"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/09/2023

Jurisprudência 2023 (13)


Facto superveniente;
inutilidade superveniente da lide*


1. O sumário de RP 27/1/2023 (5465/21.4T8VNG-A.P1) é o seguinte:

I - O requerimento de reclamação contra a rejeição de um recurso, nos termos do art. 643º do C.P.C., não está sujeito à formulação de conclusões.

II - São de mero expediente as decisões que se traduzem numa mera ordenação de oportunidade sobre os termos do processo, em ordem à sua condução para os pertinentes momentos decisórios.

III - Não é de mero expediente o despacho em que o tribunal recusa a apreciação de uma pretensão de declaração de inutilidade superveniente da lide, com fundamento em encontrar-se esgotado o seu poder jurisdicional.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1- RELATÓRIO

No âmbito de uma acção de anulação de deliberações sociais, intentada por AA contra L..., S.A., foi proferida sentença, em 16/06/2022, que declarou a anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré, de 9 de Junho de 2021, no que diz respeito ao ponto 2 da respectiva ordem de trabalhos.

Face ao teor de tal sentença, foi convocada para o dia 2 de Setembro de 2022 assembleia geral destinada a renovar as ditas deliberações quanto aos mencionados pontos, tendo elas sido ratificadas em condições tidas por adequadas à superação dos vícios que haviam motivado a anulabilidade anteriormente reconhecida.

A 3 de Setembro de 2022, quando não tinha ainda transitado em julgado a sentença anterior, a ré veio aos autos invocar o nº 2 do art. 62º do CSC, conjugadamente com o disposto na al. e) do art. 277º do CPC, alegando a verificação de uma circunstância que implicava a inutilidade superveniente da lide, qual seja a existência de novas deliberações que tornavam inútil a afirmação da anulabilidade das deliberações de 9/6/2021. E requereu a extinção da instância.

Sobre esse requerimento, a 22/9/2022, recaiu despacho com o seguinte teor:

“Indefiro o requerido, uma vez que, tendo sido proferida sentença, mostra-se esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.º 1, do CPC).”[...]

3- FUNDAMENTAÇÃO

É útil ter presente que o objecto da presente reclamação é o despacho de 3/11/2022.

Este despacho rejeitou o recurso oposto à decisão que indeferiu o pedido de declaração de inutilidade da lide, após sentença que declarara a anulação de uma deliberação social, por ter sido substituída a deliberação anulada ainda antes do trânsito em julgado dessa sentença. Nele se disse: “Indefiro o requerido, uma vez que, tendo sido proferida sentença, mostra-se esgotado o poder jurisdicional (art. 613º, n.º 1, do CPC).”

Entendeu o tribunal que este seu despacho é irrecorrível, por ser de mero expediente e por ter, entretanto, transitado em julgado a referida sentença.

Neste contexto, não cabe aqui aferir da qualidade da decisão que rejeitou declarar a inutilidade da lide. O que importa é verificar se esse despacho se deve ter, ou não, por irrecorrível, designadamente em função dos fundamentos para tal invocados: ser de mero expediente; ter entretanto transitado em julgado a sentença de anulação da deliberação social.

Dispõe o art. 630º, nº 1 do CPC que são irrecorríveis os despachos de mero expediente.

Por sua vez, o nº 4 do art. 152º do CPC dispõe: “Os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes.

Assim, são de mero expediente as decisões que se traduzem numa mera ordenação de oportunidade sobre os termos do processo, em ordem à sua condução para os pertinentes momentos decisórios. Os despachos de mero expediente não têm a virtualidade de dispor sobre a relação processual ou substantiva estabelecida entre as partes, conferindo ou rejeitando direitos processuais ou substantivos, pois que apenas acautelam o curso da respectiva discussão de forma a que esta possa culminar na decisão que é pedida ao tribunal.

No caso, a ora reclamante L..., S.A., que fora destinatária de uma sentença de anulação de deliberações aprovadas na sua Assembleia Geral invocou a ocorrência de um facto ulterior, que considerava apto a fazer extinguir a acção, prejudicando a sobrevivência da própria sentença, por a tornarem inútil, entendendo que estava a tempo de o fazer acontecer.

O tribunal, considerando esgotado o seu poder jurisdicional, recusou apreciar essa pretensão, isto é, a apreciar a relevância do facto alegado para inutilizar a sentença proferida. Com ele, rejeitou o direito que a L..., S.A. entendia ter a eliminar a sentença proferida, por a ter tornado inútil e o ter feito a tempo, por essa sentença ainda não ter transitado em julgado.

É, assim, claro que um tal despacho não é de mero expediente, pois que dispôs directamente sobre a pretensão da ré L..., S.A., não se limitando a providenciar por qualquer tramitação em ordem à sua ulterior apreciação.

Não é, pois, à luz da sua qualificação como de mero expediente que pode rejeitar-se a impugnação do despacho de 22/9/2022.

Mas afirma ainda o tribunal a quo que este despacho também não pode ser objecto de recurso porque, entretanto, transitou em julgado a sentença de 16/6/2022.

Pressupõe esta afirmação que, estando definitivamente consolidada na ordem jurídica aquela sentença que decretou a anulação de deliberações sociais, não tem viabilidade a pretensão da ré de a ver cair por inutilidade da lide, o que prejudica o propósito do recurso da decisão que rejeitou apreciar essa mesma inutilidade.

Não tem, porém, razão o tribunal a quo, neste seu entendimento: é que se for pertinente e oportuno o facto determinante da inutilidade da lide, tal como invocado pela ré, a sentença ficaria prejudicada e não haveria sequer de transitar em julgado, antes desaparecendo da ordem jurídica antes de aí se consolidar. Por isso, a questão da eventual inutilidade tem de resolver-se por se situar logicamente antes do trânsito em julgado da sentença, pois que a reconhecer-se razão à ré esse trânsito em julgado não se consumaria.

Por conseguinte, contra essa pretensão não pode argumentar-se que a sentença transitou entretanto em julgado, pois que a pretensão da ré é logicamente anterior e, a proceder, seria apta a prevenir esse trânsito."

*3. [Comentário] Apenas uma breve nota.

O juiz a quo não podia invocar o esgotamento do poder jurisdicional, dado que o que lhe foi solicitado pela Ré foi que apreciasse, não o mesmo que tinha apreciado na sentença entretanto proferida e ainda não transitada, mas uma questão superveniente: a inutilidade da lide pela circunstância de a decisão anulada ter sido, entretanto, renovada.

MTS