"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/09/2023

Jurisprudência 2023 (17)


Audiência prévia;
dispensa judicial; audição prévia*


1. O sumário de RC 24/1/2023 (3689/21.3T8LRA.C1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

I - O NCPC passou a dispor, como regra, a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, nomeadamente quando o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artº 591 nº1 b) do C.P.C.).

II - O juiz pode dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e nas quais, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º do C.P.C.

III - Para além destes casos tipificados na lei, é ainda possível, por aplicação do princípio da adequação formal contido nos artºs 6 e 547 do C.P.C., a dispensa da audiência prévia, naqueles casos em que, sendo possível a decisão de mérito, as questões a decidir tenham sido já objecto de discussão nos articulados, desde que precedida de prévia consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, previsto no artº 3º, nº 3, do CPC.

IV - Não existindo oposição das partes à dispensa de audiência prévia, podem as alegações orais que nele se haveriam de produzir, ser substituídas por alegações escritas. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"a) Se a decisão proferida enferma de nulidade por preterição da audiência prévia, prevista no artº 591 do C.P.C.

É ponto assente que o NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor, como regra, a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, nomeadamente quando o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artº 591 nº1 b) do C.P.C.).

Esta regra comporta as excepções contidas nos artºs 592 e 593 do C.P.C., prevendo o primeiro dos preceitos acima mencionados, os casos em que a audiência prévia não tem lugar e o segundo, os casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.

Nos termos previstos no artº 593 do C.P.C., o juiz pode dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e nas quais, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º do C.P.C.

Destes preceitos se pode concluir que “quando a acção houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.

É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.

Preside a esta opção a intenção de facultar às partes a última oportunidade de exporem os seus argumentos para convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes. Esta última oportunidade encontra-se, por exemplo, nas acções não contestadas em que a revelia é operante, caso em que não obstante o réu não tenha apresentado contestação lhe é permitido apresentar alegações, nessa ocasião por escrito (artigo 567.º).” [Ac. da R. do Porto de 27/09/2017, proc. nº 136/16.6T8MAI-A.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida, disponível para consulta in www.dsgi.pt]

A obrigatoriedade de realização da audiência prévia, por contraponto à possibilidade de dispensa prevista no artº 508-B nº1 b) do C.P.C. (na versão anterior à Lei 41/2013), tem sido defendida de forma praticamente unânime pela nossa jurisprudência [---] e já assim foi defendido pela ora relatora no proc. nº 3054/17.7T8LSB-A.L1, em Acórdão de 08/02/18, proferido no T.R.Lisboa. [...]

A questão que ora se coloca respeita aos casos em que as questões a decidir tenham sido objecto de discussão nos articulados e o juiz entenda que o estado dos autos permite já o conhecimento do mérito da causa.

Admitimos que nestes casos, a dispensa da audiência prévia é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C., sem prejuízo de esta dispensa, a ponderar pelo Juiz, ser precedida de prévia consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC [Neste sentido, [Ramos de Faria et al.Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 494.], podendo as partes, neste caso requerer a marcação de audiência prévia (tendo em conta que mesmo nos casos previstos no artº 593 do C.P.C. o poderiam fazer).

Concede-se assim às partes uma derradeira oportunidade de discutirem não só a possibilidade entrevista pelo julgador de decisão imediata do mérito da causa, sem necessidade de averiguação de factos ainda controvertidos, como de discutirem o mérito da causa, face às pretensões e argumentos deduzidos nos articulados, podendo ainda suprir as imprecisões ou deficiências que eventualmente resultem dos articulados e que, de alguma forma, possam influir no resultado do litígio.

Essencial é que se mostre cumprido o exercício do contraditório, princípio constitucional de um Estado de Direito (cfr. artº 20 nº1 da Constituição) e princípio enformador do nosso ordenamento processual civil (cfr. artº 3 nº3 do C.P.C.).

Nos presentes autos, foi o R. notificado da intenção do Juiz a quo de dispensar a realização de audiência prévia, tendo-se conformado com essa intenção, porque nada requereu em contrário. Podendo nessa ocasião, ainda não existir despacho a advertir as partes de que se iria conhecer de mérito, o certo é que em momento anterior à decisão, foram as partes notificadas de que o juiz a quo entendia “ser possível desde já conhecer do mérito da causa” pelo que, e para evitar decisões surpresa, se concedia “o prazo de 10 dias, para as partes, querendo, alegarem o que tiverem por conveniente a esse propósito – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.”

O princípio da adequação processual permite ao magistrado substituir as alegações orais a proferir na audiência prévia, por alegações escritas. Essencial é que às partes seja concedido o direito ao contraditório, que nos presentes autos se mostra plenamente assegurado.

Não é assim possível invocar nulidade processual, pois a audiência prévia tem imanente o princípio do contraditório, plenamente assegurado neste caso. Acresce que, devidamente notificado, o R. nada disse, não requereu a realização desta audiência, não invocou a nulidade que ora vem arguir, manifestando com o seu comportamento, anuência a esta dispensa e à possibilidade de conhecer do mérito da causa. A invocação de nulidade processual neste recurso, constitui assim uma flagrante violação dos deveres de boa fé e de cooperação contidos no artº 6 do C.P.C."

3. [Comentário] Não se discorda da posição defendida no acórdão, mas, salvo melhor opinião, não é necessário fazer uso de qualquer poder de gestão processual.

O art. 593.º, n.º 1, CPC permite a dispensa da audiência prévia (nomeadamente) quando ao juiz cumpra proferir despacho saneador. Uma das funções (possíveis) do despacho saneador é conhecer do mérito da causa, desde que o estado do processo o permita (art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC). No entanto, se tiver havido dispensa da audiência prévia, há que assegurar, antes desse conhecimento, a audição prévia das partes (art. 3.º, n.º 3, CPC).

Como se vê, a solução está toda na lei, não sendo necessário recorrer a nenhum poder de gestão processual.

MTS