"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/09/2023

Jurisprudência 2022 (236)


Procedimento de injunção;
âmbito de aplicação


1. O sumário de RL 15/12/2022 (90114/21.4YIPRT.E1) é o seguinte:

I. A complexidade da causa de pedir do procedimento injuntivo não corresponde a um requisito legal que permita a invocação de erro na forma do processo, sobretudo quando, por via da oposição, a injunção se transmuta em processo comum.

II. Não se verifica erro na forma de processo quando a credora – companhia de seguros – apresenta requerimento injuntivo contra uma sociedade, tomadora do seguro de responsabilidade civil profissional, invocando o contrato de seguro, o contratualizado quanto ao acerto dos prémios de seguro, a falta de pagamento, o envio dos respetivos avisos de cobrança para pagamento dos valores acertados (capital e juros de mora vencidos) e a interpelação da tomadora para pagamento das quantias em dívida.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. A sentença recorrida concluiu pela existência de erro na forma do processo, porquanto e, em síntese, considerou que o regime processual previsto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, não é aplicável na situação retratada nestes autos, atenta a complexidade das questões suscitadas.

Assim, lê-se na sentença recorrida, na fundamentação dessa conclusão, o seguinte:

«Ora, no caso dos autos, atenta à causa de pedir e ao pedido formulado – condenação da ré no pagamento de uma soma de valores correspondentes a vários ajustes feitos no âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, calculados, em cada ano civil ou com a cessação do contrato, por aplicação de uma determinada taxa a um conjunto de remunerações pagas pela ré e comunicadas mensalmente à autora em folhas de férias, temos que o crédito invocado não se configura como o mero cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a € 15.000,00 (art.1º do diploma preambular do DL nº269/98), nem ao cumprimento de obrigações que emergem de transacções comerciais, isto é, aos pagamentos efectuados como remuneração de transações comerciais.

Não se trata, assim de uma mera transacção comercial, não estando em discussão o simples cumprimento de obrigações comerciais. O litígio consiste na discussão de uma matéria bem mais complexa referente a pagamentos (devidos ou não) de prémios variáveis em função de taxas de ajuste, cuja base contratual estipula múltiplas obrigações para ambas as partes, sobre o cumprimento das quais as partes estão em desacordo.

O processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade, como são as obrigações decorrentes de um contrato de seguro de responsabilidade profissional.

Nessa conformidade, a procedência de tal exceção dilatória inominada obsta ao conhecimento do mérito da causa e obsta ao prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização.

Pelo que, pelos fundamentos aduzidos, julgamos que a exceção dilatória detetada, afetando o prosseguimento da ação especial em que se transmutou o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigidos para a sua utilização, obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição do réu da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 576.º, ns. º 1 e 2, 577.º e 578.º do CPC.»

O entendimento sufragado pelo Tribunal a quo não pode ser corroborado pelas razões que de seguida concretizamos. [...]

O Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, aprovou o regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção.

A aplicação do procedimento de injunção aplica-se a duas situações, a saber: (i) quando estão em causa obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00; e (ii) obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05 (sendo este diploma aplicável a contratos celebrados após 01-07-2013, salvo as exceções previstas no artigo 14.º e 15.º deste diploma legal, e aos contratos anteriores, o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17-02), como resulta da conjugação dos artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 269/98 e artigo 7.º do Anexo a este diploma legal.

No caso em apreço, o procedimento de injunção tem na sua base uma obrigação emergente de transação comercial celebrada em 07-07-2014, ficando, assim, sob a alçada do citado Decreto-Lei n.º 63/2013.

Conforme estatui o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17/02.» (devendo a remissão para este diploma ser substituída pela remissão para o Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05- cfr. artigo 13.º, n.º 2, deste último diploma legal).

«transação comercial» encontra-se definida no artigo 3.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 62/2013, como correspondendo a “uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinadas ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração».

Por sua vez, o artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, estipula que «O atraso no pagamento de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor em dívida», seguindo após a dedução de oposição ou a tramitação do processo comum ou a ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos conforme se verifiquem os requisitos do n.º 2 ou do n.º 4 do mesmo artigo 10.º

Assim, e no que ora releva, por força do artigo 10.º, n.ºs 1, 2, e 4, conjugado com o artigo 2.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013, atento o valor do pedido, a natureza comercial da transação em causa, o facto da mesma não envolver consumidores, tendo sido deduzida oposição, o requerimento injuntivo passou a seguir a tramitação da ação comum.

Entende, todavia, a decisão recorrida que existe erro na forma do processo por ter a demanda sido iniciada como procedimento injuntivo considerando dois tipos de argumentos: (i) a complexidade da causa de pedir por não estar apenas invocada uma mera transação comercial, mas também se são devidos os acertos dos prémios variáveis em função dos critérios estabelecidos no contrato de seguro em causa, o que implicará a análise do clausulado do referido contrato; (ii) a desadequação deste tipo de procedimento a litígios que não seja tidos como litígios de massa como é prefigurado pelo legislador em ordem a que o credor de forma célere obtenha um título executivo.

Começando por analisar este último argumento, é certo que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98 menciona que a preocupação do legislador foi a criação de um regime que desse resposta rápida e célere a litígios de «baixa densidade» para «reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores», em relação a obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedam o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância, que muitas vezes não veem as ações contestadas.

Mas a verdade é que o articulado do diploma não restringiu, para além da limitação do valor, a sua aplicação a esse tipo de litígios, os chamados litígios de massa.

Pelo contrário, o diploma é abrangente na sua previsão, desde que estejam preenchidos os pressupostos da sua aplicação que se encontram plasmados no artigo 1.º do diploma e no artigo 7.º do anexo do diploma, permitindo, assim, que o credor lance mão do procedimento injuntivo independentemente de estarmos perante ditos litígios de massa.

Sendo certo que após a oposição, o procedimento transmuta-se e segue as formas assinaladas nos n.º 2 e 4 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, permitindo, inclusivamente, que o juiz convide as partes a aperfeiçoar os articulados, dando aqui espaço ao funcionamento do princípio da adequação previsto no artigo 547.º do CPC, de modo a eliminar algumas restrições que possam decorrer do formulário injuntivo quanto à alegação da causa de pedir.

Razão pela qual, se pode equacionar como vem sendo amplamente acolhido pela jurisprudência, sendo disso exemplo o Acórdão da Relação do Porto de 15-12-2021, que transformada a injunção em processo comum, não se verifica, no âmbito deste o alegado erro na forma do processo. [Proc. n.º 137748718.9YIPRT-P1 (Manuel Domingos Fernandes), em www.dgsi.pt]

Por outro lado, não sendo de descurar que estamos perante um procedimento célere e simplificado sobretudo na forma de introdução em juízo e no campo dedicada à identificação das partes e termos do litígio (artigos 9.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 269/98), havendo oposição, já não lhe é aposta a fórmula executória (desvanecendo-se, assim, o argumento da celeridade na obtenção de um título executivo), e a tramitação do processo é regulada pelos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma, preceitos que regulam a tramitação da ação comum, destacando-se a realização de audiência de julgamento onde são apresentadas as provas, e, sendo indispensável para a boa decisão da causa, o juiz pode determinar a realização de diligências, incluindo a pericial, suspendendo o julgamento.

Nestes termos, e em face de tudo o que vem sendo dito, o argumento mencionado em (ii) não é adequado à conclusão alcançada pelo Tribunal a quo para fundamentar a ocorrência de erro na forma do processo.

Quanto ao argumento mencionado em (i), ou seja, a complexidade da causa de pedir e das questões suscitadas pela oposição (que determinam que seja analisado o clausulado no contrato de seguro), a jurisprudência tem analisado a questão e, consistentemente, tem considerado que a complexidade da causa não corresponde a um requisito legal que permita a invocação do mencionado erro na forma do processo, sobretudo quando por via da oposição a injunção se transmuta em processo comum.

E assim tem considerado em situações em que a causa de pedir se consubstancia em variados contratos, mormente, contratos de prestação de serviço, como contrato de empreitada [---], de prestação de serviço de advocacia [---], contrato de conta-corrente onde eram debitados prémios de seguros vencidos e fluxos financeiros [---], compra e venda de veículo automóvel [---], incumprimento de pagamento de prémios de seguros no âmbito do seguro automóvel [---], falta de pagamento de fornecimentos de água [---], cobrança de despesas suportados pelo SNS com assistência a lesado em acidente de viação [---, incumprimento de contrato de mediação imobiliária [---], etc.

De fora do procedimento injuntivo ficam, efetivamente, as situações excluídas pelo artigo 2.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Decreto-Lei n.º 62/2013, ou seja, contratos celebrados com consumidores, os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e os pagamentos de indeminizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.

Assim, foi o próprio legislador que identificou e antecipou a potencial inadequação do procedimento injuntivo a determinado tipo de litígios excluindo-se da esfera daquele procedimento.

Paralelamente, ao definir o conceito de transação comercial, ao excluir a sua aplicação aos consumidores e a certas fontes geradoras de obrigações, delimitou o âmbito de aplicação do procedimento injuntivo arredando, assim, interpretações mais restritivas ou mais amplas dos requisitos consagrados na lei, com apelo a conceitos indeterminados como seja o da complexidade da causa.

Consequentemente, a complexidade que advenha da causa de pedir ou, na maioria das vezes, da oposição, não é fundamento para se afirmar que existe erro na forma do processo.

Sublinhando-se que a aceitar-se entendimento contrário sempre teria de se colocar a questão do que seria para este efeito complexidade do processo, já que se trata de um conceito indeterminado que carece de preenchimento em face ao caso concreto com as inerentes dificuldades e insegurança jurídica que decorrem de múltiplas situações tendencialmente idênticas.

Ademais, se a complexidade fosse aferida por via da oposição, o demandado poderia provocar o erro na forma do processo alegando matéria impertinente (ou pior), o que evidencia a irrazoabilidade deste tipo de solução.

Nesse sentido, são muito ponderadas as palavras de PAULO DUARTE TEIXEIRA, quando afirma que «(…) o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes.» [“Os pressupostos objetivos e subjetivos do procedimento de injunção”, in Revista Themis, VII, n.º 13, pp. 169-212.]

No caso presente, a Autora alegou a celebração com a Ré de um contrato de seguro de responsabilidade civil, no qual foram convencionados acertos do prémio de seguro, indicando a taxa de ajuste, o modo de cálculo dos valores acertados, as quantias liquidadas nos avisos, a sua correspondência a determinado período temporal, o não pagamento pela Ré, apesar das interpelações que lhe foram feitas, do capital em dívida e correspondentes juros vencidos, pedindo também o pagamento de juros vincendos, tudo como resulta do requerimento injuntivo e do requerimento retificativo do mesmo acima referido no Relatório deste acórdão.

Está, pois, em causa a efetivação de direitos de crédito de natureza pecuniária emergentes de relações contratuais comerciais, bem como os correspondentes juros de mora, cujo enquadramento fáctico-jurídico decorre da natureza do contrato celebrado, do respetivo clausulado e da natureza comercial da atividade desenvolvida pelas partes (excluindo-se, assim, a natureza de consumidores), pelo que não vislumbramos, salvo o devido respeito, que causa de pedir e o pedido não se enquadrem juridicamente nos pressupostos do processo de injunção por via do que dispõe o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, e artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2003, de 10-05.

Nestes termos, e em face de tudo o que vem sendo dito, a decisão recorrida não pode vingar, impondo-se a sua revogação e o subsequente prosseguimento da normal tramitação dos autos."

[MTS]