"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2024

Jurisprudência 2023 (160)


Seguro de responsabilidade civil; pluralidade de lesados;
intervenção principal*


1. O sumário de RC 12/9/2023 (4872/22.0T8VIS-A.C1) é o seguinte:

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. No plano ativo, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do mesmo sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas. Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho sem os demais.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, com a presença do responsável primário, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A Ré Seguradora, responsável secundária, apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei deseja, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, sendo caso de contitularidade do direito indemnizatório.

Não ocorre esta contitularidade nos direitos dos lesados.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em certo dia, um cavalo da 1ª Ré abalroou várias pessoas, ferindo-as.

O Autor, uma dessas pessoas, intentou ação contra a detentora do animal e contra a seguradora desta, pedindo uma indemnização pelos danos que sofreu.

O seguro celebrado entre as Rés é facultativo e está limitado a 50.000,00€.

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

No plano ativo, o dos lesados, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas.

Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho, sem os demais.

A ação regula a relação entre o lesado e o lesante, definindo o direito de indemnização do primeiro, direito (personalizado) que é diferenciado dos direitos indemnizatórios dos demais lesados.

A intervenção da seguradora é feita para definir a sua responsabilidade garantística, não diretamente para com os lesados, mas para com a sua segurada, até ao limite do capital seguro. Para além deste, continua a vigorar a responsabilidade primária do lesante, que pode ser condenado em valor superior.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A norma regula a posição da seguradora quando o segurado responder perante vários lesados.

A norma não regula a posição do responsável primário.

Como a responsabilidade (secundária) da seguradora está limitada, a lei impõe, quanto a ela, e definida a responsabilidade primária, um rateio proporcional.

Este deverá ser acautelado com a pessoa segurada.

A limitação do capital não existe para a 1ª Ré, a responsável primária.

Também não existe o risco de a seguradora ser chamada a pagar quantia superior à do capital seguro. Relativamente a este, a seguradora responde perante a segurada.

Para se estabelecer qual a proporção do capital seguro que cabe a cada um dos lesados não é necessário, previamente, nesta ação, apurar a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados.

A questão não respeita a esta ação, sendo respeitante à seguradora. 

A necessidade de rateio não influencia ou contraria a decisão relativa a cada lesado, ou seja, não é por força daquele que a indemnização de cada lesado é limitada ao capital seguro ou ao proporcional dele.

A condenação eventual da 2.ª Ré poderá ser feita com menção das eventuais limitações contratuais (o capital seguro, a franquia ou outras).

Quanto ao efeito útil normal da decisão, ele consegue-se com a regulação da responsabilidade primária do lesante perante o Autor, lesado, sem que a regulação relativa aos demais lesados interfira naquela.

A limitação de que beneficia a seguradora também não interfere naquelas regulações. Definidas as indemnizações dos lesados, o que pode ser feito de diferentes formas e processos, caberá à seguradora, no que respeita aos 50 mil euros, acautelar um eventual rateio no seu pagamento.

(O caso regulado no acórdão do STJ de 02/06/2016, no processo 3987/10, é relativo ao Fundo de Garantia Automóvel, único Réu, com responsabilidade limitada.)

Pelo exposto, não existe no caso um litisconsórcio necessário.

Sendo assim, a Ré Seguradora apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei lhe impõe, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, em caso de contitularidade do direito indemnizatório.

No caso, apenas está em causa essa norma.

E, então, não vemos que exista esta contitularidade no direito indemnizatório.

O que existe, potencialmente, são diferentes direitos indemnizatórios pertencentes a diferentes titulares. Não há um direito pertencente a vários titulares.

Os direitos são exercidos contra o lesante sem limitações de capital.

O rateio e o capital seguro não impõem qualquer unificação aos direitos."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se do decidido no acórdão da RC.

b) O art. 142.º LCS (DL 72/2008, de 16/4) estabelece, no âmbito do seguro por responsabilidade civil, o seguinte

"1 - Se o segurado responder perante vários lesados e o valor total das indemnizações ultrapassar o capital seguro, as pretensões destes são proporcionalmente reduzidas até à concorrência desse capital.

2 - O segurador que, de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuar o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultar do disposto no número anterior, fica liberado para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro."

No caso concreto, um cavalo provocou um acidente do qual resultaram vários lesados. Do que se refere no acórdão, percebe-se que a acção foi proposta contra o proprietário do cavalo e contra a companhia seguradora deste proprietário. Esta demandada requereu a intervenção principal provocada dos demais lesados no acidente. A RC confirmou a decisão da 1.ª instância de indeferimento da intervenção requerida.

c) Com a devida consideração, o acórdão padece de dois lapsos.

Um primeiro é o de concluir que, como não há nenhuma contitularidade do direito indemnizatório, não se justifica a intervenção dos outros lesados. A premissa é correcta, mas não o é a conclusão. Daquela premissa resulta efectivamente que não se pode verificar um litisconsórcio necessário entre os vários lesados, mas dela não resulta que não se verifique uma situação de coligação necessária.

A coligação é uma modalidade do litisconsórcio, dado que, além da pluralidade de partes activas ou passivas, há uma pluralidade de pedidos distribuídos por cada um dos autores ou réus (art. 36.º, n.º 1, CPC). Assim, ainda que pudesse ser discutível a aplicação do disposto no art. 316.º, n.º 3, al. b), CPC, era indiscutível a aplicação do n.º 1 do mesmo preceito.

d) Para além destas considerações, há um aspecto que devia ter sido considerado pela RC. É este: é indiscutível que a companhia de seguros só responde até ao limite do capital seguro; se não é admitida a intervenção dos demais lesados na presente acção, como é que a companhia de seguros pode opor aos lesados não intervenientes o pagamento que fez ao lesado que propôs a acção?

A dificuldade é patente. Dado que o caso julgado da decisão proferida na presente acção não é oponível aos outros lesados dela ausentes, qualquer destes lesados vai poder argumentar que tem direito à reparação total dos danos e que lhe é completamente indiferente o que a companhia de seguros pagou a qualquer outro dos lesados.

Tenha-se presente que o problema em análise no acórdão não tem apenas uma vertente interna entre o segurado e a companhia de seguros. O problema tem também, naturalmente, uma vertente externa, dado que também respeita à relação entre a companhia de seguros e cada um dos lesados.

Esta vertente externa é explícita no disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS. No caso concreto, a companhia de seguros não desconhece a existência de outros lesados, pelo que nunca poderá invocar que, 
de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuou o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultaria do rateio e, por isso, nunca poderá invocar que fica liberada para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro.

e) Em suma: a intervenção principal provocada dos demais lesados era essencial para que, no que respeita à responsabilidade da companhia de seguros, se pudesse verificar o rateio a que se refere o art. 142.º, n.º 1, LCS e era igualmente indispensável para que essa companhia pudesse obter uma decisão com força de caso julgado contra todos os lesados, possibilitando-lhe opor, nos termos do disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS, a cada um desses lesados o que pagou a cada um dos outros.

MTS


Jurisprudência europeia (TJ) (304)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Regulamento (UE) 2015/848 — Processos de insolvência — Processo de insolvência principal na Alemanha e processo de insolvência secundário em Espanha — Impugnação da relação de bens e da lista de credores apresentadas pelo administrador da insolvência no processo de insolvência secundário — Classificação dos créditos dos trabalhadores — Data a ter em conta — Transferência de bens situados em Espanha para a Alemanha — Composição do património de um processo de insolvência secundário — Parâmetros temporais a tomar em consideração


TJ 18/4/2024 (C‑765/22, Luis Carlos et al./ Air Berlin, e C‑772/22, Victoriano et al. /Air Berlin et. al.) decidiu o seguinte:

1)      Os artigos 7.° e 35.° do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, em conjugação com o considerando 72 deste regulamento,

devem ser interpretados no sentido de que:

a lei do Estado de abertura do processo de insolvência secundário apenas se aplica à situação dos créditos constituídos após a abertura desse processo, e não à situação dos créditos constituídos entre a abertura do processo de insolvência principal e a abertura do processo de insolvência secundário.

2)      O artigo 3.°, n.° 2, e o artigo 34.° do Regulamento 2015/848,

devem ser interpretados no sentido de que:

a massa dos bens situados no Estado de abertura do processo de insolvência secundário é unicamente constituída pelos bens que se encontram no território desse Estado‑Membro no momento da abertura desse processo.

3)      O artigo 21.°, n.° 1, do Regulamento 2015/848

deve ser interpretado no sentido de que:

o administrador da insolvência do processo de insolvência principal pode transferir os bens do devedor para fora do território de um Estado‑Membro diferente do do processo de insolvência principal quando tem conhecimento da existência, por um lado, de créditos laborais detidos por credores locais no território desse outro Estado‑Membro, reconhecidos por decisões judiciais, e, por outro, de um arresto de bens decretado por um órgão jurisdicional competente em matéria de trabalho deste último Estado‑Membro.

4)      O artigo 21.°, n.° 2, do Regulamento 2015/848

deve ser interpretado no sentido de que:

o administrador da insolvência do processo de insolvência secundário pode intentar uma ação revogatória contra um ato praticado pelo administrador da insolvência do processo de insolvência principal.

29/04/2024

Jurisprudência 2023 (159)


Responsabilidade contratual;
legitimidade processual*


I. O sumário de RG 10/7/2023 (1488/22.4T8BRG.G1) é o seguinte:

1- Mediante o pressuposto processual de legitimidade exige-se que para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo autor na petição inicial, em regra, atenta essa relação jurídica delineada na petição inicial, autor e réu sejam as “partes exatas” dessa relação jurídica, isto é, que atentos os factos constitutivos do direito a que se arroga titula o autor na petição inicial e por ele aí alegados, de onde faz derivar/assentar o pedido, de acordo com a lei substantiva abstratamente aplicável a essa relação jurídica (independentemente de o autor vir ou não a fazer prova desses factos que alega), de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis que decorram dessa lei substantiva, o autor seja o titular do direito a que se arroga titular naquele articulado inicial e de onde faz derivar o pedido que nele aí formula, e o réu seja a pessoa que deverá opor-se à procedência do pedido por aquele formulado, por ser a pessoa cuja esfera jurídica será diretamente atingida pela procedência desse pedido.

2- Em ação intentada por condómino contra o vendedor de fração, em que o autor, com fundamento em incumprimento do contrato de compra e venda celebrado decorrente da fração que lhe foi vendida pelo réu apresentar defeitos ou desconformidades decorrentes de no interior dessa fração ocorrerem infiltrações de água provinda da parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, pede a condenação do réu a reparar os estragos causados no interior da fração e a executar as obras na parede exterior do edifício (parte comum), de modo a eliminar a origem de tais infiltrações e, bem assim, a compensá-lo pelos danos não patrimoniais sofridos, autor e réu dispõem de, respetivamente, legitimidade ativa e passiva para essa ação.

3- É que, de acordo com uma corrente jurisprudencial, a circunstância da compra e venda ter por objeto uma fração autónoma integrada em edifício constituído em propriedade horizontal, não isenta o vendedor de responder perante o comprador, a título de responsabilidade contratual, com fundamento no instituto de venda de coisa defeituosa, designadamente, nos termos do art. 914º do CC, ainda que os vícios apresentados na fração ocorram ou tenham a sua origem ao nível das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, não podendo o vendedor invocar contra o comprador quaisquer limitações quanto às decisões ou à execução de obras nas partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal que decorram do regime da propriedade horizontal, por forma a eximir-se à sua responsabilidade contratual perante o comprador da fração.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O apelante [comprador] instaurou a presente ação contra a apelada [vendedora] pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa desta, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a apelada a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do apelante estima em € 3.300,00; ou, caso a apelada não proceda às obras referidas, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as mesmas e pagar o custo destas e, bem assim, que, em todo o caso, se condenasse a apelada a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos.

Como causa de pedir de tais pretensões alegou o apelante ter celebrado, em 29 de julho de 2019, com a apelada um contrato de compra e venda mediante o qual esta lhe vendeu uma fração autónoma sita num prédio constituído em propriedade horizontal, destinada à sua habitação e onde este, desde então, reside efetivamente, e o incumprimento desse contrato por parte da última, decorrente da fração vendida apresentar defeitos ou desconformidades na parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal, que determinam que ocorram infiltrações de água pluvial nas paredes e teto de um quarto da fração comprada, vícios esses que já se verificavam à data da celebração do contrato de compra e venda, mas que a apelada (vendedora e Ré) lhe ocultou, tornando a fração destituída das qualidades normais de uma fração destinada à habitação e causando-lhe prejuízos não patrimoniais, cuja compensação reclama. [...]

Imputa o apelante erro de direito ao assim decidido, asseverando que “o tribunal a quo, na sua decisão, ignorou a responsabilidade contratual da ré invocada pelo autor, resultante do não cumprimento do contrato de compra e venda de imóvel, bem como o pedido da condenação da Ré na reparação dos vícios do imóvel, ou no pagamento dos respetivo custos, assim como a indemnização por danos morais” e, bem assim, que “ não tivesse o Tribunal a quo ignorado o que se alega, verificaria o interesse direto do autor em demandar e o interesse direto da Ré em contradizer, decidindo em conformidade pela improcedência da alegada ilegitimidade passiva da Ré”.

Vejamos se assiste razão ao apelante para os erros de direito que assaca à decisão recorrida. [...]

Mediante o pressuposto processual da legitimidade exige-se que, para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida que lhe é submetida pelo autor a apreciação e a decisão, julgando a ação procedente ou improcedente, que naquele concreto processo figurem como autor e como réu as “partes exatas” dessa relação jurídica controvertida submetida pelo autor ao tribunal. [...]

De acordo com os n.ºs 1 e 2 do art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tenha interesse direto em demandar, o que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação; e o réu é parte legitima quando tenha interesse direto em contradizer, o que se exprime pelo prejuízo que da procedência da ação lhe advenha. E, nos termos do n.º 3, desse art. 30º, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Significa isto que, de acordo com os comandos legais que se acabam de enunciar, para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, terá, em sede de pressuposto processual de legitimidade, que considerar, exclusivamente e em regra (“na falta de indicação da lei em contrário”), a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, atentos os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) nela delineados por aquele e, bem assim, terá, em seguida, de recorrer ao direito substantivo para verificar se, em abstrato (isto é, independentemente da prova dos factos descritos na petição inicial constitutivos do direito de que o autor aí se arroga titular e de onde faz derivar o pedido),  em função dessa relação jurídica material controvertida que delineou nesse articulado fundamentador da ação, o autor é efetivamente a pessoa a quem a lei substantiva reconhece o estatuto de parte legítima para discutir em juízo o direito a que aquele se arroga titular, atentos os factos constitutivos desse direito que alegou naquele articulado inicial (no pressuposto de os vir a provar), por ser o titular incontestado do direito em causa e, bem assim, se foi demandado como réu a pessoa que, de acordo com a lei substantiva, por referência a essa mesma relação jurídica delineada na petição inicial, detém essa qualidade jurídica, por ser a pessoa que tem interesse direto em contradizer, por ser aquele cuja esfera jurídica é diretamente atingida por essa pretensão caso esta seja deferida. [...]

Destarte e em suma, de acordo com o comando do n.º 3 do art. 30º do CPC, para se aferir do pressuposto processual de legitimidade passiva e ativa, tem que se atender, por norma – “salvo disposição da lei em contrário” -, exclusivamente à relação jurídica material controvertida tal como esta vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial e indagar se, no pressuposto dos factos que por aquele aí vêm alegados como sendo constitutivos do direito a que se arroga titular e de onde faz derivar o pedido, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, o autor é o titular do direito que pretende exercer na ação e de onde faz derivar/assentar o pedido, caso em que se concluirá pela respetiva legitimidade ativa; e, por outro lado, verificar se a pessoa por ele demandada, ou seja, contra quem formula a pretensão que pretende que o tribunal lhe reconheça (pedido), é de facto a pessoa que, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, é aquela contra essa pretensão deve ser dirigida por ser aquela cuja esfera jurídica é diretamente atingida em caso de deferimento dessa pretensão. [...]

Significa isto que o legislador nacional, na esteira do que já era o entendimento jurisprudencial dominante, mediante a consagração do n.º 3 do art. 30º CPC, em que ordena que se atenda, em princípio, à relação jurídica material controvertida tal como esta é delineada ou configurada pelo autor na petição inicial, pôs termo à discussão clássica entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela tese deste último autor, ao estatuir que ao apuramento da exceção de legitimidade ativa e passiva apenas interessa, por regra, a relação jurídica material controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, onde se lê: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redação que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.].

Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, compulsada a petição inicial, as pretensões que o apelante nela formula contra a apelada consistem na condenação judicial desta a realizar, no prazo de sessenta dias, as obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos discriminados na petição inicial, consistentes na reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, da fração que esta lhe vendeu em 29 de julho de 2019, por via das infiltrações de água pluvial que se introduzem nesse quarto, através da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração, bem como, a realizar as obras de isolamento dessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por forma a evitar que essas infiltrações se continuem a introduzir nesse quarto da fração, bem como, a condenar a apelada a pagar-lhe as quantias necessárias à execução dessas obras caso não as execute dentro desse prazo de sessenta dias e, bem assim, a pagar-lhe a quantia de 1.500,00 euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, fundam-se, de acordo com a facticidade alegada pelo apelante na petição inicial, no alegado incumprimento pela apelada, na qualidade de vendedora, do contrato de compra e venda celebrado em 29 de julho de 2019 com o apelante, mediante o qual vendeu ao último a dita fração, mais concretamente, no instituto da venda de coisa defeituosa, a que aludem os arts. 913º e ss. do CC e o regime jurídico do D.L. n.º 67/2003, de 08/04, na redação que lhe foi dada pelo D.L. n.º 84/2008, de 21/05, por ser o que se encontrava em vigor em 29/07/2019, data da celebração do contrato de compra e venda mediante o qual a apelada vendeu ao apelante a fração objeto dos autos, fundando-se, portanto, as pretensões (pedido) deduzidas nos autos pelo apelante no instituto da responsabilidade contratual.

Dúvidas também não subsistem [de] que a fração que o apelante alega ter comprado ao apelante se situa em prédio que refere expressamente, na petição inicial, encontrar-se constituído em regime de propriedade horizontal e que as infiltrações que o mesmo alega verificarem-se no quarto dessa fração provêm da parede exterior desse edifício constituído em regime de propriedade horizontal.

Conforme decorre do art. 1420º do CC, na propriedade horizontal concorrem dois direitos distintos, um de propriedade singular, na medida em que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence, e um direito de compropriedade, o qual incidente sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (n.º 1), sendo ambos esses direitos incindíveis, de modo que nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem sendo lícito aos condóminos renunciar à parte comum como meio de se desonerarem das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (n.º 2). [...]

O direito de compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal no qual se situa a fração de que é proprietário exclusivo encontra-se sujeito ao regime jurídico da compropriedade enunciado nos arts. 1403º a 1413º do CC, com as especialidades próprias previstas nos arts. 1421º, 1424º, 1427º e 1430º a 1438º-A do CC. [...]

Entre as partes de edifício constituído em propriedade horizontal com natureza imperativamente comuns contam-se, além do mais, “as paredes mestras e todas as partes restantes do edifício que constituem a estrutura do prédio”, de que fazem parte as paredes exteriores do edifício constituído em propriedade horizontal, dado que essas paredes exteriores integram naturalmente a estrutura do edifício constituído em propriedade horizontal, ou seja, tal como decidido pela 1ª Instância, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a parede exterior do edifício de onde provêm as alegações infiltrações que se infiltraram, e continuarão a infiltrar-se enquanto essa parede exterior do edifício não for reparada, no quarto da fração que comprou à apelada é uma parte imperativamente comum.

Quanto às partes imperativamente comuns, onde, reafirma-se, se integra a parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal de onde, de acordo com a alegação do apelante, provêm as infiltrações de água pluvial que se introduzem no quarto que integra a fração comprada à apelada, nos termos do disposto no art. 1430º, n.º 1 do CC, a administração das partes comuns compete à assembleia de condóminos e a um administrador. [...]

Quanto às obras de conservação das partes comuns, cabe ao administrador realizar tais obras e diligenciar pelo respetivo pagamento (al. f) do art. 1436º), sem prejuízo de qualquer condómino poder realizar as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do prédio, na fala ou impedimento do administrador (art. 1427º do CC).

Deste modo, como bem ponderou a 1ª Instância, nas relações propter rem estabelecidas entre, por um lado, o condomínio e, por outro, os condóminos ou terceiros, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual as obras necessárias à fruição e conservação das partes comuns de prédio constituído em propriedade horizontal cabem ao condomínio, isto é, ao conjunto dos condóminos, os quais, conforme antedito, são comproprietários dessas partes comuns, pelo que, salvo disposição em contrário, têm de pagar as despesas inerentes à conservação dessas partes comuns e, bem assim, à respetiva fruição (v.g., despesas com a limpeza) na proporção do valor das suas frações (n.º 1 do art. 1423º), e cumpre ao administrador do condomínio, em representação deste, realizar essas obras (al. f) do art. 1436º), apenas podendo qualquer dos condóminos substituir-se ao administrador na execução de tais obras de conservação das  partes comuns, na falta ou impedimento do condomínio, e caso se trate de executar obras de reparações indispensáveis e urgentes (art. 1427º do CC).

A partir do que se acaba de dizer, entendeu a 1ª Instância que, no caso de incumprimento contratual por parte de vendedor perante o comprador decorrente da fração objeto dessa compra e venda apresentar defeitos ou desconformidades, nunca poderia condenar o vendedor a reparar a fração quando essas desconformidades decorrem de vícios que provêm de parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal, como é o caso dos autos, em que segundo a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a origem das infiltrações que se fazem sentir nas paredes e teto do quarto que integra a fração que lhe foi vendida pela apelada reside na parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal, isto porque, constituindo essa parede exterior do edifício parte comum deste, compete ao condomínio, representado pelo administrador, realizar as obras de conservação dessas partes comuns, pelo que nunca poderia condenar a apelada, vendedora dessa fração, por via do alegado incumprimento contratual em que incorreu, nos termos do instituto da venda de coisa defeituosa, a reparar essa parede exterior, eliminando  as invocadas desconformidades alegadamente ocorridas na parede exterior desse edifício, por onde se processam as infiltrações da água pluvial no interior da fração vendida pela apelada ao apelante, dada a natureza de parte comum dessa parede exterior do edifício.

Adianta a apelada nas alegações de recurso que além disso, o apelante não disporia de legitimidade ativa para lhe exigir a reparação de tais desconformidades ocorridas nessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por essa legitimidade ativa competir, ope legis, ao condomínio, representado pelo seu administrador, e não aos condóminos individualmente considerados, como é o caso do apelante a quem confirma ter vendido a fração objeto dos autos.

Note-se que a posição adotada pela 1ª Instância na decisão recorrida e a que vem propugnada pela apelada nas contra-alegações de recurso que se acabam de enunciar tem sido aquela que tem sido defendida por parte da jurisprudência nacional, que tem sustentado ser “o administrador do condomínio, enquanto representante deste, e não o condomínio que goza de legitimidade ativa para pedir judicialmente a eliminação dos defeitos do prédio verificados nas partes comuns, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos” [Ac. R.C., de 01/02/2022, Proc. 2281/20.4T8LRA.A.C1, in base de dados da DGSI, onde constam os acórdãos que se venham a enunciar, sem menção em contrário.].

Contudo, já uma outra corrente, defende que sendo o condomínio absolutamente estranho ao contrato de compra e venda celebrado entre vendedor e condómino tendo por objeto fração sita em prédio constituído em propriedade horizontal que padeça de vícios ou desconformidades em partes comuns do prédio, é ao condómino comprador que assiste legitimidade ativa para instaurar ação contra o vendedor reclamando a reparação da fração objeto daquela compra e venda e das partes comuns do edifício, por forma a eliminar a fonte desses prejuízos na fração objeto da compra e venda e, bem assim, a indemnização do comprador pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência desse incumprimento contratual, nos termos do art. 914º do CC, ainda que a fonte dessas desconformidades resida nas partes comuns do edifício.

Neste sentido expende-se no acórdão do STJ. de 24/09/2009 que os “Autores instauraram ação contra vendedor pedindo a condenação a pagar-lhe a quantia necessária para reparar a fração eliminando as infiltrações de água proveniente das chuvas que caem sobre a cobertura de prédio constituído em propriedade horizontal. Recorreu o réu invocando não lhe ser aplicável o regime da venda de coisas defeituosas afirmando mesmo que a ré não vendeu aos autores uma coisa defeituosa, sustentando que, sendo parte comum do edifício, a cobertura não constitui, nem poderá ter constituído, objeto da compra e venda celebrada entre as partes. Em seu entender, o que a ré vendeu foi uma fração autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal e, por arrasto, o seu direito de compropriedade sobre as partes comuns, incindivelmente ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O que apresenta deficiência não é a fração autónoma alienada, mas sim uma parte comum, que não foi objeto (nem podia ser) do negócio celebrado entre as partes. Daqui retira que não é a responsabilidade contratual da ré, que não existe, mas a responsabilidade extracontratual dos demais condóminos que está em causa”.

A propósito do enunciado argumentário do aí recorrente, conclui o STJ “não ter qualquer fundamento tal alegação. A circunstância de a coisa vendida ser uma fração autónoma de um prédio urbano – a não a cobertura do prédio, ou parte dela – não isenta o vendedor de responder, perante o comprador, pelos vícios que a desvalorizam ou que impedem a sua utilização normal. Diferente seria se a fração tivesse sido alienada como fração carecida de reparação, por sofrer infiltrações na cobertura, ou seja, como fração por essa razão não apta a servir de habitação, em termos normais. Mas não foi este o caso (…). Não podem ser invocados pelo vendedor de uma fração quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida. A coisa vendida, em tal caso, é manifestamente constituída pelo incindível que foi alienado, não tendo cabimento a separação entre a fração autónoma e a quota nas partes comuns. Neste contexto, coisa sem defeito significa coisa apta a desempenhar a sua função; e é em função desse todo que a aptidão terá de ser aferida” [Ac. STJ., de 24/09/2009, Proc. 09B0368. Em igual sentido Acs. R.P., de 12/03/2013, Proc. 306/11.3TJVNF.P1; RE. de 18/12/2007, Proc. 2642/07-3; R.L., de 01/11/2008, Proc. 2552/2008-1, em que se lê: “A administração de prédio constituído em regime de propriedade horizontal tem poderes para reclamar do construtor/vendedor os defeitos existentes nas partes do prédio; mas já não tem legitimidade para reclamar em nome dos condóminos os defeitos que existam nas frações autónomas do prédio. O mesmo não sucede com os condóminos: estes, por serem comproprietários nas partes comuns do prédio, podem denunciar ao vendedor defeitos nessas partes e reclamar a eliminação dos mesmos (arts. 1420º, n.ºs 1 e 2, 1452º, n.º 1 e 1427º do CC”; R.L., de 02/06/2016, Proc. 3941/14.4T8SNT: “Numa ação intentada contra o construtor/vendedor do prédio, o proprietário de uma fração autónoma tem legitimidade ativa para exigir a reparação dos defeitos das partes comuns que estão na origem dos defeitos existentes na sua própria fração”; R.C., de 12/03/2019, Proc. 190/15.8T8CNT.C1.]

Decorre do que se vem dizendo que, em função desta corrente jurisprudencial, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, em que funda as diversas pretensões que formula contra o apelante e que pretende lhe sejam reconhecidas pelo tribunal com base no incumprimento contratual em que sustenta encontrar-se constituída a apelante perante si decorrente da fração que lhe vendeu apresentar vícios ou desconformidades decorrentes da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração deixar infiltrar a água pluvial no interior dessa fração, causando estragos no teto e nas paredes de um quadro da mesma, o apelante dispõe de legitimidade ativa para demandar o vendedor solicitando a reparação desses vícios (quer os verificados no interior da  fração objeto da compra e venda, quer os verificados na parede poente exterior do edifício constituído em regime de propriedade horizontal) nos termos do art. 914º do CC, assim como esta, na qualidade de vendedora de tal fração, dispõe de legitimidade passiva para o efeito, não podendo invocar quaisquer limitações que o regime de propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns do edifício ou à execução de obras nas mesmas para se exonerar da sua responsabilidade contratual decorrente da existência de defeitos na coisa vendida, a qual é constituída por um todo incindível formado pela fração e pelas partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal onde aquela se integra.

Ora, versando a exceção de ilegitimidade ativa e passiva sobre um pressuposto processual que se traduz em saber se, em função da relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, estão presentes as partes certas na ação para que ao tribunal seja consentido entrar no conhecimento do mérito dessa relação jurídica, e carecendo o juízo para o efeito de ser feito tendo presente os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) delineados pelo autor (apelante) na petição inicial, verificando se, à luz do direito substantivo, em abstrato e de acordo com todas as teses jurídicas suscetíveis de serem aplicáveis a esse direito substantivo, o autor é o titular dos direitos de reparação e indemnização que reclama da pessoa por si demandada com fundamento em responsabilidade contratual (ré e apelada) e se esta, de acordo com esse direito substantivo e em função de todas as teses jurídicas suscetíveis de lhe serem aplicáveis, é a pessoa que se encontra constituída nessa responsabilidade contratual e sobre quem impende a obrigação de reparar e de indemnizar o primeiro (autor e apelante), é apodítico, perante as referidas posições jurisprudenciais distintas sobre a questão de fundo suscitada nos autos – a opção por uma ou por outra das soluções jurídicas supra identificadas quanto a essa questão contende com o mérito, ou seja, com a legitimidade substantiva -, que a apelada dispõe de legitimidade passiva para a presente ação, assim como o apelante dispõe de legitimidade ativa, impondo-se, por conseguinte, concluir pela procedência da presente apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e absolveu a apelada da instância, julgando-se essa exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pela apelada improcedente e ordenando o prosseguimento dos autos."

*3. [Comentário] Adere-se, sem problemas, à orientação defendida no acórdão sobre a legitimidade processual.

Importa, no entanto, ter presente o que foi pedido na acção:

"AA, residente na Rua ..., ... ..., instaurou a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum, contra N...  Investimentos Imobiliários, Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa da Ré, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a Ré a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do Autor estima em € 3.300,00; ou, caso a Ré não proceda às obras referidas nos n.ºs anteriores, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as referidas obras e pagar o custo das mesmas.
Em todo o caso, se condenasse a Ré a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos."

Não estando em causa a legitimidade da Ré quanto à responsabilidade contratual e à indemnização dos danos não patrimoniais, é bastante discutível que essa legitimidade se verifique no que se refere à reparação de uma parte comum do prédio. O correcto teria sido que o Autor tivesse proposto a acção contra a vendedora e, ao mesmo tempo, contra o administrador do condomínio, na qualidade de substituto processual deste último (na melhor interpretação do incompreensível art. 1437.º, n.º 1, CC).

MTS

27/04/2024

Bibliografia (1023)


-- Musielak / Voit, Zivilprozessordnung: ZPO, 21.ª ed. (Vahlen: München 2024)

-- Schuschke / Walker / Kessen / Thole (Eds.), Kölner Kommentar Vollstreckung und Vorläufiger Rechtsschutz, 8.ª ed. (Carl Heymanns: Köln 2024)


26/04/2024

CPC online (20)


CPC online


-- Notas

-- Divulga-se a Versão (20) do CPC online;

-- A versão contém a primeira anotação aos art. 410.º a 422.º e actualiza a última versão divulgada.


-- Versão (20) do CPC online

-- MTS, CPC online, NP-Ab-IG; L 41/2013 (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 1.º a 129.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 130.º a 361.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 362.º a 409.º (vs. 2024.04)

-- MTS, CPC online, Art. 410.º a 422.º (vs. 2024.04)

Nota de actualização (2/6/2024): emendou-se e actualizou-se o n.º 16 do art. 266.º.


Jurisprudência 2023 (158)


Revisão de sentença estrangeira;
sentença arbitral; caso julgado*


1. O sumário de RP 29/6/2023 (1178/22.8T8OVR-A.P1) é o seguinte:

I - Decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e do art.º 56º da LAV, que a revisão de sentenças estrangeiras é de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.

II - Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer.

III - Quanto a estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora no âmbito da sua competência (designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV), ficam já sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"9.2. Do caso julgado formado pela sentença de revisão-confirmação de sentença estrangeira

Segundo os art.º 619º e 621º do CPC, «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele (…)» e, «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)».

Quando se trata de apurar da influência de uma decisão anterior num processo que lhe é posterior, trata-se do caso julgado material. Visa-se com ele obstar a que o tribunal possa vir a repetir ou contradizer a decisão anterior, invalidando a certeza e segurança jurídicas subjacentes às decisões dos tribunais.

E, como é sabido, ele pode ser visto ou influenciar a sorte da ação numa dupla dimensão, consoante os seus efeitos se repercutirem na esfera processual/adjetiva, ou na esfera substantiva.

No primeiro caso, estamos perante um efeito impeditivo ou negativo, o tribunal fica impedido de repetir ou contradizer a decisão anterior, e, daí, a sua operância como exceção dilatória (natureza simplesmente adjetiva): art.º 577º al. i) do CPC.

No segundo caso, está em causa o seu efeito positivo, dirigindo-se um comando ao tribunal, vinculando-o ao mesmo resultado (o de não repetir ou contradizer decisão anterior) com a autoridade de caso julgado, (natureza simultaneamente adjetiva e substantiva).

Em resumo, «Seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (art. 672). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (...), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado).». [José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 713/714. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 325, pág. 167.]

Por outro lado, constitui jurisprudência assente que, «Nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.» [Acórdão do STJ de 05.05.2005(nº do Documento: SJ200505050006027). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acs. de 09.07.998 (Proc. 620/98), de 24.02.2002 (Proc. 671/02), de 15.01.2004 (Proc. 3992/03), de 25.11.2004 (Proc. 3703/04), e de 25.11.2004 (Proc. 04B3703), todos disponíveis em www.dgsi.ptsítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.]

No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa [In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, Lisboa, 2.ª Edição, pág. 578-579.], «toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»

No caso, trata-se da execução de uma sentença arbitral estrangeira.

Nos termos do nº 7 do art.º 42º da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), o caso julgado arbitral é equiparado ao formado por sentença judicial, A sentença arbitral de que não caiba recurso e que já não seja suscetível de alteração no termos do artigo 45.º tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.

Esta interpretação já foi sancionada pelo Tribunal Constitucional, «A expressa referência constitucional aos tribunais arbitrais impede que seja questionada a sua legitimidade, pelo menos no que toca aos tribunais arbitrais voluntários (e o artigo 1522º insere-se nas disposições que conformam este tipo de tribunais). Consequentemente, não pode também ser questionada a força de caso julgado atribuída às respectivas decisões.» [Acórdão nº 506/96, de 21/03/1996.]

Sobre a execução das sentenças arbitrais, a LAV contém também regras específicas: art.º 47º e 48º.

O mesmo acontece sobre o procedimento de revisão e reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, com vista a obter a sua executoriedade em Portugal: art.º 55º a 68º.

A fim de obter a executoriedade, a Exequente/Embargada suscitou o reconhecimento de decisão arbitral, que decorreu neste Tribunal da Relação sob o nº 20/21.1YRPRT. E a decisão nele proferida foi «decretando o reconhecimento, para efeitos de posterior execução, da sentença arbitral proferida a 11.03.2020 pelo Árbitro Único do Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo – Suécia».

É certo que, como decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e art.º 56º da LAV, ao Tribunal revisor apenas compete exercer uma sindicância de carácter formal e não proceder a um reexame de mérito da decisão revidenda, seja pela apreciação dos factos sujeitos a julgamento, seja pelas regras de direito material que foram aplicadas aos factos. A revisão de sentenças estrangeiras é, pois, de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.

Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer, designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV. [Como refere António Sampaio Caramelo, citando Louis Christophe Delanoy, in “O Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras”, 2016, pág. 128-129: «Ao contrário, em sede de controlo da sentença, o juiz não se pronuncia sobre o litígio primário que foi objecto da sentença arbitral, mas apenas averigua a existência nesta de certas condições de regularidade que permitem a sua equiparação à sentença de um tribunal estadual; é exclusivamente sobre este litígio secundário que versa a apreciação do juiz de controlo.»]

Estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, naturalmente que já ficam sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.

Ora, como decorre da análise do processo nº 20/21.1YRPRT, transitado em julgado, o acórdão aí proferido não integrou uma decisão de preceito, no sentido de se ter bastado com a apreciação dos items referidos no art.º 980º do CPC de forma acrítica ou meramente formal.

É que, aí citada a ora Executada/Embargante, teve ela uma posição ativa e substancial nesse processo. Assim, para além da suspensão dos autos, ela deduziu oposição, na qual suscitou as seguintes questões: (i) a sentença arbitral não reúne as condições legais para ser reconhecida, em particular em face do preceituado no artigo 980º, do CPC; (ii) não resultar dos autos a menção ao trânsito em julgado da decisão revivenda; (iii) a sentença estrangeira provém de tribunal cuja competência foi provocada em fraude à lei; (iv) a falta de jurisdição do tribunal arbitral, por falta de um prévio e válido compromisso arbitral entre as partes; (v) não ter sido regularmente citada no processo arbitral, colocando em crise os seus direitos essenciais de defesa, designadamente do contraditório e da igualdade das partes; (vi) o pagamento da quantia peticionada.

Nesse processo foi ainda produzida prova complementar e produzidas alegações.

E no acórdão conheceu-se e decidiu-se as seguintes questões:

i. a sentença arbitral proferida transitou em julgado.

ii. sobre a competência do tribunal arbitral sueco ter sido provocada em “fraude à lei” ─ «não existe qualquer violação do âmbito da competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, concorrendo a competência destes últimos com a competência internacional de qualquer outro Estado e face ao caracter plurilocalizado do litígio».

iii. Sobre a falta de jurisdição do tribunal arbitral sueco por mor da inexistência de um prévio e válido compromisso arbitral (forma escrita e assinatura por ambas as partes) ─ «ao contrário do sustentado pela Ré, nas sobreditas circunstâncias, nenhum óbice existe quanto à questão da forma escrita da convenção de arbitragem (cláusula compromissória) e, ainda, quanto à sua subscrição/aceitação, ainda que o documento que incorpora os termos e condições e a dita convenção não se mostre assinado por qualquer uma das partes. Improcede, pois, também este outro fundamento de oposição ao reconhecimento invocado pela Ré.»

iv. Sobre a falta e regularidade da citação, direitos essenciais de defesa, o princípio do contraditório e da igualdade das partes ─ «Ora, perante esta resenha da evolução do processo arbitral – que não foi minimamente posto em causa por alguma prova produzida ou oferecida pela Ré -, não se alcançam os fundamentos para a afirmação da Ré quanto à alegada violação do princípio do contraditório e da igualdade de armas processuais. De facto, em termos singelos e face às evidências antes expostas, dir-se-á que ao cumprimento do contraditório e da igualdade de armas basta-se a lei pela circunstância de ser concedida às partes, em termos efectivos, a possibilidade de exercerem os seus direitos ou faculdades processuais em pé de igualdade uma com a outra; se a própria parte, apesar de informada dos trâmites processuais e da possibilidade de exercer as faculdades que lhe são proporcionadas pela lei processual, como sucedeu com a aqui Ré, as não pretende usar, naturalmente, que inexiste qualquer violação daqueles princípios fundamentais, mas antes uma opção deliberada da parte, que, em tais circunstâncias, só lhe pode ser imputada. De facto, o que ressuma da intervenção da Ré no processo arbitral (e que a mesma acaba por reproduzir também neste processo) é a sua petição de princípio quanto à invalidade ou inexistência de uma convenção de arbitragem escrita e vinculativa, petição esta que, como já vimos, se mostra infundada.»

v. Também se decidiu sobre o respeito pelos princípios fundamentais da ordem pública internacional, que se consideraram verificados.

Visto isto, temos de concluir que as questões em causa no processo de revisão e reconhecimento de sentença arbitral estrangeira ficaram cobertas pela autoridade de caso julgado. Daí que não possam voltar a ser apreciadas em sede de embargos de executado.

Nessa medida, estando o Tribunal sujeito a essa autoridade de caso julgado, não pode dizer-se que se incorreu em violação do dever de gestão processual ou do princípio da cooperação. Ao contrário, eles são a sua concretização e impunham-se-lhe."

[MTS]


24/04/2024

Jurisprudência 2023 (157)


Cumulação de pedidos;
requisitos*


1. O sumário de RL 27/9/2023 (2294/21.9T8AMD.L1-4) é o seguinte:

À luz da reforma do Código de Processo Civil operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho e de acordo com o disposto no art.º 590.º n.ºs 2 e 3, desse diploma legal, é de seguir o entendimento que preconiza dever o juiz convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenham deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.–Relatório

1.1.–AAA instaurou a presente acção declarativa de condenação contra Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL, pedindo que seja anulada a declaração aposta no recibo de indemnização e condenação a Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma de valor nunca inferior a 7.500€ por conta da IPP de pelo menos 10% e outra por danos morais pela quantia de 5.000€, acrescidas de juros de mora desde a data da alta clínica, isto é, 17.05.2021, até integral pagamento.

Alegou, para tanto, que em 29.07.2020, o A. celebrou com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção; a Junta de Freguesia de Encosta do Sol transferiu a sua responsabilidade decorrente de acidentes pessoais para a R., a qual é titulada pela apólice n.º 14.00108599; a 14.08.2020 sofreu um acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 31.08.2020; a 09.12.2020 foi novamente vítima de acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 17.05.2021; dias depois, foi contactado por um funcionário da R., informando-o que iriam proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, desde já, por força das sequelas sofridas pelo A. no pé e joelho direitos; nesse seguimento, a R. remeteu ao A. o recibo nº 21.05.75721, precisamente atestando o pagamento do valor indicado; após aquela data, ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema da sua mão esquerda, ainda em resultado do segundo acidente de trabalho; porém, obteve da R. que o sinistro já tinha sido encerrado e que já tinha recebido a totalidade da sua indemnização; tem agora noção do que consta do recibo pelo mesmo assinado, mas a verdade é que apôs a sua assinatura no mesmo em manifesto erro, porque estava totalmente convicto que se tratava apenas da indemnização devida por força da incapacidade permanente que ficou afectado, em resultado dos acidentes ocorridos, exclusivamente quanto ao pé e joelho direitos; se tivesse a percepção, no momento em que recebeu aquele valor e assinou o respectivo recibo, estava a ser alegadamente ressarcido de todos os danos e que a incapacidade fixada, de 5%, se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem teria assinado o referido recibo; assim, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código Civil, a declaração do A., aposta no recibo de que se encontra totalmente ressarcido dos danos decorrentes do acidente em causa nos presentes autos com o recebimento da quantia de 3.750€ e que exonera a R. de qualquer responsabilidade decorrente dos acidentes que o A. sofreu é anulável, o que desde já se invoca e requer. [...]

A 02.06.2022, o Juízo Local Cível da Amadora declarou-se incompetente para conhecer do pleito (fls. 53 a 54).

Após trânsito desse despacho, foi ordenada a remessa ao Juízo do Trabalho de Sintra (fls. 56).

Por despacho de fls. 66 a 68 verso, consignou-se o seguinte:

“Nestes termos, entendeu-se que a acção não pode prosseguir pois:

– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;

– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado.

É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:

Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;

A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;

Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil).

Decisão: pelo exposto, absolvo a R. da instância”.

1.2.–Inconformado com esta decisão dela recorre o Autor [...].

1.5.–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.–Objecto do recurso

[...] a questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se ocorre nulidade em virtude de não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC. [....]

4.–Fundamentação de Direito

Da existência de nulidade por não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC

Dispõe o art.º 590.º do CPC,~

“(…) 2-Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a)Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b)Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c)Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3-O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4- Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5- Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6- As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs  4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7- Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”.

Segundo o art.º 6.º n.º 2 do CPC:

“O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

Por seu turno, o art.º 186.º do mesmo diploma reza o seguinte:

1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2- Diz-se inepta a petição: (…)
c)Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.(…)”

Como é sabido, o pedido corresponde ao meio de tutela jurisdicional pretendido pelo Autor - o efeito jurídico que o Autor quer obter com a ação (Antunes Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 243). Traduz a solicitação de concreta providência para tutela do interesse afirmado pelo autor, devendo, como tal, ser claro, compreensível, inteligível e idóneo (Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, Volume II, FDL, pág. 357). 

Acresce que o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação (art.º 555.º n.º 1, do CPC).

Nos termos do citado art.º 590.º, para além das situações previstas na sua alínea a), compete igualmente ao juiz endereçar convite às partes para estas aperfeiçoarem os seus articulados, suprirem irregularidades e insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 2, alínea b) e n.º 4), o que significaria, à partida, que a ineptidão da petição inicial (por cumulação ilegal de pedidos) não daria lugar ao despacho de aperfeiçoamento.

Sucede que,

Para se aferir da incompatibilidade substancial de pedidos interessa apenas a contradição lógica, a incompatibilidade material de pedidos que conduzam à ambiguidade da pretensão e do efeito pretendido. [...]

No presente caso, relembra-se, o Autor invocou ter celebrado com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção, tendo esta transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho. No âmbito desse contrato sofreu dois acidentes de trabalho (em 14.08.2020 e 09.12.2020).  Tendo sido contactado por funcionário da Ré no sentido de que iria aquela proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, referente à indemnização pelas sequelas sofridas pelo Autor relativas a um dos acidentes, o Autor acabou por assinar recibo, atestando o pagamento desse valor.  E ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema (da sua mão esquerda) decorrente do segundo acidente de trabalho, vindo a ser informado, posteriormente, que o sinistro estava encerrado e paga a totalidade da indemnização. Mais refere que assinou o recibo em erro, visto estar convicto de que se tratava apenas de indemnização por um dos acidentes que sofreu. Se tivesse tido a percepção, quando recebeu aquele valor e assinou o recibo, de que não estava a ser ressarcido por todos os danos e que a incapacidade fixada se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem assinado tal recibo, sendo anulável tal declaração. Aduziu também que face às lesões e sequelas de que padece, fruto dos sinistros ocorridos, deve ser-lhe atribuída uma desvalorização/incapacidade permanente, nunca inferior a 10%, segundo a TNI, a que corresponde uma indemnização de valor nunca inferior a € 7.500,00, a que acresce a indemnização pelos danos morais e dores constantes que o Autor sofre e continuará a sofrer, que deve ser arbitrada em € 5.000,00 (cinco mil euros).  

Nessa sequência, pediu que a acção seja “julgada procedente, e, em consequência, anulada a declaração aposto no referido recibo e a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização global nunca inferior a € 12.500,00, acrescida de juros de mora, desde a data da alta clínica, 17.05.2021, até integral e efectivo pagamento”.

Como resulta da decisão recorrida, o Mmo. Juiz considerou-se competente para conhecer de processo que vise a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho e também o pedido de anulação da declaração que o Autor emitiuAcabou, porém, por considerar não ser possível aproveitar os articulados aqui produzidos, considerando existir cumulação ilegal de pedidos (art.º 555.º do Código de Processo Civil), os quais correspondem a pedidos referentes a formas de processo incompatíveis, o que ofende as regras de competência em razão da matéria - concluindo, assim, pela verificação de uma excepção dilatória, tendo, como tal, absolvido a Ré da instância. [...]

Assim sendo, configurando-se uma cumulação ilegal de pedidos, à luz do supra exposto entendimento, deveria o Mmo. Juiz, ao invés de ter absolvido o Réu da instância, ter formulado convite ao Autor para este vir indicar qual o pedido que pretende ver apreciado neste processo, sob a cominação de não o fazendo ser o Réu absolvido da instância quanto a todos eles (art.º 38.º, n.º 1, 555.º n.º 1, do CPC “ex vi” do art.º 1.º n.º a alínea a), do CPT).

Essa ausência de convite traduz a prática de uma nulidade, nos termos do art.º 195.º do CPC, visto se traduzir na omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, com influência na decisão da causa. E porque está a mesma coberta por decisão é a mesma impugnável por via de recurso."


*3. [Comentário] a) Não se discute o raciocínio que esteve subjacente à fundamentação do acórdão, mas, salvo o devido respeito, não se percebe o que é que ele tem a ver com o caso sub iudice.

Pelo que se compreende do relatado no acórdão, o que sucedeu foi o seguinte:

-- O Autor instaurou uma acção na qual formulou dois pedidos: um pedido de anulação da declaração aposta num recibo; um pedido de condenação da Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma para reparação dos danos sofridos em dois acidentes de trabalho e uma para reparação de danos morais;

-- O tribunal no qual a acção foi proposta declarou-se materialmente incompetente para apreciar a acção; a pedido do Autor, os articulados foram remetidos para um Juízo do Trabalho;

-- Este Juízo proferiu um despacho do seguinte teor:

"– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;
 
– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado."

A articulação entre estas duas partes do despacho não é evidente. Seja como for, no mesmo despacho afirma-se ainda o seguinte:

"É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:
 
– Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;
 
– A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;
 
Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil)."

Disto resulta:

-- Uma certeza: a excepção dilatória que o Juízo do Trabalho invoca é a falta de conexão entre os pedidos cumulados (art. 577.º, al. f), CPC);

-- Uma dúvida: não é clara a razão pela qual o Juízo do Trabalho entende que "não é possível aproveitar os articulados" para conhecimento das indemnizações correspondentes aos acidentes de trabalho; será que (o que é improvável) o alegado não é suficiente para esse "aproveitamento"?

b) É claro que a invocação do disposto no art. 577.º, al. f), CPC no despacho do Juízo do Trabalho só pode ser um equívoco. Se, para a 1.ª instância, os problemas se referiam à diversidade das formas do processo e à competência em razão da matéria (nomeadamente para conhecer do pedido prejudicial relativo à anulação da declaração do Autor), era nessa base que se deveria ter decidido. 

No entanto, também é evidente que, em parte alguma do seu despacho, o Juízo do Trabalho invoca a incompatibilidade substancial entre os pedidos cumulados a que se reporta o art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC. É por isso que permanecem enigmáticas as razões pelas quais a RL sentiu necessidade de enquadrar o objecto do recurso na "incompatibilidade substancial de pedidos", tanto mais que não se descobre nenhuma incompatibilidade entre o pedido (prejudicial) de anulação da declaração negocial, o pedido de indemnização dos danos decorrentes dos dois acidentes de trabalho e o pedido de indemnização dos danos morais. A haver problemas, eles respeitam à compatibilidade processual (não substancial) entre os pedidos.

c) Se bem se percebe toda a situação, também não é fácil imaginar como é que a 1.ª instância pode dar cumprimento ao decidido pela RL. Para a 1.ª instância, o problema era de compatibilidade dos pedidos quanto à competência material e à forma do processo; para a RL, o problema é de incompatibilidade substancial entre os pedidos e de escolha de um dos vários pedidos formulados pelo autor. Efectivamente, um diálogo difícil entre as instâncias.
 
MTS