"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/05/2015

Jurisprudência (139)


Recurso de revista; questão nova; qualificação jurídica; apreciação oficiosa


I. O sumário de STJ 30/4/2015 (1187/08.0TBTMR-A.C1.S1) é o seguinte:

1. Tendo sido reclamado um crédito emergente do incumprimento definitivo de um contrato-promessa, ainda antes da prolação do AUJ do STJ n.º 4/2014, de 19/05/2014, sem que a reclamante tenha alegado a sua qualidade de consumidora, não tendo as partes nem as instâncias se debruçado sequer sobre tal questão, que só vem suscitada em sede de revista, tal questão assume a natureza de uma questão nova não estritamente jurídica de que já não cumpre conhecer.

2. A sindicância do erro na apreciação das provas em sede de presunções judiciais pelo tribunal de revista, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, conforme jurisprudência consolidada, está circunscrita à averiguação de ofensa de qualquer norma legal ou de alguma incoerência ou ilogicidade que afete esse raciocínio probatório.

3. A vontade inequívoca de não cumprir, para efeitos de dispensa de interpelação admonitória, pode não ser expressa, admitindo-se que possa resultar de uma declaração negocial tácita estribada “em comportamentos concludentes apreensíveis pela atuação da parte inadimplente, em função dos deveres coenvolvidos na sua prestação, sendo de atender ao grau e intensidade dos atos por si perpetrados na inexecução do contrato, desde que objetivamente revelem inquestionável censura, não sendo justo que o credor esteja adstrito à vontade lassa do devedor.”

4. No quadro circunstancial apurado e atentos os ditames da boa fé na integração da declaração negocial como se preceitua no artigo 239.º do CC, é forçoso reconhecer, à luz do disposto no artigo 217.º, n.º 1, do mesmo Código, que o comportamento da promitente-vendedora evidencia uma inequívoca vontade de não cumprir a obrigação assumida para com a promitente-compradora, que é inteiramente imputável àquela, dispensando assim qualquer interpelação prévia admonitória.
 


II. Além de outros aspectos que se encontram referidos no sumário, convém esclarecer (i) que o que estava em causa no acórdão era decidir se o STJ se podia pronunciar sobre a qualidade de consumidor da reclamante de um crédito numa execução singular e (ii) que a recorrente negava essa qualidade àquela reclamante. 

O STJ afirmou o seguinte:

"[...] afigura-se que a questão, só agora levantada na presente revista, sobre a falta de qualidade de consumidor da reclamante não se integra no núcleo de questões que foram suscitadas perante as instâncias e aí discutidas, além de que não se trata de uma questão estritamente jurídica, envolvendo também uma componente factual que não fora, oportunamente, trazida aos autos e cujo relevo não era então razoável supor.

Nessas circunstâncias, não tendo sido, como não foi, suscitado o vício de omissão de pronúncia sobre essa questão nova, nem tão pouco fornecendo os autos uma base factual alegada pelas partes que permita entrosá-la nas questões suscitadas perante as instâncias e por estas decididas, está vedado a este tribunal de revista empreender, oficiosamente, a sua apreciação. Por outro lado, nada de essencial tendo sido alegado, nesse particular, pelas partes não se impõe sequer usar dos poderes de ampliação da matéria de facto previstos no n.º 3 do art.º 682.º do CPC".
 

Esta justificação é um pouco flutuante: tanto argumenta que a recorrente não suscitou a questão nas instâncias e não invocou nenhuma omissão de pronúncia (o que dá a entender que as instâncias podiam ter-se ocupado da questão), como alega que não há matéria de facto suficiente para apreciar oficiosamente a questão no STJ (o que leva a concluir que, afinal, as instâncias não podiam ter conhecido da questão). 

Numa outra passagem do acórdão, o STJ afirma o seguinte: 

"Acresce que a aqui recorrente de revista não arguiu qualquer vício de omissão de pronúncia daquele acórdão, circunscrevendo o objeto do recurso às questões de mérito, incluindo nelas a enunciada questão da falta de alegação e prova da qualidade de consumidor por parte da credora-reclamante, sendo que a nulidade do referido acórdão com fundamento em omissão de pronúncia não é de conhecimento oficioso por parte do tribunal de recurso. 

Trata-se, por conseguinte, de uma questão nova, não apreciada pelas instâncias em relação à qual não foi arguido o vício formal de a omissão de pronúncia".

Também esta argumentação não é facilmente perceptível: ou a questão é nova no recurso de revista, hipótese em que não pode ter havido nenhuma omissão de pronúncia nas instâncias; ou há uma omissão de pronúncia destas instâncias que a recorrente deveria ter invocado na revista interposta, caso em que a questão não pode ser considerada nova, mas antes precludida.

A isto acresce que o que a recorrente pedia era que, ao contrário do entendimento do acórdão recorrido, não fosse reconhecida a qualidade de consumidora à reclamante do crédito. Sendo assim, também não é fácil perceber em que contexto aquela recorrente podia invocar uma omissão de pronúncia sobre a atribuição dessa qualidade pelas instâncias.

Seja como for, o que o STJ era chamado a decidir era se à reclamante do crédito podia ser reconhecida a qualidade de consumidora (o que a recorrente negava). Trata-se de uma questão de direito que o STJ podia ter decidido, em qualquer dos sentidos possíveis, com a matéria de facto adquirida no incidente de reclamação e verificação de créditos.

MTS