Procura-se responder à
seguinte questão: a natureza
administrativa do contrato alegado na ação é atributiva da competência material
à jurisdição administrativa?
1. Parece-nos que é muito
discutível que se possa dar uma resposta afirmativa à pergunta colocada.
Desde logo, o n.º 3 do art.
212.º da CRP não estabelece como critério atributivo de competência aos
tribunais administrativos e fiscais a natureza administrativa do contrato, mas
antes a natureza administrativa da relação jurídica controvertida. O litígio
até pode emergir de um contrato administrativo, mas a apreciação das questões
relativas a esse litígio ser da competência dos tribunais judiciais, caso essas
questões não se fundamentem numa relação jurídica administrativa.
Por consequência, os
tribunais comuns podem ser competentes para apreciar questões emergentes de
contratos de natureza administrativa. Basta pensar que os órgãos da
Administração Pública tanto podem celebrar contratos administrativos sujeitos a
um regime substantivo de direito público-administrativo, como contratos
submetidos a um regime de direito privado (cf. art. 200.º, n.º 1, do novo CPA).
Vejamos os seguintes
exemplos:
1) uma ação executiva
fundada no título a que se reporta o art. 14.º-A da Lei n.º 6/2006, de 27.02
(NRAU) – contrato de arrendamento acompanhado da comunicação ao arrendatário do
montante em dívida – quando esse contrato esteja sujeito ao regime de renda
apoiada previsto no Dec.-Lei n.º 166/93, de 07.05;
2) uma ação declarativa de
simples apreciação que tem por objeto a apreciação da
propriedade ou posse de bens do domínio público marítimo no decurso da vigência
de um contrato de concessão de exploração firmado
entre as partes.
No exemplo n.º 1, ainda que
a pretensão executiva tenha por finalidade o pagamento de quantia certa, se a
questão submetida a apreciação do tribunal for a aplicação do regime de renda
apoiada, a competência material cabe à jurisdição administrativa, porque o
tribunal terá de aplicar normas de direito público. Por isso, o litígio que o
tribunal é chamado a dirimir emerge de uma relação jurídico-administrativa; no
exemplo n.º 2, embora a atuação de uma das partes (a entidade pública) tenha
por base um contrato administrativo, a competência para
decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas pertence
aos tribunais comuns, nos termos do art. 17.º, n.º 7, da Lei n.º 54/2005, de
15.11, na redação dada pela Lei n.º 34/2014, de 19.06.
Aqui chegados, importa
retirar a seguinte conclusão: a competência material dos tribunais
administrativos, como a dos tribunais em geral, afere-se pela natureza do
objeto processual (pedido e fundamentos), atendendo à relação jurídica
controvertida tal como a configura o demandante.
As considerações que vimos
de expor estão, de algum modo, refletidas no art. 4.º do ETAF, maxime, na al. f) do n.º 1 deste
preceito legal.
2. É nesta base que cabe
responder à seguinte pergunta: a fixação pelo tribunal de uma indemnização por
benfeitorias à parte contratante que tem a obrigação de entregar a coisa, ainda
que o contrato que rege a atuação das partes tenha natureza administrativa, é
um litígio que emerge de uma relação jurídico-administrativa?
De acordo com os argumentos
atrás expostos, parece que não. Com efeito, o tribunal é chamado a aplicar um
regime substantivo específico de direito privado, mais concretamente o que
resulta dos art. 216.º,
754.º e 1273.º a 1275.º do CCiv. Por consequência, a
questão a decidir não é relativa a nenhum dos litígios a que se reporta a al.
f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF. O litígio emerge, antes, de uma relação
jurídico-privada, pois trata-se de uma questão que irá ser dirimida com o recurso
a regras de direito privado. E porque o litígio será solucionado no quadro do
direito privado, a especificidade da matéria não justifica a atribuição de
competência aos tribunais administrativos e fiscais, por causa da competência
residual dos tribunais judiciais (cf. art. 211.º, n.º 1, da CRP).
Assim, numa execução para
entrega de coisa certa baseada num contrato que tenha por objeto a exploração e
administração de um parque de campismo, não havendo dissentimento quanto à
eficácia da denúncia desse contrato pela entidade pública contratante, e traduzindo-se a pretensão executiva na entrega desse
parque e dos elementos que o compõem, livre de
pessoas e bens, a competência para decidir a atribuição ao embargante
de uma indemnização por benfeitorias por este realizadas no parque a entregar,
e a que tenha direito nos termos contratuais e legais, pertence aos tribunais judiciais.
J. H. Delgado Carvalho