"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/09/2023

Jurisprudência 2023 (11)


Causa de pedir; 
ampliação; factos supervenientes


I. O sumário de RE 12/1/2023 (1422/21.9T8LLE-A.E1) é o seguinte:

1 – É complexa a causa de pedir que consiste na celebração de um contrato de empreitada entre as partes, na execução defeituosa da obra pelo empreiteiro e nos prejuízos daí resultantes para o dono da obra.

2 – Integram a referida causa de pedir os concretos defeitos da obra alegados pelo dono desta, pelo que a alegação superveniente de outros defeitos implica uma ampliação da mesma causa de pedir.

3 – Essa ampliação da causa de pedir, com a concomitante ampliação do pedido, pode ser efectuada através de articulado superveniente, uma vez verificados os pressupostos estabelecidos no artigo 588.º do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afimra-se o seguinte:

"Iniciamos a fundamentação deste acórdão indagando se o articulado superveniente apresentado pelo recorrente altera ou amplia a causa de pedir da reconvenção.

Esta causa de pedir é complexa, sendo constituída pela celebração de um contrato de empreitada entre recorrente e recorrida, o alegado cumprimento defeituoso do mesmo contrato por parte da segunda, cumprimento defeituoso esse traduzido em concretos vícios da obra efectuada (reabilitação de um edifício), e os prejuízos daí alegadamente resultantes. Estamos perante os pressupostos da responsabilidade civil contratual, invocada como fundamento jurídico da reconvenção. Apenas na hipótese de todos eles se provarem, a pretensão da recorrente poderá proceder.

Portanto, os concretos defeitos da obra alegados na contestação/reconvenção integram a causa de pedir desta. A causa de pedir não é constituída, além do mais que referimos, por uma genérica existência de defeitos da obra, entendimento este que contrariaria a exigência de concretização factual decorrente do sistema de substanciação consagrado no nosso Direito Processual Civil. Em vez disso, é constituída pelos concretos defeitos da obra alegados pela parte que, com fundamento neles, deduz uma pretensão.

Decorre de quanto acabámos de afirmar que se a parte, posteriormente à alegação de determinados defeitos, vier alegar outros, estará a ampliar a causa de pedir. Não é correcto dizer-se que a causa de pedir permanece intocada perante uma invocação de novos defeitos na realização da obra.

Sendo assim, a ampliação do pedido de condenação da recorrida no pagamento de uma indemnização com fundamento nos defeitos na execução da obra alegados no articulado superveniente ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 265.º do CPC nunca seria admissível. A isso se oporia, desde logo, o regime, marcadamente restritivo, estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo. Tal ampliação do pedido, porque assenta numa ampliação da causa de pedir decorrente de factos supervenientes, tem de passar pelo crivo do artigo 588.º do CPC.

O n.º 1 do artigo 588.º do CPC estabelece que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. O n.º 2 do mesmo artigo define o que são factos supervenientes, considerando como tais, por um lado, os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes (superveniência objectiva) e, por outro, os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos (superveniência subjectiva).

No caso dos autos, é pacífico que os factos alegados no articulado superveniente que o recorrente apresentou não são objectivamente supervenientes. Trata-se de alegados defeitos decorrentes de uma deficiente execução da obra por parte da recorrida, logo anteriores à própria propositura da acção. Aquilo que está em discussão é se tais factos podem ser considerados subjectivamente supervenientes.

A parte final do n.º 2 do artigo 588.º do CPC estabelece que, se os factos alegados forem subjectivamente supervenientes, deve produzir-se prova dessa superveniência. Para se poder produzir tal prova, têm de ser alegados os factos dos quais, no entendimento da parte que apresente o articulado, resulte aquela superveniência.

Entendeu-se, no despacho recorrido, que a recorrente não alegou e não ofereceu prova do momento em que tomou conhecimento dos defeitos da obra descritos no articulado superveniente. Mais, entendeu-se que tudo aponta no sentido de que a apresentação tardia do articulado é imputável à recorrente, atenta a natureza e a ostensividade dos defeitos da obra ali alegados. Com base em tal argumentação, concluiu-se pela inadmissibilidade legal do articulado superveniente, o que determinou o indeferimento liminar deste.

Não acompanhamos este entendimento.

No articulado superveniente, o recorrente alegou que, na sequência de contactos de condóminos que afirmavam terem notado a degradação do aspecto do edifício, a administração pediu a um técnico especializado que se deslocasse ao local a fim de identificar e avaliar as queixas apresentadas (artigo 3.º) e que, após exame, mais precisamente em 17.02.2022, o referido técnico apresentou à administração um relatório em que descreveu defeitos adicionais da obra (artigo 4.º). Está aqui suficientemente alegada a superveniência do conhecimento dos defeitos em causa por parte do condomínio. Por outro lado, o recorrente apresentou meios de prova dessa superveniência, ao juntar o relatório em causa, indicar que foi a administração do condomínio quem o solicitou e em que circunstâncias o fez e identificar o técnico que o elaborou. Tudo isto constitui matéria acerca da qual o tribunal a quo poderá proceder às indagações que entender.

Ao contrário do tribunal a quo, consideramos que nada aponta no sentido de que a apresentação do articulado em questão seja tardia por negligência do recorrente. Por um lado, muitos dos defeitos alegados no articulado superveniente não são ostensivos. Os repasses de água decorrem de defeitos que, normalmente, são de difícil detecção a olho nu e apenas se manifestam quando chove. A oxidação de elementos metálicos só se verifica com o decurso do tempo. Fissurações num edifício também são dificilmente visíveis, a menos que assumam dimensões anormais ou que se proceda a uma verificação minuciosa daquele com vista à sua detecção. Por outro lado, deve ter-se em consideração que estamos perante um pedido reconvencional, deduzido dentro do prazo da contestação, que o condomínio se encontra representado pela empresa que o administra e que esta só toma conhecimento dos defeitos que se manifestam nas fracções autónomas na sequência de denúncia dos proprietários destas. Foi na sequência dessas denúncias que a administração, diligentemente, contratou um técnico para verificar os problemas denunciados e elaborar um relatório dessa verificação, junto com o articulado superveniente. Tudo isto corresponde àquilo que é a normalidade da vida, não havendo fundamento para apontar qualquer falta de diligência ao recorrente.

A relevância dos factos alegados para a boa decisão da causa não está em discussão no presente recurso.

Decorre do exposto que inexiste fundamento para o indeferimento liminar do articulado superveniente que o recorrente apresentou, pelo que o segmento do despacho do tribunal a quo que foi objecto de recurso deverá ser revogado. O referido articulado deverá ser liminarmente admitido, cumprindo o tribunal a quo a tramitação subsequente."

[MTS]