"Para melhor enquadramento da questão, passemos o olhar pelo tratamento da questão dado pelo legislador ao longo do tempo.
No regime do inventário constante do Código de Processo Civil de 1961, podendo os interessados dizer o que se lhes oferecesse quanto à relação de bens de bens ou à sua falta, no prazo para exame do processo, a falta de descrição podia ser acusada “posteriormente” ao prazo previsto no artigo 1340º, nº1 do CPC, para o efeito, mas o “arguente procurará convencer de que só teve conhecimento da existência dos bens na altura em que deduz a arguição”.
Tal previsão veio substituir o disposto no artigo 1379º-§ único do Código de 1939º, onde se dizia “em qualquer altura" [Na sua vigência a doutrina e a jurisprudência orientaram-se no sentido de o poderia ainda ser depois de proferido o despacho de partilha, chegando mesmo a sustentar-se que a reclamação podia deduzir-se até transitar em julgado a sentença homologatória dela, e depois do termo do próprio processo – Augusto Lopes Cardoso, “Partilhas Litigiosas”, Vol. I, Almedina, Janeiro de 2018, p. 713-714.], sendo que, a eliminação de tal expressão, não delimitando o momento temporal até ao qual é possível acusar a falta de relacionação, deixou em aberto a questão, aceitando a doutrina e a jurisprudência maioritárias que a reclamação poderia ser apresentada até ao trânsito em julgado da partilha [João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Reimpressão da 4ª ed. De 1990, Almedina, pp. 524-528, em especial nota 1535.]
A reforma do processo de inventário introduzida pelo DL 227/94, de 28 de setembro, continuou a prever a possibilidade de as reclamações à relação de bens poderem ser apresentadas “posteriormente”, com o aditamento de que “o reclamante será condenado em multa, exceto se demonstrar que a não pode oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável (nº6 do artigo 1348º).
Tal redação assim se manteve até à Lei nº 23/2013, de 5 de março – que procedeu à desjudicialização do processo de inventário, atribuindo a competência para a instauração e respetivos termos para os Cartórios Notariais –, que, ao determinar que as reclamações à relação de bens podem ainda ser apresentadas “até ao momento do início da audiência preparatória” (embora sob a condenação em exceto se demonstrar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável), lhes fixou pela primeira vez um limite temporal.
No regime anterior entendia-se que, em caso de reconhecimento da omissão de um bem no decurso do inventário, por força de acusação da falta da sua descrição com base no art. 1348º, ou na sequência de decisão “nos meios comuns”, isto é, seja qual for a fase em que o inventário se encontrasse, não se procedia a partilha adicional: “enquanto há possibilidades de incluir na primeira partilha bens cujo conhecimento surge no processo de inventário, muito embora o seu conhecimento aí advenha depois da fase da descrição – a v.g. adjudicações – deve procurar partilhar-se nesse inventário os aludidos bens, suspendendo-se, inclusivamente, os ulteriores termos do inventário para aí serem contemplados, estimados, licitados e partilhados conjuntamente com os restantes [Ac. TRL de 11.11.1939, sum in RJ 25-62, citado por Augusto Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Vol. III, 6ª ed. – 2015, p. 194.”].
Com o atual regime do processo de inventário, introduzido pela Lei 117º, 2019, de 13 de setembro, para além do recuo na tentativa de desjudicialização do processo, e da sua reintrodução no texto do Código de Processo Civil, houve a intenção expressa de aproximação do seu regime ao da ação declarativa e às regras gerais do processo nesta fase inicial dos articulados (que engloba a fase inicial dos articulados e a das oposições e verificação do passivo), na qual se há de concentrar a discussão das questões essenciais relevantes – admissibilidade do inventário, identificação dos interessados, identificação dos bens a partilhar, dívidas e encargos da herança [António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, p. 521.]
Dispõe o atual artigo 1104º, do Código de Processo Civil (CPC), sob a epígrafe “Oposição, impugnação e reclamação”:
1 - Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação:
a) Deduzir oposição ao inventário;
b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros;
c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações;
d) Apresentar reclamação à relação de bens;
e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança.
2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo.
3 - Quando houver herdeiros legitimários, os legatários e donatários são admitidos a deduzir impugnação relativamente às questões que possam afetar os seus direitos.”
No regime anterior, a dedução de oposição ao inventário, impugnação da legitimidade dos interessados, a competência do cabeça de casal e a invocação de quaisquer outras exceções dilatórias, eram sujeitam a tratamento distinto do que incidia sobre a reclamação à relação de bens.
A oposição ao inventário em sentido lato era consentida no prazo de 20 dias após a citação (artigo 30º da Lei nº 23/2013, de 5 de Março, e anterior artigo 1343º, do CPC), e apresentada a relação de bens, eram os interessados notificados de que podiam reclamar contra ela no prazo de 20 dias (art. 32º da Lei 23/2013) ou de 10 dias (artigo 1348º CPC), acusando a falta de bens que devem ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados ou arguindo qualquer inexatidão na descrição de bens que releve para a partilha.
Atualmente encontra-se previsto um prazo único de 30 dias para o exercício de todas as faculdades previstas nas als. a a e) do nº1 do artigo 1104º do CPC – a) deduzir impugnação ao inventário, b) impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; d) apresentar reclamação à relação de bens; e) impugnar os créditos e as dívidas da herança.
E, ao contrário do que constitui o regime regra na ação declarativa comum (artigo 569º, nº2), o prazo de 30 dias corre autonomamente para cada um dos interessados, sem que se possa socorrer do prazo que eventualmente se encontre ainda a correr para algum dos demais.
O regime atual afasta-se, ainda, do anterior ao eliminar de vez a possibilidade (prevista no nº6 do artigo 1348º do CPC e depois no nº5 do art. 32º) de as reclamações contra a relação de bens poderem ser apresentadas posteriormente (embora sob a condenação de multa, exceto se demonstrar que a não pode oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável).
De tal alteração, o primeiro olhar da doutrina maioritária vai no sentido de que o recurso de tal prazo perentório faz precludir o direito de apresentar reclamação à relação de bens.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, p.570.], sustentam que uma vez citados, os interessados têm o ónus de invocar e de concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportuno, em face dos factos alegados na petição inicial ou do que foi complementado pelo cabeça de casal, tendo o decurso do prazo de 30 dias efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas. Segundo tais autores, “contrariando a solução prevista no artigo 1348º do CPC 1961, a reclamação relativa à relação de bens não suporta o diferimento que tal regime permitia. Uma vez que os bens são relacionados pelo cabeça de casal e só depois se procede à citação dos interessados, facilmente se compreende que também tenha sido marcado um prazo perentório para o exercício do direito de defesa mediante reclamação, de modo que, uma vez exercido o direito do contraditório e produzidas as provas pertinentes, as questões atinentes ao ativo e passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados”.
Também Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego e Pedro Pinheiro Torres, sustentam que, no atual sistema, o momento das reclamações é necessariamente o previsto no nº1, sob pena de preclusão do direito de reclamar, ainda que, naturalmente, sem prejuízo da invocação de uma situação de superveniência (cfr. artigo 588º, nº2) [Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, p. 81.]
Por via do artigo 1104º, nº1 do CPC, ocorre a concentração de todos os meios de defesa, quer quanto à delimitação do objeto da partilha, quer quanto aos sujeitos por que a mesma irá ser repartida.
Visando a que as questões atinentes ao ativo e ao passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados, o legislador eliminou intencionalmente a possibilidade de reclamação contra a relação de bens, fora do prazo de 30 dias concedido a cada interessado ao abrigo do disposto no nº1, al. d), do artigo 1104º.
É certo que continua a prever no nº1 do artigo 1129º a possibilidade de partilha adicional – “Quando se reconheça, depois de feita a partilha, que houve omissão de alguns bens, procede-se a partilha adicional no mesmo processo” (em conformidade com o disposto no artigo 2122º do CC, que dispõe que a omissão de bens da herança não determinada a nulidade da partilha, mas apenas a partilha adicional dos bens omitidos).
O incidente de partilha adicional respeita aos casos em que, na partilha realizada no processo de inventário, tenham sido omitidos alguns bens, independentemente dos motivos que a isso conduziram [Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, p. 149.], ou seja, não é necessária a alegação da superveniência subjetiva ou objetiva).
Tal partilha processa-se por meio de um incidente cuja tramitação implica que sejam relacionados os bens omitidos (arts. 1097º, nº3, al. c) e 1098º), com audição dos interessados e tramitação subsequente, até à sentença homologatória da partilha, sendo praticados relativamente aos bens em falta, todos os atos que marcaram a descrição, avaliação e licitação, incluindo a partilha, na qual serão introduzidas as alterações pertinentes [António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, anotação ao artigo 1129º, p. 624.]
A falta de acusação da existência de determinado bem da herança no momento previsto no nº1 do artigo 1114º, não preclude, assim, o direito a fazê-lo no próprio processo de inventário, embora apenas através de incidente a processar após o transito em julgado da sentença homologatória da partilha.
Antes de tal momento e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior apenas se poderá verificar nos termos gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o artigo 588º do CPC [Neste sentido, cfr., António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe de Sousa, obra citada, p. 570, nota 14 ao artigo 1104º. Em sentido contrário, de que, embora essa possibilidade não tenha expressão no vigente regime de inventário – de acusação da omissão de um bem depois do termo do prazo para as reclamações (art. 1104º, nº1, CPC) e antes da prolação da sentença que homologue a partilha –, “a sua admissão, à vista do artigo 1129º, 1, não parece questionável para o limitado efeito de comunicar aos autos a descoberta de um bem que não fora relacionado pelo cabeça de casal”, se pronuncia JOÃO ESPÍRITO SANTO, “Inventário Judicial e Notarial”, AAFD L Editora, pp. 185-186.], ou seja, em caso de superveniência subjetiva – quando estejam em causa bens de que o reclamante apenas tomou conhecimento após o decurso do prazo legal para apresentar reclamação à relação de bens – ou superveniência objetiva – quando estejam em causa factos supervenientes, apenas ocorridos após o prazo legal [Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, dão como exemplo de superveniência objetiva, o cabeça de casal ter relacionado o prédio Y, o qual foi entretanto objeto de expropriação, devendo por isso ser substituído pelo montante indemnizatório recebido pelo mesmo – “Manual de Processo de Inventário à luz do Novo Regime Aprovado pela Lei nº 23/2013, de 26 de agosto e Regulamentado pela Portaria nº 278/2013, de 26 de Agosto, Coimbra Editora, p. 106.]
Como tal, na ausência de alegação de qualquer facto que justificasse a sua junção fora do prazo de 30 dias a contar da sua citação, a reclamação do interessado Apelante era de rejeitar, por extemporânea, tal como foi decidido pela 1ª instância."
[MTS]