do dispositivo, podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos de natureza processual destinados a assegurar a respectiva tutela. (…) O mesmo princípio estende-se à configuração do objecto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamentação à acção ou a defesa (art. 5º,1). A formulação do pedido (art. 552º,1,e), que vai determinar o objecto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objecto do processo (art. 3º), com repercussão nos limites da sentença (art. 609º,1). O pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.

Recorrendo ao que escreve o primeiro dos autores citados, in Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, fls. 105: “mas não basta concluir pela necessidade de formulação do pedido. A lei processual impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objecto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da acção (…)”.

Mais adiante, escreve o mesmo autor, quanto às características da petição quanto ao pedido: “(…) Precisão e determinação: a indeterminabilidade ou a ambiguidade do objecto do processo constituem uma falha tão grave quanto as referidas no ponto anterior (pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros), devendo o autor expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença. Será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstracto (cfr. A. Reis, ob cit, pág. 363, nota 1), como aquele que foi objecto do Acórdão da Relação de Évora, de 13-12-84, e que consistia em “proibir o réu de todo e qualquer acto ofensivo de interesses do autor”, ou quando se pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação (não respeita esta regra a petição onde apenas se pede o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores [...] ou quando se pede que o autor se abstenha de todo e qualquer acto ofensivo de interesses – cfr. Teixeira de Sousa, in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 122”).

Ora, no caso dos autos, estamos perante um pedido que padece exactamente desse mal: a pretensão da autora é que o Tribunal declare que ela adquiriu por usucapião uma determinada parcela de terreno. Mas de concreto apenas sabemos que essa parcela faz parte de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré. Nada mais sabemos: nem a sua área, nem as suas confrontações. Se o Juiz chegasse à sentença e entendesse dar razão à autora, que parcela exacta da superfície terrestre é que iria declarar que tinha sido adquirida por usucapião? Não sabemos, porque ela não está indicada. Quer o pedido, quer a causa de pedir, não contém essa precisão.

Claro que este exercício mental é puramente académico, pois como já vimos, também a causa de pedir sofre do mesmo mal, não estando identificada devidamente (nem sendo passível de identificação) a parcela exacta (com indicação da área e confrontações) que é objecto do pedido. Ainda podemos aceitar que nessa parcela se situa a casa onde a autora reside. Mas, qual a respectiva área? E o logradouro? Quais as suas dimensões? 200 metros quadrados? 2.000 metros quadrados? 20.000 metros quadrados? Nada sabemos, porque nada foi alegado. E quais as confrontações? Também nada sabemos porque nada foi alegado.

E imagine-se que, tendo obtido ganho de causa, a autora se apresentava no registo predial para registar a aquisição por usucapião. Que parcela ia registar? Com que área? Com que confrontações? O registo seria liminarmente recusado (cfr. art. 82º C. Reg. Predial).

Há uma grave indeterminação do pedido, o mesmo sucedendo com a causa de pedir, tão grave que afecta de modo insanável o objecto do processo.

E logo, por força do art. 186º,1,2,a CPC, estamos perante uma petição inicial inepta, por ininteligibilidade do pedido. O que significa que ocorre uma nulidade de todo o processo.

Tal vício, que é de conhecimento oficioso (art. 196º CPC), deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).

Porém, dispõe o art. 200º,2 CPC o seguinte:

As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.

Em anotação a este artigo, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa que “neste contexto, a prolação do despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º a 193º,1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades. Se o processo não comportar ou não tiver despacho saneador, o juiz pode conhecer destes dois vícios até à sentença final”.

É certo que a ineptidão da petição inicial, além de determinar a nulidade de todo o processo, tem também a natureza de excepção dilatória (arts. 577º, b e 595º,1,a CPC). Por aplicação do art. 576º,2 CPC, as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (…).

Os mesmos autores anotam: “Se o processo for nulo, não faz sentido que o juiz profira uma decisão de mérito sobre a questão apresentada ao Tribunal. Esta nulidade surge quando a petição inicial é inepta. Sendo esta peça a base de qualquer processo, mas padecendo de algum dos vícios constantes do art. 186º,2, todo o processo ficará inquinado, sendo por isso nulo (…) Importa, no entanto, contar com a possibilidade de se considerar sanada tal nulidade sustentada na falta ou inteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, a partir da apreciação da posição assumida pelo réu na contestação, nos termos do art. 186º,3”. No caso concreto sabemos que a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição, antes defendeu o conhecimento do mérito da causa. Porém, não deixa de ser incontornável que o facto de a ré não ter arguido esse vício, substantivamente não convalida a petição: esta continua a ter um objecto demasiado vago e indefinido para permitir uma correcta apreciação do mérito.

O conhecimento das excepções dilatórias é um dever oficioso do Tribunal, como resulta do art. 578º CPC.

Porém, como já vimos, existe um limite para o conhecimento deste vício resultante da ineptidão da petição inicial, que é a sentença final. Passado esse marco, já nem o Tribunal de recurso pode conhecer do mesmo, para absolver o réu da instância.

Todavia, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave agora como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente.

A sentença recorrida julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados. Esta Relação concorda com essa absolvição dos pedidos, embora com um fundamento diferente.

Assim, resumindo e concluindo, uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido, quando já não é processualmente possível conhecer desse vício, dá lugar não à absolvição da instância mas à absolvição do pedido.

E assim sendo, pelas mesmas razões, resta julgar o recurso também totalmente improcedente, pois, independentemente de saber se assistia razão à recorrente quanto à questão que veio suscitar no recurso, com o pedido ininteligível que formulou nunca poderia a acção ter sido julgada procedente."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão dá por assente que o disposto no art. 200.º, n.º 2, CPC limita o momento do conhecimento oficioso da ineptidão inicial que é permitido pelo estabelecido no art. 196.º 1.ª parte CPC.

Apesar de se poder admitir que é essa a visão comum, importa referir que o estabelecido no art. 200.º, n.º 2, CPC deve ser visto em conjunto com o disposto no art. 198.º, n.º 1, CPC. Dito de outra forma: o art. 198.º, n.º 1, CPC impõe que a ineptidão da petição inicial seja arguida na contestação; é para este caso (e apenas para ele) que o art. 200.º, n.º 1, CPC impõe que essa ineptidão deva ser conhecida no despacho saneador.

Sabendo-se que, caso sub iudice, "a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição", nada teria impedido o seu conhecimento posterior pelo tribunal.

MTS