Acção de divórcio; acção de acompanhamento de maior;
causa prejudicial
1. O sumário de RP 12/1/2023 (773/22.0T8PRD-A.P1) é o seguinte:
I – O processo de acompanhamento de maior não constitui causa prejudicial relativamente à acção de divórcio instaurada pela ali requerida contra o ali requerente.
II – O maior acompanhado pode intentar por si próprio acção de divórcio.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), e tendo ainda em conta, no caso, o disposto no art. 617º, nºs 2 e 3, e no art. 652º, nº 3, do C.P.C., são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da admissibilidade do recurso;b) apurar se há lugar à suspensão da instância por existência de causa prejudicial.
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[...] Passemos à segunda questão, sendo a factualidade relevante a que consta do relatório antecedente.
O recorrente defende que a acção de acompanhamento de maior que instaurou contra a recorrida constitui causa prejudicial, com os seguintes argumentos (apresentados unicamente nas alegações de recurso):
- pode estar em causa a capacidade da A. no momento da outorga da procuração nos presentes autos;
- não se sabe se a A. tem capacidade judiciária;
- o tribunal não pode ordenar o prosseguimento dos autos sem que seja assegurado esse pressuposto processual;
- a acção de maior acompanhado servirá para aferir da capacidade da A., nomeadamente para outorgar procuração a mandatário;
- também se discute nos autos a capacidade de a A. entender o alcance do próprio processo de divórcio, questão já anteriormente levantada pelo R.;
- naquela acção pretende-se apurar da capacidade judiciária da A., decisão que influencia os presentes autos.
Resumem-se, pois, a duas as questões colocadas pelo recorrente como devendo ser decididas na acção de maior acompanhado com influência nos presentes autos:
- a capacidade judiciária da A. para instaurar a presente acção, outorgar procuração para o efeito e nela estar por si;
- a capacidade de a A. entender o alcance do próprio processo de divórcio.
Quanto a esta segunda questão, foi alegada pelo R. na contestação e foi levada aos temas da prova (pontos 42 e 43 dos temas da prova), por constituir matéria que pode infirmar os factos alegados na petição inicial, designadamente no que respeita à vontade da A. de se divorciar e à efectiva existência de ruptura da vida em comum.
Assim sendo, será necessariamente objecto de prova na audiência de julgamento e de apreciação na sentença final, não havendo qualquer necessidade de aguardar sobre o que se possa conhecer na acção de maior acompanhado, que não tem como escopo, sequer, o de apreciar se a A. é capaz especificamente de entender o alcance do presente processo, ou os motivos que a levaram a instaurar a acção.
Veja-se que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as excepções legais ou determinadas por sentença (art. 140º, nº 1, do C.C.), destinando-se a maiores impossibilitados por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (art. 138º do C.C.).
Ou seja, o que está em causa é determinar de que forma se mostra necessário que a pessoa em causa seja acompanhada e qual a extensão que esse acompanhamento possa ter, sendo que o mesmo se limita ao necessário (art. 145º do C.C.) e é livre, nomeadamente, o exercício de direitos pessoais (art. 147º do C.C.), para além de que nem haverá lugar à medida sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (art. 140º, nº 2, do C.C.).
Como se vê, o que irá ser decidido a título principal na acção de maior acompanhado em nada interfere com a decisão a proferir nos presentes autos sobre o mérito da pretensão da A., mesmo que tal se deva à prova dos referidos factos alegados pelo R.
Quanto à questão da capacidade judiciária, a sua existência ou não também não depende do que venha a ser decidido na acção de maior acompanhado.
Com efeito, sendo a capacidade judiciária um pressuposto processual (susceptibilidade de estar, por si, em juízo – art. 15º, nº 1, do C.P.C.), a mesma tem de ser apreciada e a sua eventual falta regularizada no próprio processo.
Aliás, sendo a sua falta uma excepção, a mesma deveria ter sido invocada pelo R. na contestação, sem prejuízo da possibilidade do seu conhecimento oficioso pelo juiz.
No caso, porém, à data da instauração da acção, e enquanto a mesma prossegue, não há qualquer incapacidade da A., que está na plena posse do exercício dos seus direitos, não havendo qualquer decisão transitada em julgado que os limite. E não há incapacidade judiciária retroactiva.
O que poderia suceder é que, não havendo qualquer sentença judicial definitiva a reconhecer uma eventual situação de incapacidade da A., se verificasse que esta estivesse de facto incapacitada para reger a sua pessoa, para compreender o alcance e significado dos seus actos. Tal situação está prevista na lei e tem uma regulamentação própria, a ter lugar nos próprios autos, nos termos do art. 17º do C.P.C.
Ora, a A. esteve presente na tentativa de conciliação no dia 27/04/2022 e nenhuma dúvida se levantou aos presentes, designadamente à Sra. Juiz que presidiu à diligência, sobre a sua capacidade (nada consta da acta respectiva em sentido contrário, nomeadamente nada foi requerido nesse sentido pela mandatária do R., com poderes especiais para o representar).
E no processo nenhuma questão foi levantada, designadamente pelo R., nesse sentido, mesmo perante os factos que alegou na contestação, até 7 dias antes da data designada para a audiência de julgamento, quando apresentou o requerimento de suspensão da instância.
Mesmo nesse requerimento, o R. não faz alusão a qualquer questão respeitante à capacidade da A., nem concretiza o motivo pelo qual deve haver lugar à suspensão no caso concreto, limitando-se a invocar argumentos genéricos e de direito [“verifica-se que o que se discute na ação especial de acompanhamento de maior é uma causa prejudicial relativamente a estes autos, porquanto vai apreciar-se uma questão cuja resolução pode modificar a situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão deste pleito. Assim, visto que a ação agora intentada é causa prejudicial e a decisão a proferir naqueles autos irá influenciar a decisão a proferir nestes, com vista à economia e à coerência dos julgamentos entre duas ações pendentes, considerando a especial conexão entre ambas (…)”].
Ademais, ao contrário do que alega o recorrente, na acção de maior acompanhado não se pretende apurar da capacidade judiciária da A., designadamente para efeitos da presente acção.
Como já se disse, o escopo da acção de maior acompanhado é o de assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.
Além de que, tendo em conta que estamos perante uma acção de divórcio, o eventual decretamento do acompanhamento à A. nunca a impediria de instaurar esta acção, atento o que dispõe o art. 1785º, nº 2, do Código Civil: Quando o cônjuge que pode pedir o divórcio for maior acompanhado, a acção pode ser intentada por ele ou, quando tenha poderes de representação, pelo seu acompanhante, obtida autorização judicial.
Ou seja, quer o maior acompanhado por si só, quer o seu acompanhante que tenha poderes de representação e tenha obtido autorização judicial, podem instaurar acção de divórcio.
Aliás, sendo este um direito pessoal do indivíduo (está em causa a vertente da realização da pessoa e de livremente se poder desvincular de um casamento cujo vínculo está em ruptura, já que na vertente patrimonial os efeitos do divórcio resultam directamente da lei), o seu exercício nunca poderia ser restringido ao acompanhado, como até decorre expressamente do disposto no art. 147º do Código Civil, cuja enumeração do nº 2 é meramente exemplificativa.
Refira-se, a propósito, que na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), da qual são partes Portugal e a União Europeia, consta no seu art. 12º, nº 2, que os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspectos da vida, prevendo-se no art. 19º, al. a) que deve ser assegurado que as pessoas com deficiência têm a oportunidade de escolher o seu local de residência e onde e com quem vivem em condições de igualdade com as demais e não são obrigadas a viver num determinado ambiente de vida, e no art. 23º, nº 1, que os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efectivas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência em todas as questões relacionadas com o casamento, família, paternidade e relações pessoais, em condições de igualdade com as demais.
Portanto, é de concluir que a decisão que vier a ser proferida na acção de maior acompanhado não tem “virtualidade de uma efectiva e real influência” na presente acção, não podendo “concluir-se que a decisão desta depende incontornavelmente daquela”.
E que, sendo a “causa prejudicial” “aquela cuja decisão pode prejudicar a decisão de outra causa, do seu julgamento dependendo a decisão desta outra”, existindo “verdadeira prejudicialidade” “quando numa causa se discuta uma questão que é essencial para a decisão de outra” (cfr. Ac. da R.G. de 27/02/2020, publicada em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 8352/11.0TBBRG-A.G1), não se verifica que a acção de maior acompanhado instaurada pelo recorrente constitua causa prejudicial relativamente à acção de divórcio.
Sempre se dirá que ainda que assim não fosse, estavam no caso verificadas as duas excepções previstas no nº 2 do art. 272º do Código de Processo Civil para a não suspensão da instância nos presentes autos:
- a acção de divórcio encontrava-se já na fase de julgamento, a sete dias da data marcada para o início da audiência, quando foi requerida a suspensão, tendo a acção de maior acompanhado sido instaurada apenas na véspera do dia do requerimento, portanto tão adiantada aquela que os prejuízos da suspensão superariam as vantagens;- alegando o recorrente que peticionou o acompanhamento “por motivos de ordem psiquiátrica reportados, comprovadamente, ao ano de 2020”, resultando da contestação, apresentada em 23/05/2022, que imputa a esse mesmo período temporal as alterações no comportamento da A. e tendo a audiência de julgamento sido marcada em 05/07/2022, resulta existirem fundadas razões para crer que a acção de maior acompanhado foi instaurada no dia 19/09/2022 apenas para se obter a suspensão da instância dos presentes autos, obviando à realização da audiência de julgamento, posto que o recorrente não quer divorciar-se da A. e manifesta não aceitar esta pretensão da mesma.
Assim, verifica-se que não existe fundamento para decretar a suspensão da instância por existência de causa prejudicial, não merecendo provimento o recurso."
[MTS]
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