1. O art. 16.º Reg. 1896/2006 (relativo à injunção de pagamento europeia) estabelece que, após a citação da emissão desta injunção, o requerido pode apresentar uma declaração de oposição; no entanto, o art. 20.º Reg. 1896/2006 admite que, após o decurso do prazo para a apresentação daquela declaração, o requerido pode ainda, embora apenas em "casos excepcionais", solicitar uma reapreciação da emissão da injunção (no essencial, com fundamento na realização tardia da sua citação e na impossibilidade de oposição por motivo de força maior).
Deste regime resulta que, quanto a uma injunção de pagamento europeia emitida em Portugal, só é possível invocar uma excepção contra o pedido de pagamento se o facto modificativo ou extintivo for superveniente à citação da injunção e se, por isso, o requerido não o puder invocar na declaração de oposição (cf. Rauscher/Gruber, EuZPR-EuIPR (2015), Art 20 EG-MahnVO 60). Assim, é indiscutível que -- como, aliás, seria de esperar, porque é daí que decorre a grande utilidade prática da injunção -- a não dedução de oposição à emissão da injunção de pagamento europeia produz, quanto a factos que podiam ter sido alegados no respectivo procedimento, um efeito preclusivo. Resta acrescentar que esta solução (a que se pode chegar, com facilidade, no plano doutrinário) se encontra expressamente consagrada no § 1095 (2) ZPO.
É verdade que o art. 22.º, n.º 2, Reg. 1896/2006 permite que, a pedido do requerido, a execução seja "recusada" se, e na medida em que, o requerido tiver pago ao requerente o montante reconhecido na injunção de pagamento europeia. Sobre este preceito é, no entanto, muito elucidativo (aliás, sob vários aspectos) o seguinte comentário:
"Segundo o sentido literal do n.º 2, o requerido pode fazer valer, sem qualquer limitação temporal, o pagamento do montante pecuniário. Contudo, o n.º 2 deve ser interpretado restritivamente. O n.º 2 não possibilita ao requerido fazer valer aqueles pagamentos que ele realizou ainda antes da injunção de pagamento europeia. Nestes casos, bem como quanto a outras objecções e excepções, ele é remetido para a dedução de oposição e para a correspondente acção segundo as normas do processo civil comum [cf. art. 17.º, n.º 1, Reg. 1896/2006]. De outra forma, a eficiência do procedimento de injunção europeia seria seriamente atingida; ficaria, num ponto essencial, abaixo da eficiência dos actuais procedimentos de injunção nacionais" (Rauscher/Gruber, EuZPR-EuIPR (2015), Art 22 EG-MahnVO 32).
2. Posto isto, considerem-se duas hipóteses:
-- Primeira hipótese: uma empresa portuguesa obtém contra um devedor português uma injunção "nacional";
-- Segunda hipótese: uma empresa espanhola obtém contra um devedor português uma injunção de pagamento europeia.
Tendo presente a recente declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que consta do art. 857.º, n.º 1, CPC, quando interpretada “no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução instaurada com base em requerimentos de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória” (cf. TC 12/5/2015 (264/2015)), é fácil concluir que as referidas hipóteses patenteiam uma dupla discriminação. Em concreto:
-- Verifica-se uma discriminação entre devedores:
(i) na execução proposta com base na injunção "nacional", o devedor pode invocar um facto modificativo ou extintivo do crédito exequendo, mesmo que aquele facto seja anterior ao procedimento de injunção;
(ii) o devedor requerido na injunção de pagamento europeia não pode invocar o facto modificativo ou extintivo que podia ter alegado como fundamento de oposição à emissão da injunção; cabe perguntar se este devedor pode argumentar, como fundamento da inconstitucionalidade do regime da injunção de pagamento europeia, com a violação do princípio da igualdade (cf. art. 13.º CRP), dado que é negativamente discriminado em relação a devedores executados em Portugal com base em injunções "nacionais";
-- Verifica-se igualmente uma discriminação entre credores, com prejuízo para os credores portugueses:
(i) uma empresa portuguesa que obtém uma injunção "nacional" contra um devedor português está sujeita a que este devedor, apesar de não ter deduzido nenhuma oposição no procedimento de injunção, possa vir a deduzir essa oposição em embargos de executado;
(ii) a empresa espanhola que obteve, contra um outro devedor português, uma injunção de pagamento europeia, beneficia da preclusão dos factos modificativos ou extintivos que, podendo ter sido alegados pelo requerido, não foram invocados no respectivo procedimento.
3. As situações de desigualdade também se mantêm quanto a devedores nacionais e estrangeiros de uma mesma empresa. Por exemplo:
(i) uma empresa portuguesa obtém, contra um devedor português, uma injunção "nacional"; a omissão de qualquer oposição no procedimento de injunção não preclude a oposição na execução;
(ii) a mesma empresa portuguesa obtém uma injunção de pagamento europeia contra um devedor espanhol; este devedor não apresentou nenhuma oposição no procedimento de injunção; fica precludida qualquer oposição na execução posterior (em Espanha ou em Portugal).
4. O Reg. 1896/2006 só é aplicável a "casos transfronteiriços", entendendo-se que o caso é transfronteiriço quando pelo menos uma das partes tem domicílio ou residência habitual num Estado-membro distinto do Estado-membro do tribunal demandado (art. 3.º, n.º 1, Reg. 1896/2006). Esta circunstância também origina uma diferenciação entre cidadãos europeus que sejam devedores de um credor com domicílio ou residência em Portugal:
-- Em relação a cidadãos europeus (portugueses e de outras nacionalidades) com domicílio ou residência em Portugal, aplica-se o regime da injunção "nacional" sem qualquer preclusão quanto aos fundamentos de oposição à execução nela baseada;
-- Em relação a cidadãos europeus (de outras nacionalidades, mas também portugueses) com domicílio ou residência num outro Estado-membro, aplica-se a injunção de pagamento europeia e o respectivo regime de preclusão quanto a factos modificativos ou extintivos que o requerido tinha o ónus de alegar nesse procedimento.
5. Perante a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da regra constante do art. 857.º, n.º 1, CPC, há que pensar na melhor forma de ultrapassar a referida inconstitucionalidade, dado que a inexistência de qualquer nova solução condena a injunção "nacional" à completa inutilidade. As breves reflexões anteriores permitirão concluir que a solução não pode deixar de ser encontrada em conjugação com o regime da injunção de pagamento europeia (também) vigente em Portugal.
MTS